O Brasil viveu em 2021 sua pior seca em 90 anos. A crise hídrica levou a uma crise energética, uma vez que mais de 50% da geração de energia do país vem de hidrelétricas, que dependem de chuvas para funcionar.
Frente ao risco de um apagão semelhante ao de 2001, o governo federal contratou 14 usinas termelétricas movidas a gás natural a um preço até sete vezes maior que o das hidrelétricas, segundo nota técnica do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). Consequentemente, o consumidor chegou a pagar 20% mais caro na conta de luz em 2022 em relação a 2020.
As térmicas não dependem de chuva, pois geram energia a partir da queima de combustível. Porém, o gás natural usado nelas é negociado em dólar no mercado internacional, e as usinas têm um custo de produção elevado, além de gerarem graves impactos no clima.
“O Brasil paga por uma falta de planejamento, que nos deixou reféns das hidrelétricas, que se tornam cada vez mais instáveis frente às mudanças climáticas, e das termelétricas, que por serem muito mais poluentes, aceleram a crise climática. É um círculo vicioso”, diz Ilan Zugman, diretor para a América Latina da 350.org, organização que atua pela transição energética e justiça climática.
Com a alta da inflação e a energia cada vez mais cara, pagar a conta de luz virou artigo de “luxo”: segundo uma pesquisa do Ipec e do Instituto Clima e Sociedade, 22% dos brasileiros deixaram de comprar alimentos básicos para pagar as contas de luz e o gás.
Segundo o coordenador de Energia Elétrica do Instituto Clima e Sociedade (iCS), Roberto Kishinami, o consumidor também arca com o negacionismo do governo do presidente Jair Bolsonaro, que foi alertado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) sobre a crise hídrica, mas não tomou providências a tempo.
“Os sinais de que a crise hídrica seria forte em 2021 já estavam presentes na segunda metade de 2020. Foram várias advertências do ONS e de especialistas, mas a posição do governo foi dizer ‘não tem crise’ até abril de 2021, quando os reservatórios já estavam muito abaixo da média histórica para aquele mês”, afirma o coordenador do iCS. “O custo dessa atitude irresponsável do governo federal vai perdurar nas contas dos consumidores por muitos anos.”
Especialistas ouvidos pela DW elencaram os cinco principais desafios que o próximo governo eleito terá pela frente no setor energético:
diminuir a participação das termelétricas contratadas em 2021 pelo governo federal; acabar com os subsídios às térmicas à carvão, principais contribuidoras da crise climática; diversificar a matriz energética brasileira e aumentar a participação de eólica e solar; promover uma transição energética justa; levar energia de baixo impacto para a Amazônia.
Para o gerente de projetos do IEMA, Ricardo Baitelo, o desafio ainda inclui regular o armazenamento de energia, passo importante para expandir as fontes renováveis.
“O grande desafio do próximo governo será manter o crescimento das energias renováveis. Para isso, ainda precisamos fazer regulações sobre o armazenamento de energia solar e eólica”, diz Baitelo.
Atualmente, o setor de energia solar e eólica corresponde a somente 16% da matriz energética nacional. “E não há, ainda, uma política pública consistente de transição energética no Brasil”, ressalta Kishinami.
Para Ilan Zugman, uma vez que o Brasil tem as condições climáticas e geográficas para a expansão da energia eólica e da solar, estamos perdendo dinheiro.
“A energia eólica e a solar estão cada vez mais baratas, e muitos estudos mostram que o setor está gerando mais empregos que o das fontes fósseis. Diante do potencial do Brasil para geração de energia limpa, o país está perdendo tempo e oportunidade ao insistir em uma política de subsídio aos combustíveis fósseis”, diz Zugman.
“Negacionismo” e conta mais cara nos próximos anos
Quando contratou as 14 termelétricas em 2021, o governo federal ordenou o funcionamento ininterrupto delas.
“A maior parte dessas térmicas sequer tinha condições de funcionar ininterruptamente, pois são concebidas para funcionar poucas horas na semana, apenas para atender picos de demanda”, diz Kishinami.
Além disso, o governo garantiu o funcionamento dessas térmicas até 2025, o que gerará um custo adicional estimado em R$ 39 bilhões, que serão repassados ao consumidor ao longo desse período. Ou seja, a conta de luz ficará mais cara nos próximos três anos, pelo menos.
Outro fator que deverá deixar a conta mais cara nos próximos anos foi o um empréstimo bilionário feito para pagar as termelétricas contratadas.
“Apenas em novembro começa a ser paga a primeira parcela de um empréstimo bancário de R$5,6 bilhões, feito para cobrir o rombo que as distribuidoras tiveram para pagar o funcionamento das térmicas durante a crise hídrica”, diz Kishinami.
Em dezembro do ano passado, o governo realizou um novo leilão para contratar energia a ser entregue entre 2026 e 2027, o Leilão de Reserva de Capacidade, que contratou outras 16 usinas termelétricas por mais 15 anos.
“Tudo isso ocorreu em menos de quatro anos, porque o atual governo federal levou a sério seu negacionismo”, analisa Kishinami.
