Em setembro de 2020, funcionários de um centro de detenção para imigrantes no estado da Geórgia, nos Estados Unidos, afirmaram que as imigrantes detidas no local estavam sendo submetidas a histerectomias compulsórias — isso é, estavam sendo forçadas a passar por cirurgias para a retirada dos seus úteros. A denúncia foi negada pela LaSalle Corrections, a concessionária privada que gerencia o local, mas motivou a instalação de um inquérito para apurar as alegações.
A investigação comprovou que ao menos 19 mulheres haviam sido submetidas a histerectomias desnecessárias, todas realizadas sem consentimento.
A notícia evidencia ecos perturbadores de um passado de abusos e horrores eugênicos que continuam reverberando no presente. Os Estados Unidos foram o primeiro país do mundo a adotar programas de esterilização forçada com finalidade eugênica, objetivando o alegado “melhoramento racial” de sua população. O movimento eugênico norte-americano foi fortemente influenciado pelas ideias de “genética comportamental” do britânico Francis Galton, calcadas sobre princípios do darwinismo social e do racismo científico. Galton foi responsável por cunhar o termo “eugenia”, definindo-o como a busca pelo melhoramento genético da raça humana. Ele defendia que a reprodução seletiva era um instrumento fundamental para aperfeiçoar as sociedades e que as classes abastadas conquistaram seu status social em função de seus atributos genéticos superiores.
As ideias de Galton obtiveram ampla aceitação na burguesia norte-americano, uma vez que emprestavam um verniz alegadamente científico para justificar o domínio político e socioeconômico da elite, naturalizando a desigualdade econômica, a exploração e a opressão imposta aos vulneráveis e às minorias étnicas — ao mesmo tempo em que serviam como instrumentos de repressão e controle social. O movimento eugênico recebeu amplo financiamento de organizações privadas poderosas, tais como a Fundação Rockefeller e Instituto Carnegie, que ajudaram a impulsionar ideólogos eugenistas como Charles Davenport, Lothrop Stoddard, Harry Laughlin e Henry Goddard.
Nenhum país reuniu tantos institutos, sociedades e fundações voltadas à promoção do pensamento eugênico quanto os Estados Unidos. O Escritório de Registros Eugênicos (ERO, no acrônimo em inglês) de Charles Davenport contava com enorme prestígio e era referência basilar na formulação de políticas públicas no país. John Harvey Kellogg inaugurou em 1906 sua “fundação para o aperfeiçoamento racial”, que promovia as infames Conferências Nacionais para o Melhoramento Racial. Também financiada por magnatas e intimamente vinculada à elite científica norte-americano, a Sociedade Eugênica Americana fez um grande esforço para popularizar a eugenia, incluindo a organização de feiras e concursos populares para premiar os “melhores bebês” e as “famílias mais aptas” em cada comunidade.
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A eugenia era tratada como uma ciência e os questionamentos aos seus ditames eram ridicularizados como manifestações de ignorância. As teorias eugênicas eram ensinadas nas escolas e nas universidades e eram um dos temas centrais debatidos em congressos científicos. Assim, não demorou para que os eugenistas começassem a moldar boa parte das políticas públicas e da legislação norte-americano durante toda a primeira metade do século 20. Leis de segregação, imigração, naturalização e cidadania foram todas criadas a partir de princípios eugênicos. A Lei de Imigração aprovada em 1924, por exemplo, inteiramente baseada na crença da superioridade genética dos povos nórdicos, germânicos e anglo-saxões, determinava que os fluxos imigratórios de quaisquer outras etnias — incluindo aquelas oriundas do Sul e do Leste da Europa — deveriam ser desestimulados, de modo a não comprometer “o futuro da raça americana”.
Testes de QI se tornaram uma obsessão dos eugenistas. Um relatório produzido pelo Comitê Eugênico dos Estados Unidos recomendava a adoção de testes de QI para barrar a entrada de “pessoas inferiores” e argumentava que se esse expediente já estivesse sendo utilizado “seis milhões de estrangeiros que hoje vivem nesse país, com direito de votar e de procriar, jamais teriam sido admitidos”. Um raciocínio semelhante foi apresentado pelos influentes eugenistas Paul Popenoe e Roswell Johnson, que afirmaram, também com base em testes de QI, que cerca de 10 milhões de norte-americanos eram “indesejáveis” e “impróprios para a reprodução”.
