Há processos políticos nos quais a mudança encarna amplas possibilidades positivas e alimenta alternativa capaz de mobilizar multidões. Noutros momentos históricos, porém, a aposta mais avançada se resume a evitar o pior. Esse parece ser o cenário eleitoral dos Estados Unidos. Se Barack Obama ganhar um novo mandato, em novembro, provavelmente tudo deverá continuar como está. Mas se o republicano Mitt Romney for o vitorioso, o país pode mergulhar em uma reviravolta conservadora de proporções inéditas.
Nos últimos vinte anos, por diversos fatores, a histórica bipolaridade entre democratas e republicanos sofreu importantes mutações. Ampliou-se a distância entre os dois principais partidos norte-americanos, na medida em que os fossos sociais também se alargaram, a hegemonia planetária se enfraqueceu, a economia perdeu pujança e os fluxos demográficos reduziram o peso da classe média branca e de olhos azuis.
Efe
Obama poderia ser Lincoln ou Roosevelt, mas capitulou ao “andar de cima”; ainda assim, dos males é o menor
Os republicanos, principal vetor da implantação do modelo neoliberal desde o governo de Ronald Reagan (1981-1988), transformaram-se definitivamente no partido do complexo bélico-industrial, dos grandes bancos e da indústria petroleira, em um ciclo de concentração de renda jamais experimentado. A combinação entre expansão das guerras de conquista, redução dos impostos para os mais ricos e desregulamentação do capital financeiro promoveu um período de bonança incrível no topo da pirâmide. Às custas da restrição dos direitos sociais, dos serviços públicos e da renda dos andares abaixo.
A reversão da expectativa de prosperidade inesgotável, eixo do imaginário dos Estados Unidos desde a independência, trouxe também profundas consequências politico-culturais. Para preservar sua base social e eleitoral, também afetada pela política econômica pós-Reagan, os republicanos adotaram um novo tipo de discurso conservador. O portfólio desta catilinária agrupa chauvinismo, fundamentalismo religioso, ódio aos imigrantes e exaltação extrema das soluções individuais. Enfim, uma fórmula que permitisse identificar a culpa da corrosão social nas ameaças internacionais, nos inimigos dos valores cristãos, nos imigrantes e na existência de um Estado regulador.
Esse programa fundamentalista, acelerado a partir do governo de George W. Bush e dos ataques terroristas em setembro de 2001, encontrou audiência especialmente entre os brancos de média e alta renda, das cidades pequenas e médias, dos estados mais ao sul e ao oeste, que foram convencidos a atribuir seu medo de decadência aos imigrantes e aos direitos civis sustentados pelos impostos pagos ao Estado.
Apesar de uma fatia grande dos democratas acompanhar a valsa republicana, deslocando seus pontos de vista no rumo da mesma clientela conservadora, outra fração passou a confrontar os interesses e valores representados pelo partido adversário. Quando Barack Obama sagrou-se vencedor nas prévias de 2008, contra Hillary Clinton, esse bloco mais progressista aprofundou o nível de enfrentamento político e liberou energias sociais adormecidas desde os movimentos contra a guerra e a descriminação racial dos anos sessenta.
Obama, negro e de origem africana, trouxe de volta à cena política, na sua campanha para presidente, expressivas parcelas da juventude, das minorias étnicas e dos trabalhadores que antes respondiam, à simbiose entre democratas e republicanos, com o abstencionismo eleitoral. Ao fazê-lo, pôde derrotar McCain, o candidato do outro lado, com uma vantagem de 53 a 47% nos votos populares, cerca de dez milhões de eleitores.
Frustração
Mas tudo que é insólito se desmancha no ar. Obama tinha dois caminhos a seguir, depois de empossado. Um deles o levaria, apoiado nessas novas forças políticas, a defender seu programa contra a guerra, a favor da reconstrução do Estado de bem estar, pela taxação maior aos mais ricos, a regulamentação do capital financeiro e a legalização dos imigrantes. Outra trilha o conduziria a moderar ou abdicar de seus compromissos eleitorais, como pré-condição para uma recomposição com as correntes mais à direita de seu partido e um diálogo com os republicanos menos agressivos. Ao escolher Hillary Clinton para a Secretaria de Estado, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos acenava por qual senda tinha se decidido.
Obama teve a chance de ser um Abraham Lincoln (1861-1865), o líder da guerra contra a escravidão. Se essa fosse uma opção demasiadamente ousada, poderia ser um Franklin Roosevelt (1933-1945), o presidente que tirou o país da recessão apostando na ampliação do mercado interno e dos direitos sociais. A essa altura, muitos de seus antigos e frustrados apoiadores têm dúvidas se ele chegará a ser, no balanço da história, um Jimmy Carter (1977-1980), o medíocre democrata que perdeu a reeleição para Reagan. O fato é que, capturado pelas amarras das elites norte-americanas, Obama rendeu-se ao andar de cima.
Mas tudo poderá ser muito pior no caso de Romney vencer, particularmente para o resto do mundo. Se Obama não descartou a lógica imperialista e rentista, ao menos a desacelerou. O candidato republicano, homem profundamente conectado a Wall Street e à indústria militar, faz dessa lógica e sua radicalização o eixo para um novo ciclo de riqueza. Mais do mesmo, infelizmente, é o máximo que se pode almejar em novembro. Resta ver se as forças que levaram Obama ao governo, em 2009, voltarão a campo ou se deixarão abater pela frustração.
*Jornalista, diretor editorial do site Opera Mundi (www.operamundi.uol.com.br) e da revista Samuel (www.revistasamuel.com.br).
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