Ricardo Baitelo aponta outros “retrocessos”, como ele classifica, na política energética atual e que ficarão de herança nos próximos anos. “O próximo governo terá como desafio lidar com a contratação imposta das térmicas e com o ‘jabuti’ da lei de privatização da Eletrobras, decisão prejudicial para o setor elétrico e para as tarifas”, diz.
O “jabuti” (termo referente a trechos incluídos em projetos de lei que não têm relação com a proposta original) da lei de privatização da Eletrobras (Lei 14.182/2022), sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, prevê a contratação de termelétricas a gás a partir de 2026 para operar em tempo integral.
Cálculos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME), estimam que o “jabuti” da lei de privatização da Eletrobras gerará um custo adicional ao setor de mais de R$ 52 bilhões, considerando apenas o valor para acionar e operar as usinas até 2036. Ficaram de fora da conta a construção dessas usinas e o local onde serão construídas, em áreas distantes dos centros produtores de gás natural e ainda sem ligação por gasodutos.
Nádia Pontes/DW
Usina termelétrica no Amazonas. Por serem muito mais poluentes, usinas térmicas aceleram a crise climática
Subsídios milionários ao carvão
A queima de combustíveis fósseis é o maior contribuidor para o agravamento das mudanças climáticas. Entre eles, o carvão é o mais poluente, sendo o mais nocivo ao clima e à saúde das pessoas.
Em 2021, mais de 40 países firmaram acordo durante a COP26, a conferência do clima da ONU, para acabar com a energia a carvão até 2040. O Brasil não assinou o acordo, contudo.
Em janeiro deste ano, Bolsonaro sancionou uma lei que garante a contratação de termelétricas movidas a carvão mineral em Santa Catarina por mais 15 anos (Lei nº 14.299), além de garantir subsídios milionários para financiar até 2040 a construção de mais termelétricas no estado. A lei descumpre a meta brasileira de encerrar as atividades de térmicas a carvão em dezembro de 2027.
“A extensão de funcionamento dessas usinas para 2040 não tem viabilidade. Algumas do estado teriam que passar por uma grande reforma para ter condições técnicas de operar até a data”, diz Kishinami.
Assim, investir em carvão também é uma péssima escolha econômica. “É muito mais vantajoso investir em uma nova planta renovável (eólica, solar ou uma combinação de ambas), que teria um retorno maior e sem o risco de o carvão se tornar um ‘ativo encalhado'”, explica o coordenador do iCS.
Termelétricas afastam Brasil de metas climáticas
O Instituto de Energia e Meio Ambiente analisou os contratos firmados nos Leilão de termelétricas e afirmou que o sistema elétrico brasileiro, ao contratar energia por mais 15 anos provenientes da queima de combustível, se afasta do objetivo global de redução de gases de efeito estufa e zero carbono até 2050.
“Para se ter uma ilustração do potencial poluidor desses empreendimentos, uma única usina vencedora [dos leilões] pode emitir durante um ano uma quantidade de NOx [óxidos de nitrogênio] equivalente a 100 dias de tráfego de automóveis na cidade de São Paulo”, diz trecho do documento do IEMA, publicado em no final do ano passado.
Outro impacto das termelétricas é a quantidade de água usada para resfriar seus sistemas de queima de combustível. Em um futuro de acirramento das mudanças climáticas, essas usinas serão inviáveis.
“Um exemplo dessa inviabilidade está para ser exposta em Macaé, no Rio de Janeiro, onde há 16 projetos de termelétricas em diferentes estágios de concepção. Ocorre que a bacia hidrográfica que abastece a região não tem água suficiente para todas essas térmicas”, diz Kishinami.
Levar energia para a Amazônia
Cerca de um milhão de brasileiros ainda vivem sem energia apenas na Amazônia, segundo estimativa do IEMA publicada em 2019.
Para Zugman, outro desafio do Brasil nos próximos anos será expandir a capacidade elétrica do país para atender a todos e enfrentar problemas relacionados com a crise climática.
“Todo mundo precisa de energia e sabemos que a sua demanda vai aumentar cada vez mais com a situação do planeta frente à crise climática. O problema é o modelo energético atual, que é concentrado na mão dos governos e de grandes empresas”, afirma.
O diretor da 350.org chama a atenção para as hidrelétricas construídas na Amazônia, como a de Belo Monte, que ainda geram impactos socioambientais importantes, como a emissão de gases de efeito estufa na área alagada, destruição da fauna e flora e até ineficiência energética.
“Temos grandes hidrelétricas na Amazônia em que a energia gerada ali vai para bem longe das comunidades dos entornos. Ou seja, são comunidades que foram desalojadas e perderam seus territórios para dar lugar a uma hidrelétrica que não gera energia para elas”, explica Zugman.
A 350.org defende um modelo energético descentralizado no Brasil e na Amazônia, em que os consumidores possam escolher o tipo de energia que querem na sua comunidade.
“Hidrelétricas, termelétricas e demais megaprojetos quase sempre têm impactos muito grandes. Por isso, defendemos que as comunidades tenham as ferramentas para decidir que tipo de energia querem e de onde essa energia deve vir, para que a geração energética impacte o mínimo possível o modo de vida das pessoas e o meio ambiente”, explica Zugman.