O controle da reprodução humana se tornou um dos grandes desafios nacionais. Diversos eugenistas apresentaram projetos para ampliar as taxas de fertilidade dos segmentos da população considerados “aptos” e
diminuir o crescimento demográfico da parcela considerada “indesejável”.
A esterilização forçada dos “indesejáveis” era o caminho mais econômico e logo se tornou lei. Em 1907, o estado de Indiana aprovou a primeira lei de esterilização eugênica compulsória do mundo. A partir de então, programas de esterilização forçada se espalharam pelos estados, acompanhados de normas rígidas de restrição à imigração e de desestímulo à miscigenação. Os principais alvos eram as populações indígenas, negras e latino-americanas, bem como pessoas com deficiência física ou mental, portadores de epilepsia, cegueira e surdez, indivíduos em situação de vulnerabilidade ou considerados “socialmente inadequados”, como alcóolatras, presidiários, moradores de rua, prostitutas, etc. Ao todo, 33 estados adotaram programas de esterilização compulsória.
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Centenas de milhares de pessoas foram vítimas desses procedimentos. Pessoas institucionalizadas eram alvos frequentes dos programas de esterilização forçada. A base legal para essas intervenções foi referendada pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1927, no julgamento do caso de Carrie Buck — uma mulher pobre da Virgínia que foi esterilizada contra sua vontade sob a alegação de que poderia ter herdado traços psicopatológicos de sua mãe, que era portadora de problemas mentais. A Suprema Corte julgou a intervenção como correta, criando um precedente utilizado para esterilizar mais de 65.000 pessoas com problemas mentais entre as décadas de 1920 e 1970.
Assim como as demais iniciativas eugênicas, os programas de esterilização forçada contaram com amplo apoio da classe médica, dos cientistas e da imprensa nos Estados Unidos. Eram apresentados como ferramentas admiráveis e modernas de engenharia social, como uma prova do “progresso sem paralelos” da nação. A propaganda rendeu frutos, levando à criação de iniciativas semelhantes em outros países.
O programa de esterilização do estado da Califórnia, de longe o mais abrangente dos Estados Unidos, serviu de inspiração à criação do programa congênere implementado na Alemanha nazista. A própria Fundação Rockefeller ajudou a financiar programas eugênicos na Alemanha — incluindo um projeto que empregou Josef Mengele. O pesquisador Harry Laughlin se gabava do fato de que seu modelo eugênico de esterilização servira de base para a criação das leis raciais de Nuremberg. E o próprio Adolf Hitler registrou sua admiração pelas políticas eugênicas norte-americanas, afirmando publicamente que a nação americana estava fazendo “um trabalho notável no desenvolvimento de um conceito melhor de cidadania”.
Após a Segunda Guerra Mundial e o conhecimento público dos horrores cometidos pelos nazistas em nome da pureza racial, a eugenia passou a ser duramente criticada e instituições e programas eugênicos foram progressivamente banidos na maior parte do mundo. Os Estados Unidos, entretanto, deram continuidade aos seus programas de esterilização eugênica compulsória até a década de 1970 sem maiores constrangimentos. Entre 1970 e 1976, o Serviço de Saúde Indígena dos Estados Unidos esterilizou 42% das mulheres nativas que buscavam atendimento médico na rede pública. O governo norte-americano também manteve até o fim da década de 70 várias campanhas de esterilização específicas para mulheres negras e latinas dos estados do Sul e do Sudeste, alegando ser uma medida necessária para “diminuir a demanda por programas sociais e conter o aumento da população não-branca, de modo a combater a criminalidade”.
Em algumas regiões dos Estados Unidos, instituições eugênicas continuaram em funcionamento até os anos 80. O estado de Oregon, por exemplo, manteve seu Conselho de Eugenia ativo até 1983 e ainda fazia esterilizações forçadas de minorias até o fim dos anos 80. Colônias, territórios e dependências norte-americanos também foram submetidos à esterilização eugênica compulsória. Em Porto Rico, por exemplo, a eugenia foi instituída por lei em 1937. Em 1965, aproximadamente um terço de todas as mulheres porto-riquenhas já tinham sido esterilizadas à força.
Embora as leis eugênicas tenham sido formalmente abolidas das políticas públicas norte-americanos, esterilizações forçadas continuam acontecendo. Em 2011, um relatório revelou que 148 mulheres detidas em duas prisões da Califórnia haviam sido esterilizadas compulsoriamente. O caso mais recente na Geórgia, de mulheres imigrantes tendo seus úteros arrancados, reforça que, para certos segmentos da sociedade norte-americano, eugenia e nazismo nunca saíram de moda.