Quando emitiu sua carteira de trabalho definitiva, em 1968, aos 18 anos, Marisa Letícia já era sênior na labuta.
A menina nascida em São Bernardo do Campo, que cresceu em casa de taipa sem energia elétrica, saía apenas para ir à igreja ou vender legumes com os irmãos – era a décima de 12 filhos de uma família dedicada à agricultura de subsistência.
A jornada começava na hora do almoço e ia até a noite. Dormia na casa dos patrões de segunda a sexta. De manhã, frequentava a escola.
Com 10, já era babá de três. Aos 11, para que cuidasse das crianças o dia inteiro, passou a cursar o ginasial à noite.
Aos 13, pajem de quatro, deixou essa tarefa para ser contratada como operária na fábrica da Dulcora, após o pai emancipá-la.
E o que Marisa, essa garota do ABC, queria ser? Professora.
Mas, no ano seguinte, deixaria de estudar sem terminar o primeiro grau. Depois, cursaria culinária e corte-costura.
Em 1970, aos 20, recém-casada, pediu demissão para se dedicar à casa e ao marido, que seria assassinado num assalto dentro do táxi com o qual ganhava a vida. A viúva estava grávida.
Dias depois, Marisa perderia também o pai. A jovem passou a dividir casa com a mãe e os irmãos.
Com seu bebê ainda pequeno, trabalhou no açougue do tio e no caixa do bar de uma prima, até ser contratada para serviços gerais no Grupo Escolar do Bairro Assunção, onde também foi inspetora de alunos. Saía às 23h.
Marisa, de origem italiana, de hábito operário, de vida simples e sacrificada, fazia parte de um ABC onde a rotina era determinada pelo apito das fábricas.
Só frequentava restaurantes em ocasiões muito especiais, como fez no dia que se casou com Lula, em 1974. O casal escolheu a Cantina do Pintor, no Riacho Grande, para celebrar a boda.
Em 1975, deu à luz o segundo filho sem a presença do marido no Pronto-Socorro Central. Lula estava no sindicato.
Um mês depois, o marido viraria presidente da entidade. Enquanto Lula se dedicava à luta “por um país melhor”, Marisa é quem dava conta da família.
A economia do cuidado não estava na pauta e ainda era tudo mato na discussão sobre a divisão entre homens e mulheres das tarefas com os filhos e a casa. A prisão de um cunhado, Frei Chico, naquele ano, acenderia a luz amarela de seu entendimento sobre o arbítrio.
Quando o marido foi reeleito para o sindicato, em 1979, Marisa foi à posse grávida e com dois filhos pela mão. Daria à luz ao terceiro filho, um mês antes do previsto, de novo sem a presença do pai, que estava em congresso dos petroleiros em Salvador, onde falaria pela primeira vez em criar um partido.
Em 1979, morreria seu primeiro sogro nas mesmas circunstâncias que seu marido e, no ano seguinte, Marisa perderia a mãe, a benzedeira dona Regineta, e sua segunda sogra, dona Lindu, mãe de Lula, quando este estava preso.
Anos mais tarde, Marisa levaria para viver em sua casa a primeira sogra, dona Marília, chamada de avó por todos os filhos.
Aos 30 anos, Marisa já tinha atuado em todos os papeis que a sociedade de então projetava para uma mulher de sua geração e sua classe social.
Se com o pai Marisa tinha aprendido a evitar o debate político, agora o debate político acontecia na sua sala, em reuniões intermináveis, inclusive nos fins de semana.
Em outra entrevista, para a revista Escrita/Ensaio, Lula oscilaria entre dar declarações machistas e ponderar sobre a falta de remuneração do trabalho doméstico e o cansaço da esposa, para quem deixava suas roupas sujas nas poucas horas em que passava em casa.
Mas Marisa era categórica: não lavava cuecas nem meias do marido e dos filhos, alcançado um desprendimento da tarefa que suas irmãs mais velhas e a mãe não conseguiram se livrar.
Após a greve de 1979, Marisa passou a frequentar a Associação de Mulheres de São Bernardo, cuja missão oficial era contribuir para o engajamento das mulheres em pautas trabalhistas e feministas, e, concretamente, prestava-se a garantir formação política para as mulheres.
Mas o boicote logo veio do próprio Lula, que achava complicado cuidar das crianças enquanto Marisa se ausentava.
Ela, no entanto, não deixava de ir às assembleias no sindicato junto com outras esposas. Defendeu, por exemplo, o cumprimento do direito a creche nas fábricas e a presença feminina nas chapas que concorriam à diretoria.
