Celebra-se a chegada de 2021 como se ela fosse capaz de apagar 2020. Não é. O ano que finda é também um ano sem fim, um ciclo que não se encerra ao se virar uma página do calendário. E, não se iludam, também não terminará quando houver a esperada vacina. Sabem disso os que perderam uma das quase duzentas mil pessoas que faleceram de covid-19 no Brasil.
Por isso, hoje à noite, você pode usar branco, soltar fogos, beber espumante. Ao amanhecer verá que não há nada novo sob o sol, porque não se passa um ano por cima do outro, qual borracha sobre grafite. Ainda somos os mesmos, cantou Belchior e cantamos nós, com alguma tristeza. E a verdade é que nem um novo ano nem a chegada da celebrada vacina (celebrada por nós, não-negacionistas e não-bolsonaristas) farão com que o novo normal se aproxime de alguma ideia de normalidade.
Você já pensou que é provável que o novo normal seja o surgimento de novos vírus e pandemias com uma frequência cada vez maior? Que talvez sejam vírus mais contagiantes ou mais letais? Quantas doenças terão que surgir até que a gente se olhe de dentro pra fora e enfim olhe a Terra de fora pra dentro, até chegar às suas profundezas, e entenda? Quantas pessoas terão que morrer para que a gente pare de destruir ecossistemas? De derrubar árvores? De matar bichos? De dizimar povos?
Quando enfim encerraremos este ciclo para, então, celebrarmos uma verdadeira virada de ano ou de paradigma?
Com a emergência do novo coronavírus, pensamos que a humanidade finalmente iria acordar e se dar conta de como estamos destruindo o planeta. Que iríamos rever nosso modelo predatório, nossos hábitos de consumo, que iríamos, finalmente, nos enxergar sistemicamente. Essa chacoalhada da natureza, entretanto, com exceção das bolhas de sempre, não nos fez ver além dela mesma. Seguimos sendo nós os vírus do mundo, sem fazer as associações e as mudanças necessárias à saúde. Tanto se falou em tomada de consciência e, bem, não foi desta vez.
Quando o vírus chegou ao Brasil, nos enchemos de ideias românticas, de como aprenderíamos o cuidado mútuo e a solidariedade. Em pouco tempo, vimos o egoísmo reinar, em aglomerações injustificadas e em pessoas sem máscara a cada esquina. Vimos cair de vez a máscara do brasileiro cordial, que, para defender políticos desonestos e seus interesses escusos, permitiram que a vida de tantos fosse sacrificada. Vimos o racismo e a xenofobia, não a compaixão, virem à tona. E não, não aprendemos sobre a importância da saúde pública a ponto de defendê-la com nossas unhas e dentes. Seguimos cada um por si e Deus contra os mais pobres.
Minha esperança de futuro, hoje, se apoia paradoxalmente no fim da esperança. E na reconstrução a partir das desilusões. Erramos em acreditar que, do velho normal, poderia surgir uma saída.
Derrubadas as ilusões, ou melhor, instaurada a desilusão, por onde começaremos a construir?
Gosto muito de ficar descalça e de sentir a textura da terra. Com os pés bem fincados no chão, vejo que a solidariedade, a empatia e a justiça social não vão nascer no mesmo solo do nosso modelo de poder em que homens subjugam todos os outros seres vivos, incluindo os da mesma espécie. Com os pés no chão, acho impossível a esperança.
Que se derrubem, pois, esses pilares sobre os quais nossa sociedade moderna patriarcal capitalista se sustenta, esses pilares que se erguem como falos. Que a desilusão abra buracos na terra, como vulvas. E que nesse solo-fêmea não se ergam, mas se espalhem e se enraízem as bases de uma nova sociedade.
Um novo ciclo. Uma virada.
Até lá, estaremos para sempre presos em 2020, esse espelho tão perfeito de uma época.
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Que nesse solo-fêmea não se ergam, mas se espalhem e se enraízem as bases de uma nova sociedade