Parece que não, mas repare bem: é só olhar ao redor e verá que grande parte das pessoas são legais. Os chatos, além de serem minoria, vivem acuados pelo imperativo da gente-boísse. E que fique claro que ser gente boa é bem diferente de ser boa gente, como chamei a atenção do meu pai, tempos atrás, por dizer que um garçom que sempre nos atendia era boa gente. “Ele é gente boa, pai – respondi – boa gente nós não sabemos. Vai que ele é bolsonarista”. Era. Descobrimos pouco tempo depois. Tão bolsonarista, que, quando estive lá dias atrás para buscar comida, falou: “Espero que o governo libere pra gente abrir o espaço semana que vem, né?” Respondi que, mesmo que abra, nós não viremos, pois levamos o isolamento social a sério. Chata.
No outro restaurante onde busco marmitas com frequência, todo mundo é tão legal, que é quase insuportável esperar minha vez de ser atendida. Metade das pessoas sem máscaras, a outra metade legal demais para se importar. Distância de segurança é coisa que não existe entre as pessoas legais. Viro pra trás e começo a tossir, pra ver se o menino sem proteção atrás de mim na fila se afasta. Ele é tão legal, que nem se toca. Digo ao dono do restaurante que eles precisam colocar um cartaz alertando para a obrigatoriedade do uso de máscaras, pois é desconfortável (pra mim, que sou chata) ficar entre tanta gente desprotegida. Ele assente. No dia seguinte, lá está o cartaz. Mas minha felicidade se esvai em um segundo, ao me deparar com três clientes ao lado do aviso com o rosto totalmente descoberto. Chata, aponto o cartaz e chamo-lhes a atenção em voz alta. Um deles me responde: “isso aqui não é a China”. O dono do restaurante, legal como todos, não se posiciona. Tento entendê-lo: é um momento delicado para os negócios e ele não pode se arriscar a perder clientes sendo chato. Mas no dia seguinte se posiciona para defender outra cliente que queria furar a fila – e justo na minha frente. Afinal, não custa nada ser legal e deixar os outros furarem fila, né? Essa coisa de ser correto é coisa de gente chata.
A tragédia de um país onde todo mundo é gente boa não se restringe a máscaras e restaurantes. As pessoas legais adoram dar festas para outras pessoas legais. Mesmo que em meio a uma pandemia. Mesmo que atrapalhando os vizinhos com o volume ensurdecedor. Se você reclamar, você é chato. Se chamar a polícia, mais chato ainda. E provavelmente não será atendido, pois ela serve para atender às pessoas legais, aquelas cujos direitos individuais estão acima dos direitos coletivos, afinal, liberdade não é isso? As pessoas legais são muito livres, não saem por aí querendo restringir a liberdade alheia em nome da coletividade, conceito demodê de gente chata.
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Ser chato é solitário e dá trabalho
Pontualidade: coisa de gente chata, que acha que o próprio tempo não vale mais do que o tempo do outro. Mas tente explicar isso a uma pessoa legal. Aliás, quem é legalzão é sempre impontual, há um certo charme em se ter um tempo próprio e não respeitar horários. E, se o outro for legal mesmo, não se importará de esperar. Pessoas legais não se importam com muita coisa, afinal. Andam pelas ruas, rindo alto, sem máscaras. Aglomeram-se nas esquinas tomando cerveja. Contam piadas racistas/machistas/homofóbicas em rodinhas de amigos, que também são gente boa e dão risada. É só piada, né? O chato problematiza, estraga o clima. Na próxima não será convidado. O chato dá bronca no amigo que canta mulher na rua. Insuportável. Se não perde os amigos, segue sendo tolerado com alguma condescendência, como o ser exótico do grupo.
O chato é a única pessoa que sabe a diferença entre espaço privado e espaço público. E dá bronca em quem não libera a porta para o desembarque no metrô, em quem ignora o assento preferencial, em quem joga lixo no chão, em quem fuma na cara do outro, enquanto os legais o consideram inconveniente e intrometido, pois acham que suas ações são problemas próprios.
É fácil reconhecer um chato: é aquele que fala sozinho, enquanto a grande maioria de pessoas legais o olha como se ele fosse um estorvo atrapalhando as good vibes. Não importa que ele esteja indignado com uma situação de injustiça que acabou de presenciar, diante dos olhares indiferentes dos legais.
Ser chato é solitário e dá trabalho.
Mas é no chato que deposito minhas esperanças, porque, afinal, ele é aquele que não se cala. E por isso é chato: porque incomoda.
Sonho com o dia em que nós, chatos, seremos maioria. E aí quem sabe o Brasil acontece.