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Em setembro, a revista francesa Charlie Hebdo decidiu publicar uma série de caricaturas do profeta Maomé para pegar uma onda na atualidade midiática mundial. O que seus redatores fizeram foi se aproveitar de algumas reações marginais e superexpostas na mídia que se seguiram à publicação do vídeo “A Inocência dos Muçulmanos”, filme islamofóbico produzido nos Estados Unidos.
Regularmente, essa publicação faz sátiras do Islã e dos muçulmanos. No entanto, seu critério de humor é bem seletivo. Em julho de 2008, a mesma revista chegou a demitir Siné, um de seus mais emblemáticos e conhecidos cartunistas, por ele ter “ousado” satirizar Jean Sarkozy, filho do então presidente na época, por dizer que havia se convertido ao judaísmo antes de se casar com sua noiva, uma judia e herdeira dos fundadores da Darty [empresa de venda de produtos eletrônicos]. “[O editor Phillipe] Val pediu que eu me desculpasse com Jean Sarkozy e com a família Darty. Perguntei se ele estava de brincadeira comigo. Prefiro cortar meus testículos”, disse ele na ocasião.
Em editorial, a Charlie Hebdo disse que ele “passou dos limites”. Mesmo após a justiça trabalhista ter condenado a revista por demissão sem justa causa, esse profissional octogenário foi linchado pelos meios de comunicação franceses e por parte da classe política. O caso serve de lição para os editores que gostam de fazer um estardalhaço só para aumentar a venda de suas publicações.
Essa falsa polêmica, pensada midiaticamente e sabiamente calculada, é um fenômeno tipicamente francês: a Charlie Hebdo se faz de vítima e clama pela liberdade de expressão mesmo que nenhuma censura ou intimidação contra ela tenha sido proferida. Esse novo episódio, apesar de ser completamente vazio, levanta profundas interrogações sobre a democracia francesa.
Antes de tudo, a constatação que podemos criar “arma de mentiras em massa”, que são reproduzidas por toda a imprensa francesa e internacional. Os telejornais se prontificaram a debater com destaque essa falsa polêmica.
Foram muitos os que se manifestaram. Entre eles, desde o ex-primeiro-ministro François Fillon, que chegou a dizer que defendia “Charlie Hebdo por defender a liberdade de expressão e acredito que não devemos ceder um centímetro de terreno nesse tipo de polêmica”; passando pela líder da extrema-direita Marine Le Pen, que fala de recuos na classe política frente aos muçulmanos “que nos impõem grilhões de ferro, quando a liberdade é inegociável”; até a conservadora ex-ministra da UMP Nathalie Kosciusko-Morizet, que ousou dizer que as “reações que vemos aqui e no exterior são eminentemente violentas e condenáveis”. Tais reações existem, sobretudo, em sua imaginação.
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Nenhuma voz se levantou na classe política francesa para lembrar que simplesmente ninguém tentou violar a liberdade de expressão da Charlie Hebdo.
A mentira que reside na afirmação de que os muçulmanos são hostis à liberdade de expressão é tão repetida que acaba virando uma verdade no consciente coletivo dos franceses.
Uma outra mentira freqüente consiste em fazer crer à opinião pública de que certos assuntos não podem ser abordados, sendo o Islã e os muçulmanos um tema tabu. A frequência dos debates nas revistas semanais e editoriais em relação a temas relacionados aos muçulmanos demonstra o inverso. E são temas que não constam como as principais preocupações dos franceses.
No entanto, a revista incontestavelmente triunfou em sua estratégia midiática e comercial, o que não é pouco quando o objetivo era, desde o início, relançar editorialmente a revista quinzenal, que estava em declínio.
Paralelamente, o reforço de segurança excepcional em torno do prédio em que se encontra a redação da revista foi, sem dúvida, excessivo e teve um custo significativo e inútil para o contribuinte.
Não houve na França um único incidente nem qualquer manifestação clandestina. Ao contrário, algumas pessoas, indignadas, desejavam se manifestar e o governo francês determinou que elas estavam proibidas de fazê-lo. Portanto, foram elas que tiveram retirado o direito fundamental de expressão.
Mesmo se tivessem reações excessivas tivessem ocorrido, outros episódios no passado nos ensinaram que sempre se deve agir com moderação. Assim, não se generalizam fenômenos marginais nem são estabelecidos nexos de causalidade ou se procura encontrar culpados antes mesmo que a justiça tenha manifestado uma conclusão.
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É nesse sentido – que consiste em recuos a curto prazo para se preservar de reações precipitadas – que se caracterizam as democracias pacíficas. Mas essa moderação parece muito ausente em grande parte de nossas elites políticas e midiáticas.
