A película de Ernesto Daranas é daqueles apelos incontidos. Dá-nos a ver de uma perspectiva eviscerada a verdade das palavras de Baudelot e Establet: “tudo o que acontece na escola só pode ser explicado através do que ocorre fora dos muros escolares”. Equilibra à perfeição, os matizes das primeiras experiências da escolarização e a multiplicidade correlativa dos conflitos fora da escola.
O local da ação e do discurso não é a academia da abstração dos conceitos, tampouco o gabinete, onde se pensa a Educação dos grandes planos, das celebradas diretrizes curriculares, mas uma escola pública na Ilha de Cuba, único pais da América Latina e Caribe a atingir as metas do Programa de Educação para Todos das Nações Unidas.
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Professora Carmela e seus alunos, em cena do filme 'Numa escola de Havana'
A sala de Havana é a “sala de aula como trincheira, como a toca do rato, como o buraco do chão” do filósofo Silvio Gallo, é o pano de fundo para o desfile da burocracia, da intolerância, da negação da diversidade, do domínio de mundos sociais roídos por nenhuma possibilidade de superação das flagrantes desigualdades materiais, do abandono dos estudantes, crianças ainda, à sua própria conta.
E são muitas as “fomes” dos alunos da professora Carmela (Alina Rodriguez), sozinha contra tanta falta de sensibilidade, contra tanta discriminação. Fome de Justiça, antes de tudo; em um paralelo com o que conta-nos o jurista Canotilho sobre a exclamação provocatória de uma dissidente da ex-República Democrática Alemã: “Ansiávamos pela justiça e veio apenas o Estado de Direito!”.
Mas, igualdade jurídica não é mesmo igualdade social. É muitas vezes, só silêncio. Um silêncio que arrebenta os ouvidos.
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Um dos meninos traz da rua o sustento para a mãe alcoólatra e seu próprio. Dinheiro tirado do sangue coagulado das brigas de cães. Uma das meninas precisa proteger o pai contra a polícia da imigração. Uma realidade que exaure. Um mundo de fantasmas, que “parece vazio; mas na verdade, está sobrepovoado” como escreveu, sobre a Idade Média, Georges Duby.
A professora Carmela substantiva aquele conhecimento que vem além da consciência: o da vivência. Vivência da brutalidade das opressões que chegam às suas crianças. Em um rasgo de humanidade, quer que a polícia, que os outros professores, que o mundo os veja com seus olhos. Talvez seja aquele amor político de que nos falou Paulo Freire. Penso que seja, sobretudo, amor.
Saímos do cinema com o fôlego de inventar novas leituras, de, à maneira do poeta Manoel de Barros, seguir “desconstruindo as catedrais e os monumentos que gastaram, que aprisionaram, esmagaram e esmigalharam esses homens”. Saímos também com a certeza de que não há como pensar uma educação que prescinda da leitura social e da ressignificação das trajetórias individuais e das vulnerabilidades daqueles que se sentam para aprender, porque a sala de Havana é também a sala das nossas escolas, salas que evocam o que temos de mais humano e nos sentenciam a decidir, como gostaria Hannah Arendt, “se amamos o mundo o bastante para assumir a responsabilidade por ele.”
(*) Stella Verzolla Tangerino é advogada, especialista em Política e Relações Internacionais pela FESP-SP, estudante de Filosofia (USP) e mestranda em Educação, Estado e Sociedade (FE-USP).