Diferentemente dos seus principais aliados regionais Hugo Chávez, Luiz Inácio Lula da Silva e Evo Morales, que chegam à presidência como autêntica expressão da nova geração de partidos políticos e movimentos sociais legitimados na oposição ao “Consenso de Washington”, a ascensão de Néstor Kirchner, de extensa trajetória no peronismo, buscou recompor a credibilidade do sistema político e econômico, afetado pelo quadro de crise de amplas proporções gerado pelo colapso financeiro que levou ao fim do governo de Fernando De la Rua em 2001.
Eleito presidente em 2003, desde o início, seu governo operou um processo de recuperação econômica, favorecido pela suspensão dos pagamentos da dívida, ampliação do consumo de uma população desconfiada com o sistema bancário que confiscou parte da sua poupança, e a desvalorização cambial, que impulsionou as exportações e a recuperação da indústria voltada para o mercado interno. Após a queda do PIB de 10,8% em 2002, inicia-se um período de expansão, com crescimento de 8,8% em 2003, 9,0% em 2004, 9,2% em 2005, 8,5% em 2006 e 8,7% em 2007, último ano do seu mandato. Em maio de 2005, foi concluída a oferta de bônus da dívida em default, obtendo-se a adesão de 76,15% dos credores, que implicou num desconto nominal de 65,6% sobre um total de dívida reestruturada de 102 bilhões de dólares.
Com a situação favorável no âmbito da economia, o grande desafio é desarmar o radicalismo que a conflitividade social tinha atingido, abalando a confiança da sociedade na classe política, incorporada em bloco na palavra de ordem “que se vayan todos”, que unificou os protestos que derrubaram De la Rua. Parte fundamental dessas manifestações teve como protagonista o movimento piquetero, que irrompe no país na década de 1990, formado por grupos de desempregados que protestam cortando estradas. A resposta dos sucessivos governos orientou-se pelo estabelecimento de assistência na forma de transferência de renda através dos chamados Planes Trabajar (PT), criados por Carlos Menem, que mudam de nome para Planes de Jefes y Jefas de Familia (PJJF) em 2002. De 200.000 PT em 1997, passa-se a 1.300.000 PJJF em outubro de 2002, estabilizando-se em 2.100.000 a partir da ascensão de Néstor Kirchner.
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Outra área de atuação que o aproxima das reivindicações dos movimentos sociais é a política de direitos humanos, em que reabre as discussões sobre a ação das forças armadas durante o regime militar de 1976-83. Em março de 2006, quando se cumprem 30 anos do golpe, Kirchner coloca publicamente em discussão a anulação dos indultos concedidos por Menem em 1990 aos principais dirigentes da ditadura. No mês de abril de 2007, o Tribunal Penal Federal considera inconstitucionais os decretos de anistia com base na tese da não prescrição dos crimes contra a humanidade. Essa postura lhe granjeia o apoio de organizações de defesa dos direitos humanos, como as Mães e Avós da Praça de Maio.
A trajetória do presidente revela um forte pragmatismo, mostrando capacidade de adaptação às mudanças político-ideológicas que afetaram o país e o seu partido nas décadas recentes. Vinculado à Tendência Revolucionária, próxima ao Movimento Peronista Montonero, nos anos de estudante de direito na Universidade de La Plata, adquiriu projeção como político na sua província natal, Santa Cruz, elegendo-se prefeito da capital e depois governador por três mandatos, após aprovar reforma constitucional garantindo a reeleição indefinida. Durante a presidência de Menem, foi um dos seus principais aliados, destacando-se entre os governadores que apoiaram a privatização da empresa YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales).
Rompe com Menem no momento em que este busca alterar a legislação para tentar uma segunda reeleição, alinhando-se com Duhalde, candidato presidencial do Partido Justicialista (PJ) derrotado por De la Rua. Eleito presidente, vai se afastando de Duhalde até o rompimento, nas eleições legislativas de 2005, em que lança a Frente Para a Vitória (FPV). Embora aliada do PJ, a FPV terá algumas candidaturas próprias, como a da Primeira Dama, Cristina Fernandez. Militante peronista desde a juventude e com uma trajetória parlamentar iniciada em 1985, no processo de redemocratização, concorre ao senado pela Província de Buenos Aires, derrotando Hilda Duhalde, esposa do ex-padrinho político.
Os resultados favoráveis nas eleições, em que seus aliados resultam vencedores em 14 das 24 províncias, fortalecem a liderança de Kirchner. Como passo seguinte, busca afiançar o poder, estabelecendo acordos que lhe garantem maioria no parlamento, apoio da maior parte dos governadores e prefeitos do país, convivência pacífica com as centrais sindicais e os setores mais moderados dos piqueteros. Por outro lado, a experiência da FPV dá fôlego ao projeto de construir uma nova força política de centro esquerda, para a qual busca atrair setores de trajetória diversa, dentro e fora do peronismo.
A iniciativa mais importante nesse sentido é o lançamento de Cristina Fernandez à sua sucessão, numa fórmula em que o candidato à vice-presidente Julio Cobos, governador da província de Mendoza, pertence à União Cívica Radical, que vence as eleições no primeiro turno, em 28 de outubro de 2007. Néstor Kirchner termina seu mandato com índice de imagem positiva próximo aos 60%.
Num quadro de crise e mobilização que parecia antever o inicio de uma situação pré-revolucionária, a ordem retorna na Argentina das mãos do peronismo, colocando em operação, embora com matizes novos, seu tradicional poder de atração de lideranças políticas, sociais e sindicais para a esfera do Estado. Nesse processo, Néstor Kirchner constrói uma liderança cuja influência transcende o exercício do seu mandato, tornando-se o principal operador político da presidência de Cristina, tanto na dimensão da gestão do poder executivo, como da articulação das suas bases de sustentação no âmbito dos demais poderes do Estado, as organizações partidárias, os sindicatos e movimentos sociais.
A morte inesperada, aos 60 anos de idade, quando se cogitava seu nome como candidato às eleições de 2011, traz grandes desafios para o governo de Cristina. Além da dolorosa perda pessoal, deverá enfrentar o vácuo deixado pela sua liderança, componente fundamental do projeto de poder que construíram juntos, e que se tornou referência obrigatória do debate nacional sobre os rumos futuros da Argentina.
*Luis Fernando Ayerbe é coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da UNESP
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