Ao passo da “revolução pachamamista”, o partido MAS (Movimento ao Socialismo) e seu principal representante, Evo Morales Ayma, vencem mais um desafio nas urnas e repetem sua vocação democrática com mais de 60% de votos, conquistando ainda maioria qualificada no legislativo e empurrando a oposição para um papel de ”testemunha” do processo político. Mas, afinal, o que movimenta um organismo político tão vigoroso em meio a um país que, apenas cinco anos atrás, era considerado inviável?
A Bolívia tem uma longa trajetória de lutas sociais, do líder indígena Zárate Willka no final do século XIX ao percurso que se acidentou historicamente até a democrática chegada do MAS ao poder, sem golpismo. Essa historicidade entrecruzada, enlaçada, justapõe séculos e décadas de amadurecimento e de aprendizado contra o jogo liberal criollo, pseudo-republicano, cujo falso constitucionalismo revigorava a penumbra do desinteresse das classes políticas sobre a vontade geral da maioria. Essa história, de personalismos e de tensões ideológicas polarizadas, todos nós já lemos nos livros e sabemos de cor.
O estalo que rompe toda a cadeia está no topo da Cordilheira dos Andes, na virada do século XXI – por muitos rejeitado, dito como inexistente – e redefine as trajetórias. As privatizações, uma após a outra e desmanteladoras de todas as parcas conquistas sociais do século XX, foram duramente negadas e o antiimperialismo (que mesclava esquerda, autoctonismo quéchua-aymará e insustentabilidade econômica) confluiu em uma fragilidade do sistema liberal-representativo enquanto manifestação política da dominação. A catástrofe chegaria ao fim com o grito de “Fora, Goni”: caía Gonzalo Sánchez de Lozada, na Guerra do Gás (2003) e, junto com ele, o mando imperializado. O jogo político, de qualquer forma, não seria jamais domesticado como antes.
Mas estamos longe de situá-lo como selvagem ou primitivo. Ao contrário: com a chegada de um novo momento caracterizado pela recusa às formas de organização política verticalizadas e pela adoção das ações coletivas dos movimentos sociais, reordenava-se toda a lógica dessa vontade geral, por meio de cadeias horizontalizadas, ágeis e de fractal capacidade de sustentação. Como se fosse um paradigma caído junto com a velha modernidade, os antigos partidos políticos e as suas restritas câmaras legislativas não são mais o centro de gravidade decisório do país. A alta contemporaneidade da política sul-americana está representada no MAS como uma forma diferente de se ver o mundo da comunicação em tempo real, com janelas de oportunidade para o protagonismo muito mais acessíveis e afirmada sobre códigos comunicacionais de comunidades alternativas.
Curiosamente, o alçar da bandeira do Collasuyu (parte sudeste do Império Inca) é o que há de mais arrojado na política sul-americana atual, certamente circunscrito na dimensão das relações globalizadas e locais no enlace das margens do indisciplinado fluxo do mundo contemporâneo no século XXI.
E não é exagero dizer que o MAS sobrevive, bem como se torna mais forte, a cada vez que os seus oponentes procuram derrubá-lo: seja na possibilidade de golpe logo após a queda de Sánchez de Lozada (negada prontamente por Morales, que pediu eleições), seja pelo emperramento da Constituinte por sete meses, seja ainda por tentativa de assassinato ou por separação territorial, nada para o MAS. Nenhuma bala, nem nenhum ataque certeiro, desmonta os plurais nós das diversas redes justapostas e articuladas que rejeitam todas as teorias clássicas, as calúnias e as descrenças.
As razões para essa dissipada possibilidade de queda do MAS, hoje, se arregimentam nas múltiplas trajetórias comunitárias, autóctones (e originalíssimas, portanto) e organizadas nos sindicatos, conselhos de bairro e núcleos familiares. Com essa trama, forma-se uma colcha de retalhos viva – rejeitando assim a idéia de “máquina” partidária, mas abraçando o conceito humano de “organismo”, quase amebóide, fagocitando e criando cada vez mais aderência a partir do seu princípio participativo e descentralizado. O MAS é isso: uma forma de organização ágil, desindustrializada e autônoma, que se faz na superação dos antigos referenciais classistas do século passado: operários, camponeses, desocupados, avós e crianças. O MAS é de todos, sem sectarismo ideológico.
Surpreendentemente, quando se buscou aquele pilar central que derrubaria Evo Morales, viu-se uma expressão de identidade nos bairros, nas comunidades e nos rostos cansados do povo comum. Isso é a adesão em torno do MAS: é a incapacidade, seja do militante ou do cidadão comum, de voltar atrás para a Bolívia liberal.
A vitória de Evo Morales contra uma oposição empoeirada e pouco participativa se dá no epicentro das relações contemporâneas da política nas Américas. É aí que se situa, no presente, sem esquecer do passado, a construção de um futuro alternativo no altiplano andino.
*Daniel Santiago Chaves é historiador e pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (UFRJ) e escreveu este artigo para o Opera Mundi. E-mail: <daniel@tempopresente.org>
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