Faz sol em Quito. O calendário marca 26 de abril de 2009, um domingo, dia de eleições gerais no Equador. Apenas dois anos depois de eleger seus representantes políticos, o país volta às urnas. Todos os cargos estão em disputa, inclusive a cadeira presidencial. O pleito é necessário para que as regras da nova Constituição – aprovada cinco meses antes – para adequar a administração pública às novas regras do jogo democrático.
Muitas mudanças previstas no texto constitucional já entraram em vigor, entre elas o voto dos militares e policiais, que pela pela primeira vez terão o direito de opinar na escolha de seus governantes. Apesar disso, neste domingo eleitoral nem tudo é comemoração debaixo das fardas.
II.
Quinta-feira, 30 de setembro. Às sete da manhã, os soldados concentrados no Regimento Quito número 1, principal quartel da Polícia Nacional do Equador, ignoram ordens superiores e promovem um motim. Pouco tempo depois, um grupo de policiais fecha o aeroporto quitenho em conjunto com membros da Força Aérea. Alguns quadros do Exército fazem pequenas manifestações no exterior do ministério de Defesa. Guayaquil, maior cidade do país, começa a registrar saqueios, roubos a banco e descontrole nas ruas. O transporte público para, estabelecimentos comerciais fecham as portas, escolas e universidades dispensam seus alunos mais cedo. Cuenca, ao sul do país, também enfrenta distúrbios. Os policiais se recusam a deixar suas unidades e proteger os cidadãos. Outro aeroporto é fechado, desta vez em Latacunga, a duas horas de Quito.
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O diálogo entre praças e oficiais não prospera. Os manifestantes exigem que o governo volte atrás em sua intenção de aprovar a nova Lei Orgânica do Serviço Público, que, segundo os policiais, representará importantes perdas financeiras à categoria. Muleta debaixo do braço, joelho direito recém-operado, o presidente Rafael Correa corta caminho pela burocracia estatal e decide tratar pessoalmente com os soldados insubordinados. Lança mão de um microfone e aparece numa das janelas do Regimento Quito 1 para dizer que vocês, policiais, deveriam se envergonhar por estar desrespeitando a hierarquia da corporação. E que ele, presidente e comandante-em-chefe da Polícia Nacional, não entendia o por quê das revoltas, já que seu governo tanto havia melhorado suas condições de trabalho e mais que duplicado seus salários.
“Quem fez isso foi Lucio”, responderam os manifestantes, cantando em alusão ao ex-presidente Lucio Gutiérrez, líder do opositor Partido Sociedade Patriótica (PSP). Rafael Correa, então, imputou a responsabilidade da rebelião a seu maior adversário político e seguiu defendendo as melhorias que seu governo proporcionou à corporação. Aproveitou também para minimizar a importância dos protestos dizendo que existem 42 mil policiais no Equador e que apenas dois mil estavam provocando tamanha desordem.
Os manifestantes não gostaram. A escalada das ofensas se intensificou até o momento em que o presidente, após alguns segundos de silêncio, afrouxou o nó da gravata, esgarçou a gola da camisa, mostrou o peito e explodiu aos berros:
“Se querem matar o presidente, aqui estou! Matem-me se têm vontade, matem-me se têm valor, ao invés de ficarem escondidos na multidão! Porque seguiremos com apenas uma política de justiça e de dignidade! Não daremos um passo atrás! Se querem trair seu juramento de policiais, traiam, mas este governo e este presidente seguirão fazendo o que devem fazer!” E gritou: “Viva a pátria!”, antes de desaparecer dentro do edifício.
Fracassadas os intentos de diálogo, Rafael Correa tentou deixar as instalações do Regimento Quito 1 em seu helicóptero. A aeronave presidencial, porém, não conseguiu pousar no pátio do quartel tomado pelos manifestantes. Então, o mandatário achou por bem alcançar seu automóvel caminhando por entre os policiais sublevados e armados – e, agora, inflamados pelo discurso agressivo e as provocações que acabaram de ouvir. Rafael Correa avançava com dificuldade devido à cirurgia no joelho. O auxílio de seus guarda-costas e de sua muleta era pouco para enfrentar a multidão de soldados enfurecidos. Foi quando, em meio ao empurra-empurra, uma bomba de gás lacrimogênio explodiu bem ao lado de seu rosto. O presidente se feriu e foi levado pelos policiais ao hospital mais próximo, que fica dentro do QG da Polícia.
