“Hitler matou 3 milhões de judeus. Eu adoraria matar 3 milhões de viciados em drogas”. Essa é a obsessão de Rodrigo Duterte à frente da presidência das Filipinas, país do sudeste asiático composto por um arquipélago de 7.000 ilhas e próximo à China e à Indonésia.
Eleito em junho de 2016, Duterte, de 71 anos, provavelmente é o único Chefe de Estado na atualidade assumidamente assassino. “Matei cerca de três deles (usuários). Em Davao (cidade ao sul do país onde governou por 22 anos), eu costumava fazer isso pessoalmente quando era prefeito, só para mostrar aos policiais. Aconteceu e eu não posso mentir sobre isso”, disse, em um encontro com empresários em dezembro.
Não à toa, é conhecido como “o castigador”. Em nota, a Human Rights Watch classifica o primeiro ano do governo de Duterte, completado no último dia 30 de junho, de “calamidade”.
Nas 117 páginas do relatório “Licença para matar”, a entidade documentou 24 episódios suspeitos que resultaram em 32 mortes. A grande maioria das vítimas vivia abaixo da linha da pobreza, assim como 25% da população local, segundo o Banco Mundial.
O roteiro das execuções é parecido. Nas periferias das grandes cidades, como a capital Manila, homens encapuzados chegam em motos durante a noite, invadem barracos, disparam e fogem, deixando próximo aos corpos cartazes onde se pode ler “Eu sou traficante e viciado”.
Detida e morta
A transgênero Ron-Ron DeChavez, de 26 anos, era quem colocava comida na mesa de sua família, composta por outras três mulheres e um recém-nascido, que viviam em um barraco na periferia de Manila. Mesmo sendo a capital, a cidade registra a maior taxa de desemprego das Filipinas, 8,2%, enquanto a média do país é de 6%.
Em 7 de janeiro deste ano, DeChavez foi detida pela polícia. Não houve flagrante de venda de drogas, mas algumas mensagens em seu celular foram interpretadas pelos policiais como “indícios” de que ela negociava entorpecentes. Sua família pagou uma fiança equivalente a 60 reais, DeChavez foi solta, mas, três dias depois, sete homens arrombaram a porta de seu barraco, a levaram para a rua e ordenaram a todos que estavam passando pelo local para irem embora antes de os disparos serem feitos.
“Minha filha sabia que estava errada ao vender drogas, mas fez questão de tentar me ajudar. Não recebemos ajuda do governo e a nossa situação piorou muito desde quando meu marido morreu. Só queria que o presidente Duterte visse como nós vivemos”, afirma a mãe de DeChavez.
Outras histórias contadas no relatório mostram que até quem não era usuário recorrente de drogas virou alvo nas listas dos esquadrões da morte. É o caso de Bonifácio Antônio, motorista de 56 anos e pai de dois filhos, morto em 13 de setembro do ano passado em frente à casa de um amigo. Há alguns anos, ele chegou a recorrer ao Shabu, como é chamada a metanfetamina nas Filipinas.
Agência Efe
O presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte: 'Hitler matou 3 milhões de judeus. Eu adoraria matar 3 milhões de viciados em drogas'
O Shabu inibe o sono, é a droga mais consumida no país e Bonifácio a consumiu, segundo sua família, para enfrentar as longas jornadas de trabalho e os longos congestionamentos de Manila, cidade que, de acordo com pesquisa do aplicativo “Waze”, é a pior do mundo para dirigir. “Inicialmente, eu pensava: ‘Duterte é um homem bom, que vai consertar nosso país e nos livrar da violência’. Mas ninguém, por mais que seja mal, merece ser tratado assim”, desabafa a filha de Bonifácio.
