Na última semana, Marine Le Pen, líder francesa do partido de extrema-direita Frente Nacional, fez declarações de apoio ao partido de esquerda grego Syriza, então favorito nas eleições gregas, vencidas ontem. Le Pen justificou esta posição, afirmando que uma vitória do Syriza fortaleceria o chamado euroceticismo. A política francesa deixou claro que não está de acordo com o programa do partido grego em questões como a imigração, mas garantiu que ficaria “contente” em caso de vitória do Syriza.
Sacramentada a vitória da Coalizão da Esquerda Radical, Le Pen disse que era um “monstruoso tapa democrático na União Europeia” e uma reação ao sofrimento sem precedentes que o povo grego sofreu “sob influência” da UE. Outra aparente contradição entre direita e esquerda é o fato do Syriza ter formado sua base de governo aliando-se aos Gregos Independentes, nacionalistas, como visto nesta matéria de Opera Mundi. Para entender essas aparentes contradições no espectro entre direita e esquerda é preciso lembrar-se de um elemento particular à política europeia: o supranacionalismo.
Fotos: Agência Efe
Jornais gregos destacaram vitória de Tsipras nas eleições de domingo
A União Europeia, desde sua consolidação com o Tratado de Maastricht, em 1993, busca criar uma identidade europeia, que seja abrangente, pan-europeia. O processo dessa criação é bastante similar à criação das identidades nacionais. Adoção de uma bandeira comum, um hino comum, estabelecimento de um dia celebrativo. Talvez o melhor exemplo, justamente porque mais afeta o cotidiano da população, tenha sido a adoção de uma moeda única, o euro, com essa identidade pan-europeia. As notas de euro não contêm símbolos nacionais, não são mais um instrumento da identidade nacional. Estampam símbolos da geografia ou da arquitetura, por exemplo, elementos vistos como patrimônio comum de toda a Europa. Os símbolos nacionais que caracterizam o dinheiro emitido foram relegados às moedas, de circulação regional. Além da nova ideia cultural e social, o conceito de supranacionalismo também foi para as instituições e para a política europeia.
A adoção de uma série de políticas comuns, em temas como imigração, é um exemplo disso, mas talvez o melhor e mais explícito seja o do tratado que objetivava o estabelecimento de uma constituição comum para a União Europeia. Assinado em 2004, deveria ser ratificado por cada país; na maioria dos casos, por seus legislativos. A França, entretanto, decidiu que sua ratificação seria na forma de um referendo popular. Após grande campanha, principalmente da Frente Nacional, o tratado foi rejeitado. Posteriormente, também o foi, via referendo, nos Países Baixos. Posteriormente, a situação foi remendada pelo Tratado de Lisboa, que possui as mesmas características supranacionais, em tom de reforma. O Tratado de Lisboa é composto por cinquenta e cinco artigos que garantem direitos aos “cidadãos europeus”. Estabelece a Corte de Justiça da União Europeia como instância máxima e consolida o Banco Central Europeu, regulado pelo Conselho Europeu, como principal entidade do Euro. Finalmente, concedeu poderes legislativos supranacionais ao Parlamento Europeu, antes visto como um fórum simbólico.
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O tratado, à época, foi alvo de sátiras, dizendo que estabelecia os “Estados Unidos da Europa”, em clara alusão ao fato de sobrepor instâncias nacionais por instâncias europeias. Entrou em vigor no final de 2009, no auge da crise financeira iniciada em 2008, o segundo elemento principal desse novo cenário político europeu. Em um cenário de crise, setores de cada sociedade europeia buscam priorizar seus problemas domésticos, mas com focos diferentes. À esquerda, temos o Syriza grego e o Podemos espanhol como exemplos. Ambos criticam a política de austeridade imposta pela União Europeia, que gera desemprego e problemas sociais dos mais diversos tipos. Argumentam que ambos os países foram um paraíso para investidores nas décadas de 2000 e 1990, respectivamente. Com a eclosão da crise, o mesmo capital estrangeiro transformou os países em reféns e gerou desestabilização social. À direita, temos, como exemplos, a Frente Nacional francesa, o UK Independence no Reino Unido, o Partido da Liberdade nos Países Baixos e a Lega Nord italiana, os chamados eurocéticos.
Apoiadores de Tsipras ouvem discurso do líder do partido em Atenas; Syriza foi grande vencedor das eleições
Para esses partidos, as consequências da crise foram agravadas pela suposta perda de soberania nacional em temas econômicos e sociais, como a necessidade de manutenção do euro e leis migratórias válidas para todo o continente. Para ambos os grupos, o vilão é o mesmo: a União Europeia. O supranacionalismo, hoje, é um elemento essencial na União Europeia; exatamente por isso, é colocado em xeque diversas vezes, e não apenas por setores mais a direita ou mais a esquerda. Assim que a vitória do Syriza foi declarada, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, postou em sua conta no Twitter que “A eleição grega aumentará a incerteza econômica pela Europa. É por isso que o Reino Unido precisa manter seu plano, priorizando segurança em casa”. O Reino Unido não faz parte do euro, não comunga de uma série de elementos da supranacionalidade e seu chefe de governo busca justificar esse isolamento com as eleições gregas. A percepção na política europeia é a de que alguns países “pagam” pelos outros, independente da posição do espectro político. Uns pagam ao financiar a crise vizinha, como a Alemanha. Outros pagam por ser território de especulação, como a Espanha.
Para revitalizar o papel do Estado nacional vale a aproximação entre rivais ideológicos. São rivais dentro de suas fronteiras, mas com perspectivas similares em relação ao supranacional. Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, no primeiro semestre de 2014, o grupo que mais cresceu foi o da esquerda; não foi a direita, como alguns interpretaram. Essa passou por um processo de radicalização, formando agora dois blocos, um de direita e outro de extrema-direita. Isso foi abordado neste texto no blog Xadrez Verbal. Mesmo que Alexis Tsipras, líder do Syriza, tenha rejeitado o apoio de Marine Le Pen e a pecha de eurocético, ao se aliar com os Gregos Independentes, demonstra caminhar nesse sentido, já que o partido toma para si a identidade do euroceticismo. Elemento comum dos dois partidos é seu ano de fundação, 2012 (no caso do Syriza, fusão em apenas um partido). Ambos são derivados do contexto de crise econômica grave que assola a Grécia e ambos veem o mesmo responsável, ou, ao menos, um mesmo ator cujo papel deve ser rediscutido: a Europa.
(*) Filipe Figueiredo é redator do Xadrez Verbal