Dizer que gastronomia nada mais é do que comida equivale a confundir moda com roupa. É negar relações abstratas e se ater ao concreto, como um São Tomé. Por mais que haja excessos nessa dinâmica de difusão de novas ideias (oferecendo a poucos o que está ao acesso de todos), intrinsecamente uma cultura depende do que está em voga para se entender e se renovar.
Como a moda, a gastronomia vive de tendências, e uma das que imperam nesse momento é a da culinária novo andina, que, trocando seis por meia dúzia, diz respeito basicamente à comida peruana. Essa onda, como sempre acontece, tem origem em ideias e ações de um “trendsetter” (ou formador de opiniões), que neste caso parece ser Gastón Acurio.
Depois de estudar na Cordon Bleu, tradicional escola de alta gastronomia francesa, o renomado chef peruano sentiu a lâmpada piscar e decidiu levar para o seu país essa mania tão alentadora e rentável dos franceses de promover sua cultura através de sua comida. Por uma razão simples e bastante louvável: levantar os ânimos de um povo esmorecido por uma série de carências que geram graves contrastes sociais, como acontece no Peru.
Você já escutou falar em “ceviche”? É provável que sim, e isso é porque os planos – e os negócios – de Acurio deram certo.
Wikimedia Commons
O ceviche peruano
São Paulo, dita capital gastronômica, tem hoje o La Mar, o Suri e o Killa, três restaurantes voltados à culinária novo andina – um movimento que pretende resgatar ingredientes e técnicas de cozinha ancestrais dos povos dos Andes (cujo império estava centralizado em território peruano), atualizando as receitas e dizendo ao mundo: “A comida proveniente de países como Peru e Bolívia não causará danos à sua saúde, como você pode ter imaginado. Ao contrário, fará você viver uma experiência gastronômica única e prazerosa”.
É a pura verdade. Basta visitar o Peru por poucos dias para se dar conta que todo mundo lá tem a sua receita, do taxista que puxa papo nas corridas aos chefs, que abundam em uma cidade cosmopolita como Lima. E que o peruano se sente unido por suas tradições à mesa, que passam por uma série de influências, de espanhóis, chineses e japoneses, principalmente, sabiamente admitidas e misturadas para enriquecer uma variedade incrível de ingredientes que incluem saborosos peixes do Pacífico, 15 variações de milho e mais de quatro mil tipos de batata.
Nem tanto ao céu e nem à terra
“O que eu gosto na gastronomia peruana é sua magnífica fusão e confusão”, diz o chef Checho Gonzáles, que nasceu na Bolívia e vive no Brasil desde os sete anos. Com ele, visitei um dos restaurantes de inspiração andina de São Paulo, o Killa (palavra que, em quéchua, significa lua). É, a meu ver, o mais aconchegante e despretensioso entre as caras opções paulistanas.
Falo da experiência acessível e deliciosa que é comer no Peru e reclamo ao Checho – alguém que, para mim, capta nossa essência latino-americana tão variada na vida e no trabalho – desse nível exagerado de requinte dos restaurantes peruanos aqui. “É um ganho para nós ter a cozinha novo andina para mudar a mente das pessoas em relação ao que elas nem conhecem, como é o caso da comida peruana e da boliviana. E para as culturas latino- americanas, a culinária é um meio de superar certa crise de identidade e de revelar ao mundo suas riquezas”.
Pensei que, mesmo cara, essa gastronomia peruana tão em voga tem uma veia democrática. Fui feliz experimentando a cancha (milho tostado servido como aperitivo), o ceviche de atum, o anticucho (espetinhos de coração de boi marinados e servidos com batata) e a chicha morada (bebida doce e gelada de milho roxo) do Killa. Mas comemorei especialmente quando o Checho comentou que no centro, pelas ruas do Brás, escondem-se alguns restaurantes peruanos e bolivianos bem originais e baratíssimos. Pesquisando, descobri o Riconcito Peruano, um espaço mantido por uma família de imigrantes lá na rua Aurora. E aí, sim, respirei aliviada.
Da gastronomia, à comida, da moda, à roupa: essa é a ideia.
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