Esse foi um momento esperado por décadas pelas mulheres francesas. A lei “da liberdade garantida de recorrer ao aborto” entrou oficialmente na Constituição francesa nesta sexta, 8 de março, Dia Internacional da Luta pelos Direitos das Mulheres, em uma histórica cerimônia em Paris.
“Foi preciso gravar o irreversível”: foi desta forma que o presidente francês, Emmanuel Macron, apresentou a oficialização da entrada da “liberdade das mulheres à recorrerem ao aborto” na Constituição da França. O país se tornou assim o primeiro a inscrever o direito na Carta Magna.
Em uma emocionante cerimônia no Ministério da Justiça, no 1° distrito de Paris, o texto recebeu um selo que oficializa a entrada da lei na Constituição. Coube ao ministro francês da Justiça, Éric Dupond-Moretti, fabricar diante do público que acompanhava a cerimônia a peça de cera que gravou a constitucionalização do aborto.
Em seguida, o texto da legislação foi repassado a Claudine Monteil, uma das signatárias do “manifesto das 343”, célebre petição redigida por Simone de Beauvoir e publicada em 1971 na revista Nouvel Observateur em apelo à descriminalização do aborto na França. Na época, as 343 mulheres que assumiram ter recorrido ao procedimento clandestinamente corriam o risco de serem processadas e presas.
Durante um discurso, o presidente francês justificou a necessidade de inscrever na Constituição “a liberdade garantida às mulheres de recorrerem ao aborto” devido “aos recuos da nossa época”. Macron criticou “as forças reacionárias” que “miram primeiro e sempre nos direitos das mulheres antes de atacar, em seguida, os direitos das minorias, de todos os oprimidos, de todas as liberdades”.
Execução na guilhotina
O chefe de Estado lembrou que a interrupção voluntária da gravidez (IVG), como o aborto não-espontâneo é chamado na França, chegou a ser um crime punido com pena de morte durante o sangrento regime de Vichy, quando a França foi ocupada pela Alemanha nazista, de 1940 a 1944. Macron ressaltou o caso de Marie-Louise Giraud, guilhotinada “em nome da proteção da família e da pátria” por realizar abortos durante o período.
O presidente também citou o nome de várias mulheres que lutaram pela legalização deste direito na França, como a médica Madeleine Pelletier, que realizava abortos clandestinos no início do século 20, a advogada Gisèle Halimi, que defendeu a adolescente Marie-Claire nos anos 1970, vítima de uma gravidez após um estupro, e a ex-ministra Simone Veil, que defendeu e aprovou a lei que descriminalizou a interrupção voluntária da gravidez em 1975.
“O selo da República grava neste dia um longo combate em prol da liberdade”, afirmou o chefe de Estado diante de centenas de personalidades convidadas a participar da cerimônia na Praça Vendôme, suscitando forte emoção e lágrimas entre o público. Entre parlamentares e ministros, marcaram presença celebridades, como a atriz Catherine Deneuve, além de representantes de associações feministas.
Sob aplausos, Macron ainda expressou o desejo de inscrever a liberdade de recorrer ao IVG na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. “A França se tornou hoje o único país no mundo cuja Constituição protege explicitamente o direito à interrupção voluntária da gravidez, em todas as circunstâncias. E não descansaremos enquanto essa promessa não for cumprida em todo o mundo”, reiterou.
Nos arredores do Ministério da Justiça, milhares de pessoas também se reuniram para acompanhar o evento. Foi o próprio presidente que convidou cidadãos e cidadãs a participarem da cerimônia, uma constitucionalização legislativa aberta ao público pela primeira vez na história. Após o discurso, Macron foi em direção à multidão com quem conversou durante quase uma hora.
Aprovação em Congresso extraordinário
A constitucionalização do aborto foi uma promessa feita pelo presidente francês a pedidos de organizações feministas. A iniciativa ocorreu após o cancelamento do decreto Roe vs Wade, nos Estados Unidos, em 2022, que suscitou o temor de que o mesmo retrocesso pudesse ocorrer na França.
O projeto de lei foi debatido durante 18 meses e passou por votação na Assembleia de Deputados, em janeiro, e pelo Senado, em fevereiro. Em seguida, como ocorre a cada revisão constitucional na França, o texto foi votado em Congresso extraordinário, pelas duas câmaras, em 4 de março. Por 780 votos a favor e 72 contra, deputados e senadores aprovaram a inscrição do IVG na Carta Magna.
Apesar de ter obtido o aval massivo dos parlamentares, a constitucionalização do aborto encontrou diversos obstáculos nos últimos meses, como a recusa do termo “direito ao aborto”, que deu lugar à expressão “liberdade garantida” às mulheres que desejarem recorrer à prática. Vários parlamentares, entre eles o próprio presidente do Senado, Gérard Larcher, também se manifestaram contra o projeto por acreditarem que a lei que já premitia às mulheres a interromperem gestações legalmente na França não estava ameaçada.
Um direito desde 1975
O aborto foi descriminalizado em 1975 na França, graças ao combate da ministra francesa Simone Veil, ícone da emancipação feminina e sobrevivente do Holocausto. Em 2022, o prazo máximo para a realização do procedimento aumentou de 12 para 14 semanas.
A mudança não alterou o número de gestações interrompidas, como alegavam conservadores. Há cerca de duas décadas, o número se mantém estável: cerca de 230 mil abortos voluntários são realizados por ano no país.
Embora em torno de 80% dos franceses apoiem a iniciativa, segundo pesquisas, na segunda-feira (4) bispos expressaram “tristeza” com a decisão do Congresso, assim como grupos conservadores. A organização Marcha pela Vida chegou a realizar uma manifestação durante a votação em Versalhes, “para defender a vida das crianças que ainda não nasceram e todas as vítimas do aborto”.