Assim, o jornal financiado pelo empresário e comerciante de armas Serge Dassaut, o Le Figaro, afirmou recentemente que a polêmica anterior envolvendo a Charlie Hébdo e os muçulmanos [em 2011] “culminou com a sede da revista, localizada no 20º distrito de Paris sendo alvo de um incêndio criminoso. A equipe do jornal teve de se refugiar nas dependências do jornal Libération”.
Bem, a menos que o Figaro tenha tido acesso aos relatórios de investigação – ou que tenha se beneficiado de uma flexibilidade da condição de segredo de justiça ao qual o caso foi submetido –, nenhuma informação que tenha sido divulgada publicamente permite conhecer os responsáveis pelo incêndio, nem demonstra um vínculo de causalidade formal entre esse ato criminoso e as agitações que a revista tinha causado na comunidade muçulmana, causadas pela publicação de caricaturas sobre o profeta originalmente publicadas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten.
Ao afirmar tal acusação sem nenhuma prova, o Figaro fez passar, intencional e insidiosamente, uma mensagem de que havia um vínculo estabelecido. Portanto, outros casos, como o da linha D do trem metropolitano (em que uma mulher grávida alegou mentirosamente ter sofrido insultos anti-semitas por negros e árabes; toda a imprensa e a classe política interviram imediatamente sem checar a informação, contribuindo para estigmatizar parte da população), demonstraram o perigo de tais conclusões apressadas que criam uma agitação inútil e prejudicial de convivência.
Por fim, e sem negar a liberdade de expressão, é razoável nos interrogarmos sobre os objetivos da Charlie Hebdo para além de seu objetivo comercial. Trata-se mesmo de uma tentativa de reciclar um jornalismo corajoso assumindo um papel de contra-cultura? Nesse caso, não seria mais corajoso, inteligente e útil utilizar esse papel para denunciar e combater o comportamento criminoso, o racismo, o machismo e os conflitos que estão envenenando nossa democracia?
Agência Efe
Manifestação contra o filme reuniu centenas de pessoas em Beirute, no Líbano, depois de convocação do Hezbollah
Não existe nenhuma outra pressão, nenhuma outra ameaça à liberdade de expressão, além da supostamente praticada por radicais muçulmanos, que não tenha poder para criar agitação nas ruas?
A Charlie Hebdo teria certamente caricaturado os judeus nos períodos entre as duas grandes guerras, no momento em que o antissemitismo atingia seu ápice. Atualmente, a revista nada mais faz que seguir a tendência geral, que consiste em semear a fúria contra bode expiatórios apropriado à realidade européia: o islã e os muçulmanos.
Há poucos meses, os laptops de jornalistas encarregados de cobrir o escândalo Woerth-Bettencourt [que envolve casos de evasão fiscal e suspeitas de financiamento ilegal para a campanha de Nicolas Sarkozy em 2007] foram roubados dentro das próprias redações. O sigilo telefônico dos jornalistas foi violado para que o Estado descobrisse os informantes, quando a preservação das fontes é uma condicionante à existência do jornalismo investigativo. Quem se interessa agora sobre as investigações sobre esse caso, revelador de um disfuncionamento escandaloso em todos os níveis de nossa democracia?
São muito raros os jornalistas que escolheram se interessar pelos verdadeiros centros de poder real em vez de se concentrar em populações já estigmatizadas e privadas de qualquer peso político.
A lógica econômica e o tempo escasso [para se desenvolver uma matéria] impõem severas restrições ao jornalismo, mas não podem justificar a facilidade com a qual a classe política se relaciona com a mídia. O atual estado de nosso país não permitirá mais isso, as expectativas de nossos compatriotas não esperarão mais isso.
A liberdade de expressão é um bem precioso e a liberdade de imprensa é fundamental. Porque, com jornalistas corajosos, os dirigentes se voltarão às suas responsabilidades e os verdadeiros problemas não serão desmascarados. Este é um pilar a se defender, sem qualquer possibilidade de negociação.
Fracassar nesse sentido significaria preservar uma “liberdade de expressão” que estaria esvaziada de qualquer liberdade de pensamento. Como já dizia Sören Kierkegaard (teólogo e filósofo dinamarquês do século XIX), por vezes, “as pessoas exigem a liberdade de expressão para compensar a falta de liberdade de pensamento que elas mesmas preferem evitar”.
El Yamine Soum é um sociólogo franco-argelino, especialista em temas como imigração e diversidade. Co-autor de livros como “La France que nous voulons”, “Islamophobie au Monde Moderne” e “Discriminer pour miex régner”.