Como Lula não assumia tarefas domésticas ou de cuidados com os filhos, Marisa passou a frequentar o sindicato com as crianças. Baixava lá pelo menos uma vez por semana e acompanhava muitas das discussões enquanto o filho menor dormia num sofá.
Repertório ampliado, Marisa saía batendo de porta em porta para filiar as pessoas ao PT. Conversava sobre o custo de vida, a condição de trabalho nas fábricas, o papel do movimento sindical.
Organizou bazares para levantar recursos para o núcleo do Bairro Assunção, o primeiro do Brasil, que ela coordenou e que se transformaria no diretório municipal do partido. Confeccionou a peça que pode ter sido a primeira bandeira do PT, com um tecido italiano vermelho que tinha em seus guardados.
Era seguida pelas Veraneios da repressão até quando levava os meninos à escola ou ia ao dentista.
Quando Lula e outros sindicalistas foram presos, em abril/maio de 1980, Marisa se encarregava de manter a comunicação entre os de dentro e os de fora.
Foi em casa mesmo que ela montou, em 1981, uma oficina de serigrafia que produziria camisetas com o personagem João Ferrador em apoio à chapa que defendia para a direção do sindicato pós-intervenção: Meneguelli presidente e Vicentinho vice, que foram vencedores com 86,5% dos votos.
Na mesma oficina, Marisa pintava com tinta vermelha a estrela do PT nas camisetas brancas. Ela levava as peças para vender em encontros do partido, assembleias de sindicatos, reuniões de movimentos sociais, e assim garantia algum recurso para pagar combustível e outras despesas dos dirigentes em seus deslocamentos para as diversas atividades.
Em época de campanha, Marisa convocava as mulheres da família, sobrinhos, companheiras para ampliar a produção, que já contava com mais modelos. “Queremos o poder”, estampavam.
Para colaborar com a construção da nova sede do PT em São Bernardo, Marisa preparava sanduíches e levava para os operários. Com outra companheira, Elvira Teixeira, organizou bingos, vendeu rifas, bottons e mais camisetas. O ateliê de serigrafia aportaria também para a campanha das Diretas Já.
Em março de 1985, deu à luz o quarto filho, e finalmente aceitou ajuda da irmã Joana, que virou sua funcionária permanente nos afazeres domésticos e no cuidado com as crianças.
No ano seguinte, Lula seria eleito deputado federal constituinte e passava a maior parte do tempo em Brasília.
O “quase lá” de 1989 trouxe dissabores de ordem pessoal a Marisa devido à campanha suja e mentirosa impetrada pelo adversário do marido. “Bem-feito!”, teria dito Marisa quando Fernando Collor perdeu seus direitos políticos.
Em junho de 1992, tinha documentos novos, agora com o nome Lula agregado. No ano seguinte, Marisa participaria das sete Caravanas da Cidadania, vendo de perto as faltas e as injustiças sociais de toda ordem. Na última, levou dois de seus filhos.
Na campanha presidencial de 1994, Marisa teria de enfrentar boatos de enriquecimento ilícito do marido e uso irregular de verba. Após a derrota na campanha de 1998, foi Marisa quem convenceu o marido a não desistir.
O ano de 2002 viria brindar todo o esforço. Marisa pela primeira vez teve agenda própria e assessora na campanha, Denise Gorczeski, jornalista de sua confiança.
Marisa flexibilizou e passou a usar terninhos, mais pela praticidade e versatilidade que por imposição do marketing. Marisa rejeitou determinados tipos de sapato, exigia brincos discretos e afirmava que quem tinha que aparecer era Lula. Modernizou o cabelo e fez lifting (um procedimento estético) no rosto com o mesmo cirurgião de Marta Suplicy.
Seu caçula já estava com 17 anos e Marisa se viu livre. Levou à risca a orientação de que deveria grudar em Lula; integrava a coordenação da campanha e exigia que fossem preservados momentos do candidato com a família e para alimentação adequada. Alertou para o fato de que o PT tinha pouca adesão a grupos religiosos não católicos.
Representava a candidatura em vários eventos, mas nunca foi afeita aos microfones, evitava falar em público além de uma breve saudação; ouvia as pessoas e pedia que as perguntas da imprensa fossem enviadas por e-mail. Em privado, conversava, dava suas opiniões.
Gravou para o programa eleitoral. Quando se referia aos fundadores do partido, usava, com naturalidade, o pronome “nós”. Lula dizia sobre ela: “É uma companheira a quem eu devo muito, muito, muito.”
