Imaginem um sujeito que encontra um escravo. Ao invés de ajudá-lo a libertar-se e a encontrar condições para uma vida digna, o sujeito aproveita-se da condição de impotência do escravo para bradar em seus ouvidos “Escravo!”, como uma condenação pela sua infelicidade, simultaneamente absolvendo a quem o escravizou. Uma vez frente ao corpo explorado, decide-se liquidar a vítima também na dimensão simbólica.
Faz sentido? Muito pouco. Tal comportamento do sujeito seria demonstração apenas de sua própria mesquinhez e, ademais, o colocaria em contradição com os valores já arraigados de sua própria comunidade/sociedade que sustentam que, dada uma situação de injustiça extrema, deve-se ajudar a vítima e não o algoz.
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Ora, o que possibilitou que alguns (minha esperança é que sejam alguns) médicos brasileiros chamassem de “Escravo!” aos seus colegas cubanos, muitos dos quais são negros, é justamente a certeza de que não são escravos. Trata-se da conhecida tática de usar um qualificativo desprezado, pela maioria ou por todos, para atingir a dignidade do outro ainda que, e por isso mesmo, o qualificativo não corresponda ao sujeito atacado. Chama-se de “veado” ao heterossexual, de “puta” à mulher, etc. justamente porque o heterossexual não gosta de ser associado à homossexualidade e porque a mulher não gosta de ser associada à prostituição.
Portanto, chega-se à conclusão de que não é a suposta condição de escravidão dos seus colegas cubanos o que incomoda aos seus pares brasileiros.
Outra hipótese é de que se trata de uma luta por reconhecimento, tal como o conceito é trabalhado por Nancy Fraser. Isto é, o objetivo da ação difamatória é negar aos Outros, considerados ameaças, o mesmo status moral e a mesma oportunidade econômica da qual se desfruta. É uma disputa econômica, distributiva, que visa a manter posições de poder e privilégio, mas que aparece na esfera pública também como luta pela manutenção da exclusividade do reconhecimento do status. Isso porque o status cria a legitimidade para a ocupação, por alguns e não por todos, dessas posições de poder e privilégio. Médicos não devem ser parecidos com empregadas domésticas justamente porque empregadas domésticas não devem ocupar o espaço dos médicos.
Felippe Ramos é sociólogo