“Estados Unidos participaram com intervenções na história política haitiana muito intrusivas e profundas ao longo das últimas décadas”, afirmou João Fernando Finazzi com relação à escalada da crise no Haiti, com gangues comandadas por Chérizier e a renúncia do primeiro-ministro Ariel Henry.
A Opera Mundi, o doutor e mestre em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas disse que essas ações norte-americanas ao longo do tempo deixaram o país caribenho em uma “profunda tragédia humanitária”.
“Ainda é difícil ter uma ideia clara de onde as coisas irão chegar, mas a situação tem se deteriorado cada vez mais, e os próprios grupos armados também não indicam claramente qual caminho a seguir ou quem irá tomar o poder e qual o projeto. Contudo, a sociedade civil haitiana sempre foi muito vibrante e atuante”, declarou.
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O país não tem presidente nem Parlamento e não realiza eleições desde 2016. No início deste mês, as gangues que controlam grande parte da nação lançaram uma série de ataques a locais estratégicos da capital, Porto Príncipe, como a sede do Presidência, aeroporto e prisões. Esses atos exigiam a demissão de Henry.
Por conta da situação, o governo já havia decretado estado de emergência, que permanecerá em vigor pelo menos até 03 de abril, e toque de recolher noturno, medida que foi prorrogada até a próxima quinta-feira (14/03), segundo o premiê interino, Patrick Michel Boivert.
Para Finazzi, todos esses acontecimentos são “consequências de décadas de violência estrutural sofrida pela população haitiana, de fracassos de lideranças nacionais e de engajamentos contínuos da chamada comunidade internacional”.
Leia na íntegra a entrevista de Opera Mundi com João Finazzi:
Opera Mundi: fontes locais falam de uma escala sem precedentes na violência. O que está acontecendo no Haiti?
João Finazzi: o Haiti luta até hoje contra os legados da escravidão e das respostas internacionais à sua revolução e tudo que ela simboliza. Os últimos acontecimentos são consequências de décadas de violência estrutural sofrida pela população haitiana, de fracassos de lideranças nacionais e de engajamentos contínuos da chamada “comunidade internacional”.
Os atos de violência praticados pelos grupos armados tem se intensificado desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em julho de 2021. No ano passado, o conflito entre estes grupos levou ao deslocamento forçado de cerca de 200.000 pessoas e as estatísticas mostram um aumento significativo de mortes violentas, sequestros e estupros, que são utilizados para aterrorizar moradores de comunidades rivais.
Esta violência acompanha a crise política e a reforça, uma vez que há uma relação muito próxima entre as elites haitianas e estrangeiras e os grupos armados no Haiti. O aumento da violência afeta o fornecimento de assistência humanitária, dificulta a realização de eleições e piora o funcionamento de toda a infraestrutura básica de saúde, educação, alimentação, transportes, comércio e moradia. Por outro lado, a ausência de altas autoridades vistas como razoavelmente legítimas – Henry governava por decreto, postergou eleições por três vezes e o mandato do que restava de membros do Parlamento terminou no início de 2023 – também dificulta as iniciativas para lidar com o quadro de violência. Ao todo, são sete anos desde a última eleição realizada.
No entanto, a escalada na violência dos últimos dias é sem precedentes no Haiti recente. Há uma grande novidade em termos de poder de fogo, unidade dos grupos armados e organização dos ataques, que têm como alvo prioritário as polícias haitianas e símbolos do Estado. Ela começou no final de fevereiro, quando Henry anunciou na Guiana que postergaria novamente as eleições no país. Depois, ele foi ao Quênia, onde buscou garantir a criação da missão multinacional policial autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU em outubro de 2023, após Rússia e China suspenderem o veto que vinham colocando desde quando ela foi proposta em outubro de 2022.
Nos fale sobre as gangues no país. Qual a origem da influência desses grupos armados nos paramilitares ligados ao governo do ex-presidente haitiano François Duvalier, também conhecido como Papa Doc?
A história haitiana é repleta de exemplos da atuação de grupos armados não-estatais ligados às elites políticas e econômicas. Papa Doc criou a brutal milícia personalista dos tonton macoute para fazer um contrapeso ao Exército, que até então era o responsável por escolher quem governaria o país. Mesmo com a queda da ditadura em 1986, os macoutes permaneceram atuantes, perseguindo membros da oposição democrática, principalmente aqueles alinhados a Jean-Bertrand Aristide, e passaram a se ligar a indivíduos poderosos dentro do Exército, como “adidos” (attachés). Neste período, as organizações de bairro (baz) também passaram a se armar e a criar brigadas de autodefesa (um pouco parecido com o que vimos com o movimento bwa kalé no ano passado).