III.
Para explicar os acontecimentos de 30 de setembro, duas correntes interpretativas se desenvolveram dentro e fora do Equador. O partido de Rafael Correa, Aliança País, os membros do governo e os líderes políticos que integram a Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA) ressaltam o caráter de “golpe de estado fracassado”, presente na rebelião dos policiais. Frisam que a longa permanência do presidente no Hospital da Polícia tratou-se de um sequestro e que a troca de tiros empreendida durante seu resgate foi uma clara tentativa de assassinato de chefe de Estado, ou “magnicídio”.
Enquanto estava dentro do hospital, Rafael Correa concedeu uma entrevista ao canal de televisão estatal ECTV denunciando o atentado contra sua liberdade. A estas alturas, a versão oficial já estava sendo retransmitida em cadeia nacional por determinação do governo. “Eles não estão me deixando sair. Na realidade, nas primeiras horas eu não tinha como deixar o hospital porque estava recebendo soro e minha perna estava sendo tratada, mas já faz algumas horas que estou pronto para ir embora e não pude. Todas as saídas estão fechadas”, disse.
Durante seu cativeiro, o presidente equatoriano contou que recebeu três comissões formadas por policiais “muito educados e gentis”, que se aproximaram com a intenção de negociar uma saída pacífica ao impasse. Queriam que Rafael Correa revogasse a Lei Orgânica de Serviço Público, pomo da discórdia entre o mandatário e os policiais sublevados. Assim teria caminho livre para deixar o hospital.
“Quando eu sair daqui, senhores, entramos em contato e almoçamos juntos para escutar todos os problemas da polícia”, respondeu. “Numa situação como esta, porém, não há nada que dialogar, não há acordo nenhum. Nem pensem em me trazer um papel para assinar.”
Para o governo, não há dúvidas de que o ex-presidente Lucio Gutiérrez, maior opositor de Rafael Correa, esteve por trás do levante policial. Uma série de indícios levantados pelo presidente apontam para esta conclusão: 1) Quando tomaram a Assembleia Nacional, os policiais impediram o acesso de todos os deputados, abrindo passagem apenas aos membros do PSP, partido liderado por Lucio; 2) Durante as manifestações, em mais de uma ocasião os soldados rebelados gritaram o nome do ex-presidente; 3) Um de seus advogados foi visto e filmado junto aos manifestantes; 4) Gutiérrez não estava no Equador quando estourou a sublevação dos policiais equatorianos: havia viajado a Brasília para acompanhar e conhecer o sistema de votação eletrônico brasileiro; e 5) No dia 23 de setembro, ou seja, uma semana antes do levante, Lucio Gutiérrez esteve no Instituto Interamericano para a Liberdade e a Democracia, órgãos mantido por exilados cubanos em Miami, nos Estados Unidos, onde ministrou a conferência “O Socialismo do Século XXI e a crise no Equador”.
Segundo o vice-chanceler equatoriano, Kintto Lucas, na ocasião o ex-presidente afirmou que parte da tropa estava descontente devido à suposta vinculação de Rafael Correa com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o desmantelamento dos aparatos de inteligência no país. “Em sua intervenção, Lucio Gutiérrez, ainda que não tenha mencionado a intenção de dar um golpe de estado, estabeleceu claramente a necessidade de tirar o presidente do poder”, afirma Lucas. “Disse ainda que era muito difícil vencer Rafael Correa nas urnas porque o governo controla todos os poderes da República.”
A visão bolivariana dos acontecimentos de 30 de setembro traz ainda um elemento adicional ao problema: a suposta participação dos Estados Unidos na intentona golpista. Aliás, o governo venezuelano acaba de editar um livreto chamado Ecuador: El fracaso de un golpe de estado, em que afirma: a rebelião policial é uma consequência geopolítica da conspiração internacional que começou na Venezuela, em 2002, com a deposição e prisão temporária de Hugo Chávez, e continuou em Honduras, em 2009, quando o então presidente Manuel Zelaya foi surpreendido durante a madrugada e expulso sumariamente do país.