Guerra contra os pobres
A ONG Anistia Internacional, presente em mais de 200 países, também detalha como o alto escalão do governo têm incentivado a policia local, milícias e matadores de aluguel a atacarem usuários e traficantes, sem distinção, de áreas carentes do país. No relatório “Se você é pobre, será morto: execuções extrajudiciais na 'guerra contra as drogas' nas Filipinas”, a entidade contabiliza, entre a posse de Duterte e fevereiro, cerca de 8.000 execuções relacionadas aos esquadrões da morte e acusa as autoridades de plantarem provas, como armas e drogas, e de forjarem inquéritos contra pessoas em situação de vulnerabilidade. A um ritmo de 37 homicídios suspeitos por dia, o total de mortes já ultrapassou 10.000 em julho.
“Não se trata de uma guerra contra as drogas, mas de uma guerra contra os pobres. Os acusados de usarem e venderem drogas estão sendo mortos, muitas vezes com pouquíssimas provas, em troca de dinheiro, em uma economia de assassinatos, mas os chefes dessas organizações criminosas continuam intocáveis”, afirma Tirana Hassan, diretora de crises da Anistia Internacional.
Os inquéritos e depoimentos forjados de policiais alegam que eles eram recebidos a tiros. Na imprensa local, a sucessão de notícias sobre homicídios segue a versão das autoridades. As apreensões de drogas são tratadas como espetáculo midiático em cerimônias públicas, recebendo ampla cobertura e servindo de palanque fora do período eleitoral para aliados de Duterte, líder do Partido Demokratiko Pilipino-Laban.
Críticas no exterior
O senador Alan Peter Cayetano, aliado de Duterte, rebateu as críticas ao presidente filipino em sessão realizada em maio, que tratava do assunto no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, na Suíça. Para Cayetano, os relatórios independentes são “fatos alternativos”. “Não se iludam. Não há uma nova onda de homicídios nas Filipinas, apenas uma estratégia política para fazer parecer que essas mortes são apoiadas pelo Estado. Há uma tentativa deliberada de categorizar todas as mortes como homicídios relacionados à campanha contra a criminalidade e contra as drogas ilegais”, disse.
Políticos da oposição iniciaram no final do ano passado investigações sobre supostas execuções sumárias. Liderados pela senadora Leila de Lima, a Comissão de Direitos Humanos do Senado filipino interrogou peças-chave dos esquadrões da morte. Uma delas, o policial federal Arturo Las Cañas, confirmou ter executado mais de 200 pessoas. Segundo Las Cañas, o presidente é o 'cérebro' desses grupos armados. Na campanha em que saiu vitorioso, Duterte 'aconselhou' os filipinos a matarem qualquer usuário de Shabu. “Vocês tem o meu aval para isso”.
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Em fevereiro, no entanto, Leila de Lima foi presa, acusada de ter recebido propina de traficantes presos entre 2010 e 2015, quando foi ministra da Justiça no governo do antecessor de Duterte, Benigno Aquino. A Human Rights Watch vê perseguição contra a senadora e encara a sua prisão como “baseada em fins políticos”.
“Minha prisão é um sinal assustador do retorno de um governo com fome de poder, moralmente falido e abusivo. Para colocar o domínio da lei em suas mãos, o presidente silencia seus críticos e destrói aqueles que vão contra os seus caprichos. Se eles pensam que vão me impedir de lutar contra esses assassinatos diários, eles estão enganados”, disse de Lima ao sair do Senado, escoltada por policiais no momento de sua prisão.
Em março, uma nova ofensiva foi lançada nesta guerra. O Congresso aprovou, por 216 votos a favor e 55 contra, o restabelecimento da pena morte exclusivamente para crimes relacionados às drogas. Nas Filipinas, a pena capital foi estabelecida e extinta em vários momentos de sua história, mas sua aplicação era maior em condenações por homicídio. Nos tempos em que era colônia espanhola (até 1898) e posteriormente o país esteve sob o comando da ditadura de Ferdinand Marcos (de 1965 a 1986), “conspiração” e “subversão” também eram passíveis de execução.
Apesar de ter sido restabelecida legalmente em março, a sentença de morte já estava sendo aplicada em larga escala há mais tempo pelo presidente, muitas vezes sem direito de defesa e aviso prévio. As dez mil mortes na guerra “contra as drogas” são prova disso. O “castigador” Duterte crê que assim castigará quem pertence a organizações criminosas que desafiam a autoridade do Estado.
