Embora as eleições na Argentina tenham reduzido a zero as chances de alinhamento entre os dois principais parceiros comerciais na região pelos próximos anos, analistas ouvidos pela RFI não acreditam em rupturas nessa relação. Mas divergem quanto aos obstáculos que Javier Milei pode criar sobre as pretensões internacionais de Lula, especialmente no Brics
Distanciamento, aproximação, pragmatismo. Essa última alternativa é a mais ventilada por interlocutores do presidente Lula quando o assunto é a postura que o país deverá ter frente ao que vem por aí com o governo autointitulado de ‘ultraliberal’ na Argentina.
A eleição de Javier Milei vem num momento em que Lula busca alçar voos mais altos nas relações internacionais e o fortalecimento regional sempre esteve nos seus discursos. Por isso, nos corredores políticos em Brasília, o compasso ainda é de espera. Nem atacar, nem elogiar, mas aguardar os próximos passos de Milei.
“Há poucas certezas e muitas dúvidas. A certeza é que haverá mudanças radicais. As dúvidas se referem a que mudanças serão essas. Imagina-se que várias bravatas, como fechar o Banco Central, não fazer negócios com o Brasil e a China, brigar com o FMI, não pagar a dívida externa, diminuir os benefícios sociais, esses pontos que foram propagados na campanha eleitoral por Milei, devem ser relativizados. Embora todos esses pontos possam ser tocados de alguma forma”, afirmou à RFI Gilberto Braga, economista e professor do IBMEC.
Para o analista, se é inviável estreitar ações no campo político, na área econômica é preciso ser prático para não perder negócios. “Tanto o Brasil quanto a Argentina têm muito a perder se o relacionamento comercial entre eles ficar mais difícil por conta de posicionamentos políticos e ideológicos. A importância que o comércio exterior tem para os dois lados sugere que, de alguma maneira, haja esforço para uma atuação pragmática, diplomática, para não se rasgar dinheiro”, ressaltou Braga.
Lula x Milei
Os analistas ouvidos pela RFI não acreditam num rompimento total das relações bilaterais, nem mesmo no âmbito do Mercosul, ainda que os negócios possam esfriar no bloco devido à nova postura de Buenos Aires. Mas há divergências quando se analisa o impacto da eleição de Milei no protagonismo que o presidente Lula almeja no cenário mundial, inclusive nas relações Sul Global.
Vinícius Rodrigues Vieira, professor da Faap e da FGV, citou o Brics para afirmar à RFI que o Brasil pode ficar isolado na tentativa de assegurar no grupo uma postura mais equilibrada entre Ocidente e Oriente, já que tem relações econômicas com países dos dois lados:
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Analistas não acreditam no rompimento total das relações bilaterais
“A Argentina foi claramente convidada para os Brics como forma de o Brasil contrapor-se ao poder da China e às afinidades de Pequim com países como Arábia Saudita, Irã e os Emirados Árabes. Se a Argentina não aderir mesmo ao Brics, tal como Milei prometeu, isso deixa o Brasil sozinho no bloco num contexto de pressão muito forte, porque nós temos Rússia e China claramente querendo converter os Brics numa aliança antiocidental”.
Vieira disse que a Índia, embora esteja mais próxima do Ocidente, tem uma agenda própria de interesses, enquanto a África do Sul depende muito de investimentos chineses. “Isso complica o protagonismo de Lula, não apenas dentro dos Brics, mas também num contexto fora bloco, visto que nenhuma potência é forte se não tiver força consolidada na sua região. E se o Mercosul se enfraquece, isso também atrapalha os planos de Lula”.
Já o analista internacional William Gonçalves, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, não acredita que Milei terá peso para ofuscar as pretensões do presidente brasileiro como player internacional. “Jair Bolsonaro não investiu no Mercosul, mas o Mercosul não acabou. Milei pode criar problemas, mas os problemas que ele criará são problemas maiores para a Argentina. E o presidente Lula não precisa da Argentina para ter algum prestígio no Sul Global, isso já é reconhecido. Inclusive o Brasil é país fundador do Brics”.
Para Gonçalves, a Argentina terá de colocar na balança o tom beligerante para não prejudicar os próprios interesses. “Nada que Milei disse até agora ajuda a Argentina a sair dessa grave situação econômica em que se encontra. E ele vai mesmo romper com o Mercosul e fazer acordo separado com a União Europeia? Uma coisa é a campanha. Outra coisa é governar. E as decisões que ele tomar terão de passar pelo crivo do Congresso, e ele não tem base parlamentar. Então, ele dependerá da direita. Não acredito que a direita argentina fará as loucuras que ele disse que irá fazer”.
Os especialistas em relações internacionais concordam que a artilharia verbal de Milei contra países como Brasil e China esbarra numa lógica comercial simples. “Se não vender para o Brasil, que Milei afirma ser comunista, mas que todo mundo sabe que não é, aí a Argentina terá de direcionar seus produtos a outro comprador, que seria a China. Aí sim comunista, ao menos na política, já que é controlada pelo Partido Comunista”, ironizou Vinícius Vieira.