Em 1990, após a histórica eleição de Jean-Bertrand Aristide e o golpe militar de 1991, os militares tomaram o poder e passaram a atuar em conjunto com os attachés e algumas destas brigadas de bairro para se manter no poder.
Foi um período de brutal repressão, até que, em 1994, Aristide foi reconduzido ao governo haitiano com uma intervenção liderada pelos Estados Unidos. Aristide então decretou a desmobilização das Forças Armadas do Haiti e criou, sob atuação norte-americana, uma força policial. Mas este processo foi um grande fracasso: diversos militares permaneceram organizados de forma paramilitar (e posteriormente vieram a ter um papel no golpe de 2004 que retirou novamente Aristide) e macoutes notórios foram inseridos na nova polícia.
Tudo isso ocorria em um momento em que grupos do crime organizado transnacional passaram a deter cada vez mais poder no Haiti, que é uma rota do tráfico. Paramilitares, policiais e algumas brigadas armadas passaram cada vez mais a atuar em ações criminosas e se articular com estes grupos transnacionais.
Praticamente todos os recentes governantes do Haiti têm sido acusados de financiar e armar alguns destes grupos e usá-los para se manter no poder. Ao cabo, o que se construiu ao longo destas últimas décadas, conforme o grande estudioso James Cocklayne, são dois sistemas de proteção em que as populações marginalizadas recorrem a grupos de autodefesa ou são submetidas à extorsão de alguns destes grupos, que ficam no limiar entre o crime e a política, e as elites recorrem a empresas privadas de segurança, já que a polícia é muito desestruturada.
Quem é Jimmy ‘Barbecue’ Chérizier, o poderoso líder das gangues do Haiti?
O nome de Chérizier passou a aparecer nos noticiários internacionais em 2018. Naquele momento, um massacre tinha sido cometido na favela de La Saline, durante um período de grandes protestos contra o governo de Moïse. Após pressões de movimentos haitianos nos EUA, que acusavam o envolvimento de membros do governo, e mobilizações de congressistas norte-americanos, o governo de Donald Trump acusou Chérizier de envolvimento no crime e incluiu, em 2020, seu nome na lista de indivíduos sancionados internacionalmente.
Com a morte de Moïse, Chérizier, que era então acusado de ser aliado do presidente, passou a atuar de forma cada vez mais intensa. Ele é a principal liderança da coalizão de gangues “G9 e aliados” e, desde então, tem se pronunciado com uma retórica cada vez mais revolucionária, nacionalista e anti-imperialista. Durante os últimos acontecimentos, Chérizier clamou por uma unidade entre as gangues contra Henry, que parece estar surtindo efeito.
Se a crise de segurança que o Haiti atravessa atualmente se prolongar, o que pode acontecer?
O Haiti está passando por uma profunda tragédia humanitária: fome, violência, desemprego, etc. Ao mesmo tempo em que há um profundo impasse político. A probabilidade dos EUA enviaram tropas não é de toda descartada, mas ainda é muito baixa devido às suas condições internas, todo o problema com relação a Israel e ao genocídio em Gaza, além das eleições norte-americanas.
Ainda é difícil ter uma ideia clara de onde as coisas irão chegar, mas a situação tem se deteriorado cada vez mais, e os próprios grupos armados também não indicam claramente qual caminho a seguir ou quem irá tomar o poder e qual o projeto. Contudo, a sociedade civil haitiana sempre foi muito vibrante e atuante. Alguns analistas e atores locais tem usado a palavra revolução, embora a história haitiana recente nos ensine a ser céticos.
Qual é o papel dos EUA na crise do Haiti?
É enorme, tanto por ação quanto por inação. Em setembro de 2021, um diplomata norte-americano adquiriu notoriedade por se retirar do cargo de enviado especial dos EUA ao Haiti, denunciando a política de repatriação forçada que os norte-americanos vêm seguindo e o apoio que até então estavam dando para Ariel Henry. Ele dizia que ou os EUA deveriam rapidamente aumentar sua assistência à polícia haitiana ou se deparar com a necessidade de, no futuro, ter que enviar dezenas de milhares de tropas ao país.
Contudo, os EUA, como dito acima, participaram com intervenções na história política haitiana muito intrusivas e profundas ao longo das últimas décadas. As intervenções internacionais tiveram como efeito um enfraquecimento significativo das instituições haitianas, já que passaram a ser construídas e garantidas por um pacto entre elites governantes nacionais e internacionais, e não com seus representados. Além disso, o quadro de miséria e desigualdade do Haiti só pode ser compreendido considerando os constantes esforços que os EUA tiveram ao longo da história para manter as condições para mão-de-obra barata no país e apoiar oposições a políticos que buscassem romper com a lógica neoliberal.