Quem viu o filme Entreatos deve se lembrar de Marisa com o marido, em frente à TV, recebendo a notícia oficial da vitória.
Após os primeiros cumprimentos dos companheiros presentes, Marisa, rindo, diz ao marido: “Bem, eu falei para o Thiago: ‘o vô é presidente’ e ele respondeu: ‘me belisca’”. E Lula abraça o neto.
Inquilina do Palácio do Alvorada, Marisa passaria a sofrer todo tipo de preconceito de origem, de classe, de gênero. Mas ela tinha mais o que fazer.
Na cozinha, determinou que se servisse o trivial. Mesmo sem cargo, tinha um gabinete no Planalto. Mas era em casa, em privado, com Lula, que se inteirava dos bastidores do governo.
Foi responsável por mudanças em decisões do marido. Interessava-se, principalmente, se determinada ação estava em consonância com os anseios da classe trabalhadora.
A então primeira-dama recebia cerca de 300 cartas por mês e solicitações diárias de entrevistas. Foi presidenta de honra da ONG Apoio Fome Zero; madrinha do III Congresso Mundial de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, a convite da rainha Sílvia, por quem Marisa foi convidada a reunir na Suécia.
Foi madrinha também do projeto Vira Vida, de inclusão social e no mercado de trabalho de jovens vítimas de exploração sexual. Nas formaturas desses, não quis discursar.
Em 2004, na volta de uma viagem, foi surpreendida. Os responsáveis pela jardinagem do Alvorada haviam plantado na propriedade canteiros em forma de estrela (vermelha), sol e lua.
Marisa intuiu que poderia dar problema, mas achou o gesto de carinho bonito. O Correio Braziliense descobriu e toda a imprensa repercutiu acusando Marisa. Solução? Canteiros destruídos.
Distraía-se em pescarias no Lago Paranoá, no Alvorada e no Torto. Pela primeira vez vivia sem os filhos.
Eventualmente recebia amigas de sua cidade natal. Marisa transferiu para a Granja do Torto, em 2004, a tradição de organizar festas juninas, como fazia desde o início dos anos 90 no sítio Los Fubangos, de propriedade do casal no Riacho Grande, em São Bernardo do Campo. Exigia que todos fossem vestidos a caráter. E cada família devia levar um prato de doce ou salgado.
Em 2005, Marisa fez questão de ir ao velório do Papa João Paulo II, no Vaticano. Em, 2006, encontraria outra rainha da Inglaterra, com quem passeou de carruagem.
Depois, foi diminuindo o ritmo das viagens e preferia estar com os filhos e netos. Marisa acompanhou a reforma no Alvorada iniciada após o rompimento de um cano. Sob a marquise junto à piscina, o casal pediu para instalar uma churrasqueira e uma geladeira.
“Como fazem um filme sem falar com a gente?”, teria reclamado Marisa em privado após assistir a Lula, filho do Brasil, em 2009.
À imprensa, ela disse: “Gostei muito. É emocionante”. A bilheteria seria menor que a esperada.
Terminados os dois mandatos, o casal se instalou em um apartamento de 180 metros quadrados em São Bernardo do Campo. Marisa queria que Lula tivesse alguma atividade. Fundou-se o Instituto Lula e uma empresa de palestras. Não faltavam convites.
O casal relaxava no sítio do amigo Jacó Bittar, a quem havia hospedado em Brasília no final de 2010. Foi durante essa hospedagem que Marisa e Jacó conversavam reservadamente sobre os detalhes do sítio que o amigo compraria, pois queriam fazer surpresa a Lula. A paz durou pouco.
Marisa fazia exames médicos de rotina para acompanhamento de aneurisma, e, em 2011, Lula a acompanhou e fez um check up. Tinha um tumor na laringe.
Do diagnóstico ao tratamento do câncer, tudo foi acompanhado pela imprensa. Todos vimos imagens de Marisa cortando a barba do marido. Era ela quem cuidava de todos os detalhes, inclusive o de controlar as visitas.
Faltava pouco para as seis da manhã de 4 de março de 2016 quando a Polícia Federal chegou em frente ao prédio onde viviam Marisa e Lula com um mandado de busca e apreensão, parte da Operação Lava Jato, que fora deflagada dois anos antes e já colocava Lula no olho do furacão, com denúncias de que ele conhecia os esquemas de desvios na Petrobrás.
