Após sair da pior fase da crise econômica no primeiro semestre de 2022, quando encerrou o ciclo de hiperinflação e deixou a recessão, a Venezuela terminou o ano passado registrando crescimento no PIB e confirmando a tendência de melhora.
Segundo o Banco Central venezuelano, o país cresceu 17,7% entre janeiro e setembro de 2022 em relação ao mesmo período de 2021, com uma predominância do setor não petroleiro.
Entretanto, os números positivos não foram suficientes para acalmar o mercado cambiário e conter o aumento nos preços. Nos últimos quatro meses, o dólar disparou com mais força e rompeu a estabilidade que havia sido mantida durante todo o primeiro semestre do ano passado.
No início de outubro, a moeda estadunidense estava cotada em cerca de 8,20 bolívares, mas em janeiro a cotação superou os 20 bolívares, uma alta de quase 60%. As turbulências no câmbio fizeram aumentar a brecha entre o dólar oficial e o paralelo, elemento que havia praticamente caído em desuso na primeira metade do ano passado. A disparada do dólar acarretou em mais inflação, já que o país vive um processo de dolarização forçada e os preços são, em sua grande maioria, expressados em dólares.
O BC da Venezuela, que publicou o Índice de Preços ao Consumidor só até o mês de outubro, afirma que setembro foi o mês com a maior inflação de 2022, marcando 28,7%. Já para os meses de novembro e dezembro, os únicos dados são do Observatório Venezuelano de Finanças, entidade privada ligada à oposição. Segundo o OVF, o país registrou alta de 21,9% e 37,2% nos dois últimos meses do ano.
Apesar de ainda não ser considerado um processo hiperinflacionário, as cifras causam preocupação de analistas pois voltam a marcar variações de dois dígitos, rompendo a tendência do ano passado.
Na última terça-feira (24/01), a vice-presidenta da Venezuela, Delcy Rodríguez, apresentou os dados de inflação anual do país durante uma reunião com empresários turcos. Segundo ela, os preços registraram uma alta de 234% em 2022. Apesar do número ser o maior da América do Sul e um dos maiores do mundo, ele é o mais baixo na Venezuela desde 2016.
Dolarização e inflação
“O tema do dólar é pontualmente um dos maiores desafios que existem”. Essa é a opinião de Katiuska López, economista venezuelana e pesquisadora da Universidade Simón Bolívar. Ao Brasil de Fato, ela diz acreditar que a melhor maneira de explicar as perturbações no câmbio é através de uma análise política e não meramente econômica.
“O tratamento ou uma política concreta que consiga controlar o tema do dólar ainda não foi eficiente. E por quê? Porque o tema do dólar paralelo é uma arma, é um ataque direcionado às políticas econômicas que se tomem”, afirma.
A tese de López é compartilhada por muitos economistas de esquerda na Venezuela, que defendem que grande parte da inflação dos últimos anos teria sido induzida por ataques à moeda nacional, o bolívar, através de portais de internet que publicam cotações paralelas da moeda estadunidense.
Aaron Sosa / ABN – Agência Bolivariana de Notícias
Apesar de ainda não ser considerado um processo hiperinflacionário, as cifras venezuelanas causam preocupação de analistas
“Esse dólar não está baseado em um argumento técnico, o que existe é uma manobra política por trás desse dólar que causa muito dano à economia e essa nova subida é mais uma onda de ataques que visa frear o processo de recuperação”, diz a pesquisadora.
Já para economistas como Hermes Pérez, professor da Universidade Metropolitana de Caracas e ex-funcionário do Banco Central da Venezuela, o diagnóstico do problema é diferente. Ao Brasil de Fato, ele afirma que a disparada do dólar nos últimos meses “é como uma febre em um organismo doente, e essa doença é o problema inflacionário que ainda não foi controlado”.
“Entre maio e novembro tivemos uma inflação média de 14% e os preços triplicaram, por isso é que a taxa de câmbio aumentou, porque no final das contas os bolívares que existem em excesso na economia foram usados para comprar bens e ativos, como o dólar, para escapar da inflação”, argumenta.
O professor ainda acusa o governo de desequilíbrio fiscal e defende uma saída ortodoxa para controlar a inflação no país, que passaria por reduzir gastos e aumentar ingressos. “Precisamos de uma política fiscal razoável, uma política monetária que não financie os gastos do Estado e de um plano que refinancie a dívida externa [congelada desde 2017]”, diz.
Questionado sobre como aplicar um programa econômico deste tipo ao mesmo tempo em que mantém a rede de proteção social da Venezuela, em um país no qual 50% da população vive em situação de pobreza multidimensional, Pérez argumenta que há margem para isso com a leve recuperação da indústria petroleira, a principal fonte de ingressos do país.
Recuperar os salários
Diante da ameaça representada pelo dólar e pela inflação, mas com boas perspectivas de crescimento econômico na direção de se recuperar da queda de 70% no PIB nos últimos 12 anos, o governo venezuelano busca se equilibrar entre a narrativa da superação da crise e dos pedidos de calma diante das demandas populares.
Nas primeiras semanas de 2023, sindicatos de diversos setores públicos têm se mobilizado para exigir aumentos salariais e maiores investimentos em suas áreas. Enfermeiros, médicos e principalmente professores são as categorias que encabeçam as marchas nas principais capitais do país.
A demanda fundamental é o aumento no salário mínimo, que se desvalorizou rapidamente ao longo dos últimos meses pelas perturbações cambiais do segundo semestre de 2022. Quando foi reajustado pela última vez, em março do ano passado, o salário mínimo venezuelano estava em cerca US$ 40, mas após a disparada da moeda estadunidense hoje estaria valendo cerca de US$ 8,5.
Um aumento do salário mínimo elevaria os vencimentos dos setores públicos e privados. Segundo a última pesquisa de condições de vida realizada anualmente pela Universidade Católica Andrés Bello, a média salarial dos trabalhadores da área privada era de US$ 150. Já o setor público e o informal registraram uma remuneração média de US$ 113 e US$ 142, respectivamente.
No próximo dia 30 de janeiro, governo, sindicatos e representantes patronais devem se reunir para a próxima rodada de negociações do Foro de Diálogo Social. A iniciativa teve início em abril do ano passado e busca discutir o cumprimento de convênios sobre salário mínimo e outras convenções trabalhistas no país. A Fedecâmaras, maior entidade do setor privado venezuelano e que participa dos diálogos, afirmou que discutirá com os representantes do Executivo uma saída para o “impostergável problema” dos salários no país.
Para o professor Hermes Pérez, os próximos passos do governo e dos agentes econômicos podem ser fundamentais para definir uma possível melhora nos ingressos das famílias, algo que o economista considera possível mesmo no atual cenário econômico. “A Venezuela chegou a ter um dos salários per capita mais altos do mundo e não acho que podemos voltar a esse nível, mas não é possível, por exemplo, que a Venezuela agora tenha um salário mínimo menor do que o Haiti e Cuba. Não seria uma melhora imediata importante, mas efetivamente pode haver uma melhora”, afirma.
Katiuska López, pesquisadora da Universidade Simón Bolívar, também disse acreditar que melhorias salariais são possíveis, principalmente se o governo aplicar a receita que ela considera fundamental para conter o aumento nos preços: o aumento da produtividade, seja ela petroleira ou não.
“Se aumentarmos a produtividade, as empresas devem consumir mais e contratar mais mão de obra que, por sua vez, voltam a consumir etc. Quando você aumenta a produção a nível macro você faz com que a economia gire, é nisso que devemos concentrar esforços”, diz.