A história das mulheres negras é marcada por um processo muito grave de apagamento político apresentado em várias instâncias da vida social, dentre as quais estão a arte e a cultura. Não é novidade o embranquecimento de diversos campos da criação artística, de personagens cinematográficas ao contexto da música popular brasileira, o que se vê é majoritariamente a narrativa de corpos brancos expressando, portanto, uma via única de elaboração de significados. No samba a história se repete, centenas de compositores, intérpretes, musicistas negros são solapados para um vão esquecido da memória enquanto seus pares brancos, ou lidos como brancos, conseguem construir uma carreira e gozar de reconhecimento público.
A mercantilização da cultura não é algo simples, envolve vários processos de exclusão sistemática como o racismo e o machismo, elementos que informam uma condição ampla de disputa ideológica chamada luta de classes. Nesse sentido, as mulheres negras e pobres se localizam na base de uma pirâmide social fixa caracterizada por séculos e séculos de exploração e violência discriminatória diariamente apresentada através de comportamentos ora muito evidentes, ora muito sutis.
Esse cenário de relação entre negros e brancos tem por alicerce o chamado racismo estrutural, conceito amplamente discutido pelo professor Sílvio Almeida no livro “O que é racismo estrutural?” (Editora Letramento). Para o autor, o racismo decorre da própria malha social e da naturalização das relações políticas, econômicas, jurídicas e educacionais. As relações racializadas são elementos fundamentais para a compreensão do Estado, do direito e da economia contemporâneas. Nesse sentido, racismo não se restringe a um nível prático, é também uma forma aguda de racionalização.
O embranquecimento foi normalizado e por isso mesmo perpetua-se a impressão de que o Brasil é um território miscigenado onde não existe violência racial, entretanto, se essa avaliação tivesse algum sentido minimamente real, haveria diversidade étnico-racial e de gênero nos espaços de produção material da cultura e nos demais postos de trabalho. A tarefa de observar a realidade concreta é árdua e deflagra justamente o contrário: em um país onde 53% da população se identifica como preta e parda a maioria de médicos é branca, a maioria de garis é negra. Não fosse por ações afirmativas de frentes negras de trabalho político, não haveria negritude dentro das universidades públicas, já o sistema carcerário está sempre povoado de corpos pretos. O campo da arte e da cultura não fogem à perversa regra, incluem-se no projeto de manutenção da desigualdade social.
Jornalismo Cultural – O que a crítica tem a ver com isso?
No último dia 2 de fevereiro, o site da revista Carta Capital apresentou ao público um artigo de cultura sobre as “novas e delicadas vozes do samba”, escrito por Augusto Diniz. Trata-se de uma reportagem sobre quatro mulheres que têm desenvolvido suas carreiras de intérpretes e compositoras no circuito cultural do samba no sul e no sudeste, o autor da matéria diz que elas são a “renovação” do gênero. O que em outros tempos passaria despercebido hoje chama a atenção: nenhuma delas é negra. Se faz notória a publicação do artigo no dia de Iemanjá, divindade negra que no sincretismo com outras culturas no Brasil também foi embranquecida. Um ano antes, a própria Carta Capital denunciava esse fenômeno de apropriação cultural.
A despeito da qualidade musical das cantoras entrevistadas e, diga-se de passagem, propagandeadas, existem dois problemas fundamentais que precisam ser debatidos nos meios de comunicação, cultura e produção artística. O primeiro deles, conforme citado, é a inexistência de nomes de cantoras e compositoras negras justamente em um campo artístico que nasceu da resistência dos terreiros e das periferias. Poderíamos citar aqui Raquel Tobias, Roberta Oliveira, Tia Cida dos Terreiros, Bebeth Nascimento, Camila Oliveira, Nêga Duda, Bê Lourenço, Maíra da Rosa, Rose Calixto, Esmeralda Ortiz, Geovana, Ana Maria Carvalho, Luz Nascimento, Sahra Brandão, Carol Nascimento, Maria Helena Embaixadora do Samba, Érika Azeviche, Luana Bayô, dentre tantas outras que têm ocupado espaços culturais na cidade e no estado de São Paulo com público cativo e altíssima qualidade artística.
Algumas dessas cantoras/compositoras podem não ser jovens da perspectiva etária, mas do ponto de vista do mercado nunca foram apresentadas ou sugeridas enfaticamente pelos meios de comunicação como referências do universo musical. Ainda desconhecidas do grande público, essas artistas são uma grande e imperdível novidade.
O segundo problema do artigo de Diniz é a adjetivação equivocada do trabalho das mulheres no campo da arte e da cultura. Ao qualificar em seu texto as cantoras como “vozes delicadas”, Diniz ignora por completo a pauta de resistência trabalhista das mulheres que historicamente têm avançado no debate sobre sua participação nos modos de produção da cultura brasileira.
O samba atualmente é demarcado por artistas que dominam tecnicamente o ofício, o que as afasta cada dia mais da ideia romântica de que o trabalho feminino é determinado pela sensibilidade e pela intuição destituídos de vigor racional e estudo técnico.
Além disso, a discussão do trabalho das artistas eleitas como “novas e delicadas vozes”, ainda sob um véu patriarcalista, junto à exclusão das mulheres negras, reflete profundamente como a sociedade brasileira articula machismo e racismo, valendo-se de mulheres de padrão mercantilizável para excluir a atividade daquelas que do ponto de vista histórico têm uma ancestralidade marcada por um processo de desumanização fruto do sistema escravocrata que até hoje organiza as relações sociais e políticas desse país.
Um sol para todas
Numa troca de mensagens com editor e autor responsáveis pelo artigo, antecedente à escrita deste texto, foi-nos dito que apresentar mulheres brancas como referências da nova geração do samba não quer dizer que não existam mulheres negras talentosas fazendo o mesmo trabalho. Esse é o argumento mais recorrente quando se levanta a discussão sobre apagamento e racismo estrutural nos espaços. De fato, teoricamente a máxima tem algum sentido, na prática, diante de um panorama tão restrito e elitista de divulgação da produção artística e pedagógica no país, essa maneira de pensar apenas alimenta o engessamento da cultura dominante. Basta olhar para as revistas, os canais de televisão, as séries hoje difundidas no mundo virtual, o cenário da música popular brasileira: existe um modelo vigente de artistas, existe um estado total de organização das imagens e dos corpos que serão divulgados.
É histórica a organização de mulheres negras para ampliação de sua voz na cultura social, alguns coletivos podem ser mencionados como propulsores de formas alternativas de produção no samba: as Amigas do Samba, as Matambas e o Samba da Marcha de Mulheres Negras são alguns deles, todos originados em regiões periféricas de São Paulo. Além disso, é necessário lembrar e prestar reconhecimento à luta das mulheres na ocupação de terrenos produtivos e conquista de posições de respeito dentro das escolas de samba, quilombos urbanos em atividade, a cada ano mais precarizadas pela ausência de verba pública e pelo parasitismo de grandes empresas.
As redes se organizam e desenvolvem formas de atuação comunitária para escapar dos processos de apagamento, mas é importante que os meios de comunicação e produção em apoio à história da cultura popular redimensionem os próprios métodos para não incorrerem em uma falsa moral democrática. O sol é para todas.
Helô Ferreira é mestre em educação pela UFSCAR, arte-educadora e como violonista atua em grupos de samba da cidade de São Paulo.
Paloma Franca Amorim é escritora, educadora e integrante da roda de samba de mulheres Sambadas.