Segundo uma gravação de áudio inédita acessada pela CNN Chile e divulgada nesta quinta-feira (24/08), o ex-presidente Salvador Allende (1970-1973), deposto pelo golpe de Estado que instaurou a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1988), planejava convocar um plebiscito “contra a revolta militar iminente”.
De acordo com o áudio, Allende iria convocar um plebiscito em 11 de setembro de 1973, dia em que sofreu o golpe de Estado que o tirou do poder e instaurou a ditadura no país latino-americano.
A gravação tem uma hora de duração e mostra, com detalhes, “a intenção de Allende de decretar a aposentadoria de um grupo de generais das Forças Armadas suspeitos de insurreição”. Também demonstra a confiança que o general Carlos Prats, militar mais próximo de Allende, depositava em Augusto Pinochet, que o sucedeu como comandante-chefe do Exército chileno naquele mesmo ano.
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O ´áudio pertencia ao ex-ministro da Defesa do governo Orlando Letelier, que após o golpe militar se exilou na Venezuela e depois nos Estados Unidos, onde se fixou como representante da oposição ao regime de Pinochet. Ele perdeu a nacionalidade chilena, e posteriormente, foi assassinado em um atentado, com uma bomba plantada em seu veículo, em Washington.
Acesso à gravação
A repórter da CNN Chile responsável pela matéria, Viviane Encina, tomou conhecimento da gravação após uma conversa com o ex-ministro de Minas do Chile durante o governo de Allende, Sergio Bitar, em uma série de reportagens especiais sobre os 50 anos da ditadura no país.
Na ocasião, Bitar revelou que a gravação foi feita pelo conselheiro político pessoal de Allende, Joan Garcés, em 1974, em um encontro com Letelier logo após sua libertação do Campo de Concentração da Ilha Dawson, aparelho repressivo utilizado pela ditadura de Pinochet.
Neste encontro, Letelier comentou a Garcés sobre um almoço reservado, organizado por Allende no Palácio de La Moneda (sede da Presidência do Chile), em 10 de setembro de 1973, um dia antes do golpe. Nesta reunião, o então presidente tinha o objetivo de “rever, analisar e procurar uma solução democrática face a uma revolta militar iminente”, planejando anunciar um plebiscito no dia seguinte, segundo a CNN.
Além de Letelier, Garcés e Bitar, o jornal aponta que outras personalidades políticas do governo de Allende estavam presentes no almoço, como José Tohá (ministro do Interior e posteriormente da Defesa) e Carlos Jorquera (secretário de Imprensa).
Segundo a descrição da gravação feita pela CNN, Letelier disse a Garcés em 1974, recordando o almoço pré-plebiscito e as possibilidades de retardar o golpe: “as medidas que o governo iria tomar face aos militares golpistas tinham que ser aceleradas. A impressão era que as coisas estavam marcadas para aquela semana, mas que, até certo ponto, se não acontecessem e nos dessem um pouco de tempo, e o anúncio do presidente sobre o plebiscito tivesse acontecido, teríamos alguma margem de manobra para podermos remover um certo número de oficiais que já tinham sido identificados e poderíamos acelerar as investigações”.
A intenção de convocar a aposentadoria de um grupo de generais suspeitos por insurreição foi uma “terceira alternativa apresentada a Allende na reunião”. Letelier classificou essa opção, segunda a gravação, como “a mais drástica”.
Wikicommons
Ex-presidente do Chile, Salvador Allende, ao lado de seu ministro da Defesa, Orlando Letelier
“Antes de sexta-feira (7 de setembro de 1973), ou seja, nessa mesma semana, uns seis ou sete generais seriam convocados para a aposentadoria. Isso poderia ser feito imediatamente após o presidente anunciar o plebiscito e era o recomendado por Carlos Prats”, afirmava o ex-ministro da Defesa de Allende.
De acordo com a gravação, apesar de concordar com a abordagem, Allende combinou de discutir a alternativa novamente no dia seguinte com Letelier, reiterando que esta era uma recomendação do comandante-chefe do Exército chileno, o general Prats. O oficial “sentiu que o golpe aconteceria em 14 de setembro de 1973”, mas “achava que Pinochet não estaria no grupo dos traidores” e tinha grande confiança em quem se tornaria, dias depois, o líder da junta militar que instalou a ditadura no Chile.
“Carlos Prats não me refutou de forma muito categórica [quando mencionou uma possível traição de Pinochet para uma ala militar que fosse a favor do golpe] mas, em todo caso, insistiu que achava que Pinochet tinha uma atitude de lealdade para com o presidente e que, em qualquer caso, não estaria entre os traidores”, fala Letelier na gravação.
O ex-ministro da Defesa menciona então que desde o momento que chegou à sede do Ministério, nos primeiros dias de setembro, “se deu conta que o golpe vinha sendo armado”.
“É verdade que vi que as coisas vinham mais do lado da Marinha, mas presumi que não poderia haver tentativa de golpe sem o Exército”, menciona a gravação.
Pinochet contava com “uma certa confiança”
A confiança de Prats, e consequentemente de Letelier em Pinochet não era sem fundamento. O ex-ministro lembra no áudio gravado em 1974 que em 3 de setembro de 1973, o então general referiu-se aos possíveis militares apoiadores de um golpe contra Allende como “malucos” e “desequilibrados”.
“O que estão propondo é um golpe de Estado – e que morram 100 mil pessoas antes de haver um confronto, uma guerra civil em que um milhão de pessoas possam morrer. Estou fazendo todo o possível de acordo com o que meu General Prats me pediu antes, com o que o presidente me pediu, estou visitando unidades e as coisas estão melhorando, mas quero dizer que na minha última visita, há pessoas que estão em uma atitude muito difícil”, chegou a afirmar Pinochet, pouco antes de reconhecer que tais pessoas deveriam “ser aposentadas imediatamente”.
Com base nessa sua última visita e nas tais “atitudes difíceis”, Pinochet pediu a Letelier um tempo para “consolidar a situação das pessoas de confiança e visitar as unidades”.
Letelier conclui na gravação que a conversa com Pinochet o preocupou e, após um ou dois dias, pediu a Allende uma reunião da coalizão governista, Unidade Popular. Segundo ele, neste encontro, declarou aos presentes que Pinochet havia dito que caso houvesse um revolta, seria geral, de todos os três setores das Forças Armadas no Chile, e não apenas do Exército, repetindo a tentativa de golpe contra Allende em 29 de junho de 1973, conhecida como “tanquetazo”.