John Saxe-Fernández, no excelente livro Terror e Império: la hegemonia política y econômica de Estados Unidos (México, DF: Editora Debate, 2006) cunhou um termo preciso que, a despeito de seu enorme valor explicativo, não ganhou ainda muito espaço no Brasil. Refiro-me ao termo “presidência imperial”, com o qual ele caracteriza a política autocrática dos EUA no plano regional e global. A presidência imperial define “a expressão institucional de uma realidade sistemática que surgiu da própria natureza do desenvolvimento capitalista” (p. 15) ocorrido nos EUA. Lá, o capitalismo desenvolveu-se com forte apoio do Estado, o que se mantém até hoje, com a diplomacia e as Forças Armadas dos EUA atuando em todo o mundo em defesa dos interesses empresariais sediados em seu território e com a garantia de altos volumes de recursos para a pesquisa militar de uso dual, que também alimenta o seu desenvolvimento tecnológico.
O estudo de Fernández abarca um largo período, que vai da formação do território dos EUA, por meio da compra de terras (Louisiana, comprada da França), da anexação pela guerra (contra o México) e do genocídio indígena, chegando ao Consenso de Washington e ao nosso século. Nesse percurso, há a formação de algumas constantes que dão a forma assumida pela política dos EUA para o mundo no século XX. Uma das mais importantes é a economia de guerra: “a institucionalização de uma economia permanente de guerra nos EUA também impacta a estrutura de poder, formando-se uma forte conjunção de poderosas relações de clientelas e interesses mútuos entre o aparato corporativo, bélico-industrial, o Congresso e a presidência imperial e sua enorme burocracia militar, a partir da qual realiza a maior operação de planejamento industrial, estatal-privada, nacional e centralizada do planeta”. (p. 98, tradução nossa).
Na análise de Fernández, com o surgimento dos grandes monopólios na área de produção bélica (que começam a prosperar nos anos da guerra civil) e nos setores de energia (petróleo e gás), formou-se uma classe dominante diretamente vinculada aos temas da guerra. Sua atuação é decisiva no cenário político dos EUA e os CEO’s dessas grandes companhias alcançam níveis muito altos de influência em todas as esferas de poder: na alta burocracia federal, o que inclui a chamada “comunidade de inteligência”; nos comitês do Senado e da Câmara federal, subordinados aos lobbies dos monopólios e na cúpula empresarial e bancária (financeira), que financia os principais institutos de pesquisa, os think tanks e a indústria cultural. A dinâmica dessas ‘pontas’ da estrutura de poder dos EUA gira em torno dos interesses privados (frequentemente de curto prazo) e as oscilações políticas e táticas dos governos dos EUA estão diretamente ligadas a essa dinâmica, favorecendo o setor que, a cada vez, logra controlar maiores fatias do Congresso e a própria chefia do poder Executivo.
Essa pequena digressão, que omite propositalmente muitas outras questões que mereceriam análise detalhada, serve aqui a um único propósito: dissipar qualquer resquício de surpresa com a informação, divulgada em uma longa reportagem do The New York Times, de que as ações da CIA (e, portanto, do Estado Americano) na Ucrânia datam de muito antes da atual guerra com a Rússia e foram levadas adiante por, pelo menos, três gestões diferentes à frente da Casa Branca.
Conforme a matéria, escrita por dois jornalistas que não podem ser acusados de ter simpatias pela Rússia ou pela narrativa russa acerca dos fatos que levaram à conflagração da Ucrânia, a presença da CIA no país do europeu é bem enraizada e data de pelo menos dez anos atrás, tendo portanto se iniciado sob o governo de Barack Obama. Teve prosseguimento durante toda a gestão de Donald Trump (cuja retórica procurava dar a entender que não cultivava atividades hostis à Rússia, o que agora mostra-se mentiroso) e chegou, como se sabe, ao governo Biden, que vem dando suporte declarado a Kiev, em recursos e armamentos.