A advogada estadunidense Eva Golinger, ligada ao canal de televisão Telesur (mantido pela ALBA) e ex-representante da Agência Venezuelana de Informação em Washington, é quem assina a tese conspiratória, que ataca a doutrina ianque para a América Latina em três flancos. No primeiro deles, Golinger revela que um informe oficial do ministério da Defesa equatoriano denunciou já em 2008 que diplomatas estadunidenses se dedicavam a corromper a Polícia Nacional e as Forças Armadas. “O documento afirma que unidades da polícia mantêm uma dependência econômica informal dos Estados Unidos para o pagamento de informações, capacitação, equipamento e operações”, escreve Golinger.
A segunda evidência da participação de Washington no episódio descansaria na ficha profissional da embaixadora dos Estados Unidos no Equador, Heather Hodges. Antes de ser nomeada pelo então presidente George W. Bush, em 2008, Hodges serviu na Moldávia, país socialista que, antes da desintegração da União Soviética, fazia parte da cortina de ferro. Nos anos noventa, a diplomata esteve à frente do Escritório de Assuntos Cubanos do Departamento de Estado e foi enviada à Nicarágua para consolidar o governo de Violeta Chamorro, que assumiu o poder em Manágua após a derrota eleitoral da Revolução Sandinista.
Eva Golinger conclui sua tese dizendo que, durante a estância de Heather Hodges em Quito, a Casa Branca incrementou sua ajuda financeira a movimentos sociais e organizações não-governamentais equatorianas através da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e do Fundo Nacional para a Democracia (NED). Segundo a advogada, um dos principais beneficiários do dinheiro norte-americano foram as organizações indígenas que desde janeiro de 2009 fazem oposição ao governo de Rafael Correa.
IV.
A outra veia interpretativa aponta aspectos autoritários do governo de Correa. A rebelião policial expressa a reação de um setor que teme perder privilégios e está, em parte, envolvido com desrespeito a direitos humanos – mas eles não são os únicos que se queixam.
Os policiais sublevaram-se contra a aprovação da Lei Orgânica do Serviço Público. O texto aprovado pela Assembleia Nacional tem como objetivo regular o regime de trabalho do funcionalismo equatoriano, desde os cargos da burocracia e da tecnocracia estatal até os servidores da Polícia, Bombeiros e Forças Armadas. A nova lei define regras comuns de admissão, gestão de recursos humanos e remuneração. E acaba com alguns tipos de compensações financeiras, bônus e condecorações – das quais se beneficiam diretamente os policiais e militares, mas não só.
O presidente argumenta que o corte do benefício vai se aplicar a todo funcionalismo público para evitar a má utilização dos prêmios salariais. De acordo com Rafael Correa, enquanto alguns empregados do estado ganhavam bonificações de 250 dólares no Natal, por exemplo, outros recebiam benefícios de até 10 mil dólares. “Aprovamos a lei justamente para evitar este tipo de abuso com o dinheiro público. É por isso que o povo equatoriano nos apoia”, explica, lembrando que, no artigo 115 da nova legislação, se reconhece pela primeira vez no país o pagamento de horas-extra aos membros das forças de segurança. “Ou seja, vão ganhar mais, não menos.”
O especialista da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO), Fernando Carrión, afirma que a administração de Rafael Correa aumentou como nenhuma outra o salário dos policiais. “Desde 2007, a remuneração da Polícia Nacional subiu 80% em média”, lembra. Enquanto o salário-mínimo no Equador é de 240 dólares, um policial em início de carreira ganha mais de 700. Cinco dias depois dos distúrbios, os ministros do Interior e de Defesa finalmente anunciaram um reajuste para capitães e suboficiais da Polícia Nacional e das Forças Armadas, projeto que já há alguns meses tramitava pelo Executivo.
O governo também está implementando um plano de modernização da força pública no valor de 330 milhões de dólares, com vistas à aquisição de armas e coletes à prova de balas. Antes, não havia jalecos blindados para todos e, para treinar a pontaria, os policiais tinham que comprar a própria munição.