Brasileira presa
Yasmin Fernandes da Silva, de 20 anos, está presa desde outubro do ano passado em um presídio feminino de Manila. A goiana vinha de São Paulo em um voo rumo às Filipinas, o 4º principal destino das drogas que saem do Brasil, atrás apenas dos Emirados Árabes, África do Sul e Nigéria, de acordo com a Policia Federal. Ao desembarcar no aeroporto da capital, Yasmin foi abordada pela polícia, que encontrou 6 kg de cocaína em sua bagagem.
O caso de Yasmin está sendo tratado com discrição nos últimos meses. Procurado, o advogado da brasileira nas Filipinas, Kenneth Tiu, não se pronunciou sobre as condições atuais em que sua cliente está presa, nem em que fase se encontra o caso da brasileira na Justiça no momento. Ele apenas ressaltou que, antes de responder a essas perguntas, precisaria de uma autorização de Yasmim (o que não aconteceu até a publicação desta reportagem) para evitar qualquer tipo de constrangimento para ela e sua família no Brasil.
O Itamaraty também adota cautela. Citando o artigo 55 do Decreto 7.724, que dispõe sobre a divulgação de informações relativas à imagem de cidadãos por órgãos públicos, o Ministério das Relações Exteriores reiterou seu posicionamento desde o início do caso: “Yasmin Fernandes Silva vem recebendo assistência consular na Embaixada do Brasil em Manila desde o momento em que houve notificação pelas autoridades locais sobre sua prisão e conta com acompanhamento de advogado e de representantes da Embaixada em todas as etapas do seu processo”.”
As próprias detentas precisam arcar com alimentos e o custo de telefonemas na penitenciária. Nas primeiras semanas de sua prisão, Yasmin reclamou da insalubridade e superlotação de sua cela, que abriga 77 mulheres acusadas de tráfico. Seu maior desejo é ser julgada no Brasil para escapar das penas rigorosas da legislação filipina. No entanto, não há nenhum acordo de extradição já estabelecido entre os dois países.
Extradição
O doutor em direito internacional pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em mediação e arbitragem diplomática Paulo Borba Casella acredita que, mesmo sem um acordo oficial de extradição entre Brasil e Filipinas, há outros caminhos pelos quais o retorno de Yasmim para ser julgada no Brasil pode acontecer. Casella ainda afirma que, mesmo com a aprovação da pena de morte em março no país asiático, a brasileira não pode ser condenada à execução pela Justiça local:
“É um preceito básico do Direito Penal o crime ser julgado pela legislação vigente à época da prisão, nas Filipinas, quando não havia pena de morte no momento em que Yasmin foi detida”.
Países do sudeste asiático possuem legislação rigorosa contra o tráfico de drogas. A maioria dos países na região adota pena de morte para esse crime. Em 2015, a Indonésia executou dois brasileiros condenados por tráfico, Marco Archer e Rodrigo Gularte.
Para o professor e chefe do departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Marcelo Santoro, a cultura de repressão violenta aos traficantes e marginalização de usuários é reflexo da história da região. “A história do Sudeste Asiático é marcada por ditaduras, guerras civis e genocídios. Essa cultura de incipiência de valores liberais e de autonomia individual se manifesta de modo forte em questões como a das drogas, onde tendem a prevalecer políticas conservadoras”, diz.
Ao longo das duas últimas décadas, a região experimentou transições para a democracia, ditaduras chegaram ao fim e países como a Indonésia e Mianmar puderam na última década organizar suas primeiras eleições livres. No entanto, para Santoro, apesar dos avanços, a democracia trouxe novos desafios. “Ironicamente, a democratização nesses países possibilitou a ascensão de políticos 'populistas’, que exploram a repulsa às drogas para ascender ao poder, como Joko Widodo na Indonésia e Duterte nas Filipinas”, afirma.