Revistaram tudo, da coifa aos miolos dos colchões, para desespero de Marisa. Naquele dia, a PF também entraria na casa de dois filhos de Lula e Marisa e levaria para averiguação até tablets dos netos.
A apreensão duraria mais de um ano e só se suspenderia a pedido da defesa. Queriam mais. Levaram Lula para depor em Congonhas sob tremendo show midiático.
O sonho da casa de praia comprada a prestação, que nunca se concretizou, transformou-se no escândalo do triplex que se somava à denúncia sobre o sítio onde Marisa queria apenas descansar. Sentia-se culpada. Ela e o filho Fábio foram denunciados por lavagem de dinheiro.
Em 9 de março, a promotoria pede a prisão preventiva de Lula. O ministro Teori Zavascki, do STF, determina que os processos relativos a Petrobrás, do sítio e do triplex fossem todos remetidos para a 13 ª Vara de Curitiba e o cerco de fecha.
Nas ruas, a direita celebra. Dilma está sob fogo cerrado. Nomeia Lula para chefe da Casa Civil. O juiz Sérgio Moro torna público o grampo ilegal do telefonema de Lula e Dilma. Incendeia a opinião pública.
No dia seguinte, divulga áudios de uma ligação de Marisa com o filho Fábio. Falavam do panelaço e dos “coxinhas”. “Deviam enfiar essas panelas no cu”, desabafava Marisa na ligação.
Em 20 de setembro, Lula e Marisa tornavam-se réus pela primeira vez no âmbito da Lava Jato. Em dezembro, Lula era réu em três processos da operação. Acumulavam-se em outras operações investigações e acusações contra Lula e/ou Marisa. Era só uma parte do lawfare que se construiu contra Lula.
Marisa trancou-se em casa. Pouco saía. Tinha medo da reação das pessoas nas ruas, no comércio. Havia sido ignorada até pelo cabelereiro responsável por seu novo look a partir de 2002.
O refúgio ao sítio de Atibaia estava fora de cogitação. Os drones a flagrariam. Durante a exibição dos noticiários na TV, Marisa ouvia os gritos da vizinhança raivosa. De madrugada, os gritos podiam vir de dentro dos carros que passavam em frente ao prédio.
Naquele último ano, Marisa cuidava das plantas, voltou a fazer sabão e a bordar. Conversava num grupo de WhatsApp com as amigas mais próximas, o Manas Santas. Passou a fumar mais.
Também tomava uma dose de uísque com Lula toda noite, e, depois, cada vez mais cedo e com o copo cada vez mais cheio. Eram dois hábitos que o médico tinha recomendado suspender.
Num churrasco no final do ano, ouviu um helicóptero e tinha certeza de que chegavam para prender a ela e ao marido. Vivia em sobressalto.
Em 24 de janeiro de 2017, Marisa planejava levar dois netos para passar o dia com ela no sítio do Riacho. Mas desabou na cozinha, convulsionou. Debatia-se. O filho Sandro, que estava no apartamento com o filho Arthur, chamou um farmacêutico amigo família, que, após medir a pressão de Marisa, determinou que a levassem imediatamente para o pronto-socorro. A caminho, ela vomitou e convulsionou novamente.
Estava consciente e dizia ser efeito da pizza que comera na véspera. No hospital, confirmaram que ela sofrera um acidente vascular cerebral hemorrágico provocado pelo rompimento do aneurisma. Morreu 10 dias depois, em 3 de fevereiro, onze meses após aquela visita da PF a seu apartamento.
Seus órgãos foram doados. O velório foi realizado no sindicato dos Metalúrgicos, onde ela e Lula se conheceram. Ele escolheu para Marisa um vestido vermelho, que foi adornado por uma estrelinha do PT. E justificou: “Para provar que não temos medo, nem vivos, nem mortos”.
*Rita Camacho é jornalista e filiada ao PT; cresceu no Bairro Assunção, em São Bernardo, onde se benzia com dona Regineta, mãe de Marisa, e dançou Carnaval nas matinês do Sindicato dos Metalúrgicos.
Nota: Este texto foi construído principalmente com informações contidas na biografia Marisa Letícia Lula da Silva, de autoria de Camilo Vannuchi, lançada em 2020 pela editora Alameda, de São Paulo.
Marisa morreu antes que Camilo pudesse dar início às entrevistas com sua biografada. A obra é resultado de um trabalho intenso de reportagem, de imersão em obras, documentos, filmes etc. e na realização de mais de uma centena de entrevistas. Agradeço e recomendo.