Ao mesmo tempo em que equipou a polícia, porém, a administração de Rafael Correa iniciou um processo de investigação interna para esclarecer uma série de denúncias que pesavam contra membros da corporação. Havia policiais acusados de atentar contra os direitos humanos, cometer delitos comuns ou praticar atos de corrupção. Entre janeiro de 2007 e janeiro de 2010, a chamada Comissão da Verdade realizou 503 tribunais disciplinares, onde foram processados 691 quadros da Polícia Nacional. Apenas 85 foram absolvidos. Quanto aos demais, 68 sofreram punições internas, 367 tiveram que pedir baixa e 171 acabaram presos.
“Foi o julgamento de policiais envolvidos em denúncias de corrupção e desrespeito aos direitos humanos, combinado à eliminação de condecorações, que acabou provocando a rebelião”, conclui o especialista Fernando Carrión, da FLACSO.
V.
Porém, o movimento indígena acrescenta que a arrogância de Rafael Correa e seu estilo autoritário de governar contribuíram e muito para a rebeldia dos policiais – da mesma maneira que, antes, foram o caldo de cultivo para as manifestações de professores, estudantes e dos próprios indígenas.
“Até certo ponto, os soldados têm razão em reclamar, porque são trabalhadores e foram desrespeitados”, explica Miguel Guatemal, vice-presidente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE). “Correa diz que houve sequestro e tentativas de tomar o poder, mas não foi nada disso. Ele nunca deveria ter caminhado entre os manifestantes. O governo quis usar o povo equatoriano simplesmente para medir sua popularidade. Nós, como movimento indígena, não apoiamos totalmente nem a polícia nem o governo. Temos um amplo projeto para o país.”
O movimento indígena foi um grande aliado de Rafael Correa durante a campanha eleitoral que o levou à presidência pela primeira vez, em 2006. Também esteve ao lado do presidente na convocatória de uma Assembleia Constituinte e, mais tarde, no referendo popular que aprovou o conteúdo da nova Constituição Plurinacional do Equador. Mais que meros apoiadores, os indígenas foram a grande alavanca que impulsou as mudanças institucionais no país, fruto de uma intensa luta social iniciada com o levante dos povos originários em 1990.
Contudo, as organizações indígenas romperam com o presidente em janeiro de 2009. Segundo a CONAIE, Rafael Correa e Aliança País já estavam desrespeitando a Constituição apenas três meses após sua aprovação – sendo que foram eles mesmos que a escreveram. Esse desrespeito se expressou pelo sanção da Lei de Mineração, que abriu as reservas minerais do país a transnacionais canadenses e inaugurou a extração de minérios a céu aberto em em larga escala. Ou seja, um atentado a três princípios fundantes do novo texto constitucional, pelos quais os índios vinham lutando – e morrendo – há séculos: os Direitos da Natureza, a Plurinacionalidade e o Sumak Kawsay ou Bom-Viver.
“A CONAIE realizou algumas mobilizações nacionais desde que rompemos com Rafael Correa, mas em nenhum momento exigimos sua saída do governo. A renúncia do presidente não está em nossos planos. Não é o momento conjuntural para isso”, esclarece Miguel Guatemal. “Mas queremos que Rafael Correa mude de atitude e respeite os direitos dos povos indígenas: os direitos que temos a nossos territórios e costumes, o direito à vida e aos recursos naturais, que são de todos.”
Apesar disso, em meio ao caos do dia 30 de setembro, o Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik Novo País, braço partidário do movimento indígena, lançou um manifesto pedindo a saída de Rafael Correa, neste termos:
Perante a grave comoção política e crise interna, gerada pela atitude ditatorial do presidente Rafael Correa, ao violentar os direitos dos servidores públicos e da sociedade em seu conjunto, convocamos o movimento indígena, movimentos sociais e organizações políticas democráticas a construir um só frente nacional para exigir a saída do presidente Rafael Correa, ao amparo do que estabelece a Constituição.
“Durante a revolta dos policiais, o presidente vinha ameaçando aplicar a morte cruzada”, explica Jorge Guamán, dirigente nacional do Pachakutik. A “morte cruzada” é um mecanismo previsto pela Constituição do Equador que, em alguns casos, permite ao presidente dissolver o congresso, com a contrapartida de colocar seu cargo à disposição. O inverso também é permitido: a Assembleia pode destituir o presidente, mas os deputados instantaneamente perdem o mandato. Em ambos os casos, se convocam eleições gerais.
