Um ex-comandante militar da ditadura argentina morreu em Berlim dias antes de ter sido formalmente acusado na Justiça da Alemanha pela morte de 23 membros de grupos esquerdistas durante o regime militar que vigorou no país sul-americano entre 1976 e 1983, informou o Ministério Público da capital alemã nesta quinta-feira (16/11).
Os promotores não revelaram a identidade do acusado, mas a ONG alemã Centro Europeu dos Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR) o identificou como sendo o ex-comandante da Marinha argentina Luis Esteban Kyburg, de 75 anos.
Após a ditadura, ele obteve a cidadania alemã e deixou a Argentina em 2013 para viver em Berlim antes de ser processado em seu país por crimes contra a humanidade. Membros de sua antiga unidade militar já haviam sido condenados à prisão em Buenos Aires.
Kyburg foi o segundo comandante de uma unidade especial da Marinha argentina. Ele foi acusado de envolvimento no sequestro e assassinato de 152 pessoas durante a chamada “Guerra Suja” da ditatura militar do país sul-americano. Ele teria atuado na base naval de Mar de Plata, onde supervisionava a tortura de dissidentes do regime. Muitas das vítimas eram alvejadas pelas costas ou drogadas e jogadas ao mar, nos chamados “voos da morte”. Os corpos jamais foram encontrados.
Vida discreta em Berlim
Em 2020, Kyburg foi localizado por um jornalista do tabloide Bild, aparentemente levando uma vida discreta na capital alemã. Confrontado pelo jornalista, Kyburg respondeu: “Eu espero aqui. Um tribunal na Alemanha, não na Argentina. Eu espero. Inocente. Tranquilo”, segundo imagens publicadas pelo jornal.
O fato de possuir um passaporte do país europeu gerou entraves para que ele pudesse ser enviado de volta a Argentina. A lei alemã não permite que cidadãos do país sejam extraditados.
Em 2013, Kyburg foi incluído em alertas de procurados pela Interpol. Dois anos depois, segundo o Bild, procuradores argentinos, que suspeitavam da presença do suspeito no país europeu, pediram a sua extradição da Alemanha. O pedido não foi apreciado por causa da cidadania alemã do suspeito.
Após a revelação do paradeiro de Kyburg em 2020, o ECCHR declarou que a Alemanha “não deveria ser um lugar seguro para criminosos da ditadura argentina”.
AP
Ditadura argentina liderada pelo general Jorge Videla foi um dos regimes mais sanguinários na América do Sul
“A cidadania alemã de Luis Kyburg não deve protegê-lo da acusação”, afirmou à época o secretário-geral da ECCHR, Wolfgang Kaleck. A ONG pediu à promotoria local que iniciasse um processo para que Kyburg pelo menos fosse julgado na Alemanha pelas acusações que pesam contra ele.
Após uma ampla investigação que contou com a colaboração de autoridades argentinas e reuniu depoimentos de diversas testemunhas, o Ministério Publico alemão indiciou Kyburg no começo deste mês.
Em janeiro de 2023 os investigadores realizaram buscas na casa de Kyburg, onde foram encontradas novas provas que respaldavam o material compilado ao longo dos anos contra o ex-militar. Essas provas permitiram à Promotoria preparar um documento de 220 páginas com acusações contra o argentino.
Mas, após a abertura do processo, os promotores descobriram que Kyburg havia morrido de causas naturais no dia 11 de outubro.
Frustração para as famílias das vítimas
“A morte do acusado encerra de maneira brutal os esforços realizados há décadas pelas famílias das vítimas e autoridades na Argentina e na Alemanha para esclarecer as atrocidades cometidas na base naval de Mar del Plata”, lamentou em nota a promotora alemã Margarete Koppers.
O fato de Kyburg ter morrido antes de ser punido por seus crimes “é difícil de suportar e muito doloroso para as famílias das vítimas”, acrescentou a promotora.
Kaleck, da ECCHR, também lamentou que as vítimas e familiares não tenham recebido justiça, principalmente levando-se em conta que “existe uma acusação exaustiva e sólida da Promotoria de Berlim, e que a maioria dos cúmplices de Kyburg foi condenada em tribunais argentinos”.
Batizada oficialmente de “Processo de Reorganização Nacional”, a ditadura militar argentina de 1976 se estendeu até 1983. Foi um dos regimes mais sanguinários instalados na América do Sul durante a Guerra Fria. Estima-se que mais de 30 mil pessoas tenham sido assassinadas no período. Outras violações de direitos humanos incluíram uso da tortura em larga escala, estupros e até mesmo o sequestro sistemático de crianças.