E a presença da CIA no palco da guerra não é um detalhe. Ela é essencial às Forças Armadas da Ucrânia. Quem diz isso não é um porta-voz do Kremlin, mas o general ucraniano Serhii Dvoretskiy. Ele informa que a base subterrânea que hoje é comando das ações militares ucranianas é “cento e dez porcento financiada e equipada pela CIA”. A matéria, construída com base em fontes e entrevistas, é factível não apenas pela qualidade do material com que trabalha, mas também porque encontra eco em posicionamentos verbalizados anos antes por figuras proeminentes na política dos EUA.
Já em 1997, em seu célebre livro “The great Chessboard”, Zbigniew Brzezinski (falecido em 2017) dizia que os líderes dos EUA não deveriam permitir que surgisse alguma potência desafiante que fosse capaz de dominar a Eurásia, pois isso desafiaria a preeminência global da América. Brzezinski foi conselheiro de Jimmy Carter (um Democrata) e copresidente da Força-Tarefa Consultiva de Segurança Nacional sob o presidente Bush (um Republicano) em 1988, e manteve-se como figura proeminente do pensamento político dos EUA até o fim de sua vida. Em 2014, ele chegou a expressar a ideia de que “Os EUA devem armar a Ucrânia”, conselho que, a julgar pelos acontecimentos posteriores, foi observado pelas lideranças dos EUA. Nessa mesma conferência, Brzezinski opinava que a OTAN precisava passar por reformas, dentre as quais a reformulação do artigo 5º, que impõe que a decisão de agir em conjunto para defender um dos membros da aliança seja tomada por unanimidade. Para ele, o poder de veto não poderia ser exercido pelas pequenas nações da Aliança, dada sua pequena contribuição com os custos das operações.
O chamado Euromaidan, episódio que levou a extrema-direita ao governo da Ucrânia e deu poderes a grupos neonazistas como o Batalhão Azov (que foi incorporado à Guarda Nacional da Ucrânia em 2014, ganhando status oficial), ocorreu em 2014, mesmo ano dessa palestra de Brzezinski a que nos referimos cima. Conforme a matéria do NYT, “por volta de 2016, a CIA começou a treinar uma força de comando ucraniana de elite – conhecida como Unidade 2245 – que capturou drones e equipamentos de comunicação russos para que os técnicos da CIA pudessem fazer engenharia reversa e quebrar os sistemas de encriptação de Moscou. E a CIA também ajudou a treinar uma nova geração de espiões ucranianos que operaram dentro da Rússia, em toda a Europa, e em Cuba e noutros locais onde os russos têm uma grande presença”. Se em 2016 a CIA já treinava forças militares, não seria de se espantar que o serviço secreto dos EUA já atuasse na Ucrânia alguns anos antes. Os laços são evidentes: durante os episódios do Euromaidan, quem comandava a representação diplomática dos EUA era Victoria Nuland, diplomata e lobista de companhias produtoras de armamentos, como a General Dynamics. Nuland foi peça fundamental na articulação do apoio ao governo provisório recém-formado, composto por extremistas de direita e neonazistas, numa excelente demonstração de que as preferências dos EUA por governos “democráticos” só se aplicam em circunstâncias que lhes são vantajosas.
Como se vê, pouco a pouco as informações sobre o que levou ao estopim da guerra em curso começam a surgir. Escrever e publicar, em 2022, que a CIA operava ao lado da Ucrânia seria dar margem à acusação de fazer “propaganda russa”. É mais ou menos como no caso das ditaduras latino-americanas. Hoje todos sabem dos elos dos militares latino-americanos com os EUA. São informações públicas, presentes nos documentos desclassificados dos próprios serviços secretos estadunidenses. Dizer isso há 40 anos era considerado “teoria da conspiração”. Certo estava Victor Jara, quando incluiu o seguinte aviso em sua canção de partida para Cochabamba: “cuidado com la CIA”. E completamos: cuidado com o lobby das indústrias de armas dos EUA.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.