“Nossos assembleístas encorajaram o presidente a aplicar a morte cruzada que vinha prometendo, só isso”, continua Jorge Guamán. “Seremos os defensores da democracia, mas não de uma democracia uniforme, com apenas um pensamento. Queremos uma democracia que construa um estado plurinacional e intercultural no Equador.”
Em 2009, os indígenas se levantaram contra o governo para exigir respeito à Constituição. Os protestos foram especialmente intensos nas províncias amazônicas, onde houve uma morte: Bosco Wizum, professor da etnia shuar, foi assassinado pelas forças policiais que reprimiam as manifestações. O caso gerou comoção nacional, Rafael Correa lamentou o ocorrido e chamou as lideranças indígenas para conversar – o diálogo, porém, não floresceu.
“Quando fazemos alguma manifestação, o governo imediatamente processa nossos dirigentes. Agora há mais de 40 companheiros respondendo processo criminal. É uma violação a nossos direitos. Rafael Correa nos chama de subversivos, rebeldes ou guerrilheiros e minimiza nossos protestos”, se queixa Miguel Guatemal, da CONAIE. “O governo quer fazer as coisas à sua maneira, não aceita sugestões e não quer que reclamemos. Durante as eleições, Rafael Correa nos disse uma coisa, mas no governo está fazendo outra.”
VI.
Entre 1996 e 2006, o Equador teve sete presidentes diferentes. Uma vez eleitos, Abdalá Bucaram, Jamil Mahuad e Lucio Gutiérrez duraram entre seis meses e dois anos e meio no poder antes de que mobilizações cívicas e militares exigissem suas respectivas renúncias. Até que assumiu Rafael Correa e a maré de instabilidade se baixou.
O sociólogo León Zamosc escreve que, com o passar dos anos e dos governos, a situação se transformava num círculo vicioso. A conjuntura econômica e a pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI) faziam com que o governo eleito recorresse às reformas neoliberais, vistas como única opção para o crescimento. Os custos do ajuste estrutural recaíam sobre os setores populares. Ao invés de melhorar a situação dos equatorianos, as medidas pioravam a vida das pessoas. A penúria econômica se acentuava.
Os cidadãos, então, perdiam a crença no estado e nos políticos. A democracia entrava numa crise de representação e legitimação. O resultado era o protesto: nas ruas, derrubam-se presidentes. Nas urnas, o poder é entregue a candidatos que traficam com a esperança popular: se elegem prometendo uma coisa e governam de maneira totalmente diferente. Voltavam, portanto, a tentar implementar o neoliberalismo no país e tudo começava de novo.
A Revolução Cidadã, entretanto, deu um basta na onda neoliberal e optou por políticas desenvolvimentistas. Apostou no fortalecimento das empresas estatais, sobretudo na extração de recursos naturais. Mas não abandonou o sistema capitalista – exigência maior dos movimentos sociais equatorianos e das organizações indígenas. Mais que o fim das privatizações, o desejo da CONAIE é uma mudança no modelo de desenvolvimento e no paradigma da riqueza. Não é a toa que costumam dizer que “a água vale mais que o ouro” ou que, com ouro e cobre, o país ficará mais pobre. E a Constituição de 2008, em partes, atende a essas reivindicações. É por isso que o movimento indígena, artífice dos protestos sociais que derrubaram presidentes submissos ao FMI na última década, agora se volta contra Rafael Correa.
VII.
O impasse dentro do Hospital da Polícia Nacional se estendeu tanto que militantes da Aliança País e apoiadores do governo foram de encontro aos soldados rebelados exigir a libertação imediata do presidente. No centro de Quito, uma multidão se concentrava em frente ao Palácio de Carondelet para demonstrar o respaldo popular do presidente. Muita gente, porém, preferiu ficar em casa e acompanhar pela televisão o desfecho da mais recente crise institucional do país.
Já avançada a noite, e uma vez que os policiais não liberavam as saídas do edifício hospitalar, Rafael Correa acionou os grupos de elite das Forças Armadas para um resgate. Na operação, os militares contaram com a ajuda de divisões especiais da Polícia Nacional, que mantinham a lealdade ao presidente. Um veículo blindado foi levado a uma das portas do local. Rafael Correa sentou-se numa cadeira de rodas. Um corredor formou-se para dar-lhe passagem. Ao seu redor, militares e policiais protegiam com escudos a integridade física do chefe-de-estado. Lá fora, o tiroteio havia começado.
Com as luzes do hospital apagadas, Rafael Correa foi colocado na caminhonete prateada que o levou a toda velocidade para longe dos disparos. No total, dez pessoas morreram durante a jornada de protestos no Equador. Em Guayaquil, cinco cidadãos perderam a vida por causa dos distúrbios. Na capital, Quito, as vítimas foram um estudante, um militar e três policiais. Segundo o ministério da Saúde, 274 pessoas ficaram feridas.
“É o fato político mais violento das últimas décadas”, lembra Alberto Acosta, ex-presidente da Assembleia Constituinte, ex-ministro de Minas e Energia e fundador do partido de Rafael Correa, Aliança País. “Derrubamos três governantes com manifestações populares, mas nunca houve tanta violência.”
Na sacada do Palácio de Carondelet, cercado por seus colaboradores mais próximos e ovacionado por simpatizantes que lotavam a Praça Grande, Rafael Correa reafirmou seu compromisso com a aprovação da Lei Orgânica do Serviço Público, o fim dos prêmios salariais e o pagamento das horas-extras e outros benefícios inerentes ao regime especial de trabalho da Polícia Nacional e das Forças Armadas. Disse que os manifestantes sequer conheciam o teor da lei contra a qual protestavam, falou em desinformação e culpou os “conspiradores de sempre” pelo caos que tomou conta do país naquela quinta-feira triste.
“Obrigado a todos que arriscaram a vida pelo presidente”, agradeceu.
Algumas pesquisas de opinião realizadas no Equador nos primeiros dias de outubro apontam que houve dois ganhadores e dois perdedores após os distúrbios policiais. “A aceitação de Rafael Correa entre a população subiu bastante, e as Forças Armadas são neste momento a instituição com maior legitimidade no país”, explica Fernando Carrión, da FLACSO. Por outro lado, “os grandes perdedores são a Polícia Nacional, que já tinha uma avaliação muito negativa entre a população, e a Assembleia Nacional, que caiu no conceito dos equatorianos.”
O professor faz questão de frisar que 95% dos entrevistados pedem um maior diálogo entre o governo e a oposição. “Os opositores saem muito debilitados. As lideranças que estavam sendo construídas no congresso e nos meios de comunicação se pulverizaram após os acontecimentos de 30 de setembro”, esclarece. “O povo acredita que os partidos de oposição tentaram se aproveitar politicamente do episódio – e fracassaram.”
Para o economista Alberto Acosta, passada a tormenta, o presidente tem em mãos a oportunidade histórica de se reencontrar com as origens do processo político e social que desencadeou a Revolução Cidadã. “Existe um mal-estar pela forma que Rafael Correa governa o país: não há diálogo, não há espaços de participação, as leis são impostas inclusive contra os mandatos constitucionais”, explica. “Nos primeiros anos de governo, o presidente tinha o respaldo dos indígenas, professores, estudantes e de muitos setores da sociedade. Agora está perdendo o apoio dos movimentos sociais. É preciso uma guinada política na direção do processo inicial.”
“Nossas instituições são como um punho”, explica um jovem cadete, enquanto flexiona o braço direito e aperta os dedos com força contra a palma da mão. Depois, vai esticando lentamente indicador, médio, anelar, mindinho e polegar para ilustrar seu descontentamento com o voto militar.
“Se eu simpatizo com determinado candidato, meu companheiro com outro, outro companheiro com outro e assim por diante, a mão se abre”, gesticula. “Somos cerca de cem mil homens na Polícia Nacional e nas Forças Armadas. A entrada da política em nossos quadros pode nos dividir. Imagina como seria isso!?”
*Artigo publicado originalmente no site Latitude Sul
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