A direita radicalizada é uma força agressiva que vem crescendo, ao mesmo tempo que alia-se à proposta eleitoral libertária, para chegar ao poder. Quando o processo de conquista de poder muda de fase, ela sofre mutações para ser mais tática e inibir qualquer possível resistência social.
Criado em 2020, ao compreender que a violência usada pela extrema direita poderia tornar-se sistemática, o RADAR registrou 247 ataques da direita radicalizada por meio de um formulário que vítimas ou testemunhas de ameaças ou atos violentos poderiam preencher.
Por “ataques radicalizados de direita”, a ferramenta identifica ações que expressam um desejo de aniquilar outros com o objetivo de silenciar, intimidar, disciplinar ou eliminar identidades políticas.
A plataforma contou apenas casos geolocalizados, sem envolver ataques e discursos de ódio no ambiente digital. Os resultados são republicados por Opera Mundi nesta reportagem e contam com uma extensa argumentação, mas de adianto o RADAR prevê que o esquema de governo elaborado por Milei e a extrema direita argentina inclui uma elevada percentagem de repressão com aspectos inovadores.
O que é a violência da chamada direita radicalizada?
A pesquisa do RADAR orientou-se pela seguinte hipótese: embora os ataques detectados provenham de atores dispersos que não têm ligações orgânicas a priori entre si, as suas ações são estrategicamente orientadas pelos líderes da extrema direita.
Para demonstrar o argumento que ilustra a pesquisa, a Revista Crisis usou da intervenção televisiva do ex-presidente argentino Mauricio Macri (2015-2019) após a vitória de Javier Milei (A Liberdade Avança) em 19 de novembro.
“Hoje existe um mandato popular muito profundo. E ele é liderado pelos jovens, que não vão ficar em casa se esses senhores começarem a jogar toneladas de pedras. Os jovens vão defender sua oportunidade. Portanto, eles terão de ser muito cuidadosos, os ogros, como eu os chamo, quando quiserem sair às ruas e fazer um tumulto. O núcleo revolucionário de Javier Milei são jovens que estão exigindo uma oportunidade… e eles são muito firmes”, declarou o ex-mandatário em uma mensagem de normalização da violência.
Para entender a potencialidade e alcance da violência política usada pela direita radicalizada e exemplificada por Macri, o RADAR sugere dois termos essenciais: a onda da extrema direita e a zona de emergência.
“Vinda do pensador e ativista boliviano Álvaro García Linera, que propôs a noção de onda para analisar os altos e baixos do movimento progressista na América Latina. As ondas são momentos de progresso, que se verificam com o aparecimento de vários governos do mesmo caráter político e conseguem produzir um certo nível de transformações. Então, como o mar quando corre sobre a areia, ele recua para ganhar impulso e ataca novamente. De acordo com esta perspectiva, durante a primeira década do século assistimos a uma poderosa onda progressista, que no início da segunda década começou a retroceder, apenas para ressurgir com menos força durante os últimos anos”, explica a pesquisa.
Apesar do caráter ondulatório, a movimentação não é cíclica: mais do que etapas claramente definidas em que um dos lados ideológicos goza de hegemonia consistente, o que se percebe é um jogo complexo entre iniciativas antagônicas que se justapõem e em que uma delas consegue prevalecer, mesmo que apenas provisoriamente.
Dentro dessa tendência, após a onda progressista na primeira década deste século, Macri triunfa em 2015 na Argentina, Trump chega à presidência norte-americana em 2017 e a onda da direita radicalizada se consolida com Jair Bolsonaro no Brasil em 2018.
Outras manifestações da mesma série poderiam ser apontadas, como a consagração de Nayib Bukele em El Salvador em 2019, mas essas são algumas das mais significativas e também aquelas que em breve sofreriam um retrocesso.
No entanto, neste domingo (10/12), Milei toma posse da presidência argentina no que pode ser considerado o início de uma segunda onda, desta vez mais radical que a anterior. E em uma ascensão mais rápida do que o progressismo vive após suas quedas, o RADAR identifica que diferentemente da esquerda, a extrema direita parece tirar como lição do seu fracasso anterior uma certa falta de astúcia para aprofundar as mudanças que promove.
Esses aprendizados não são evidenciados pela volta ao poder apenas, mas também pelas reações de seus eleitores quando consideram que Trump e Bolsonaro, por exemplo, se despediram de seus governos considerando que seus programas eleitorais eram triunfantes.
Nesse contexto, onde a violência, em um grupo já em ascensão, se estabelece?
“A tomada da sede dos poderes institucionais em ambos os poderes por grupos civis [apoiadores de Trump invadindo o Capitólio em 6 de janeiro de 2021 e apoiadores de Bolsonaro invadindo o Congresso, no Planalto e no STF em 8 de janeiro de 2023], com a cumplicidade das forças de segurança, é um sinal claro de que a extrema direita está disposta a usar a violência política como método para forçar os limites que a democracia impõe”, analisa o RADAR.
O segundo termo essencial sugerido pela pesquisa para compreender a violência como ferramenta da direita radicalizada é a emergência, pois permite a análise de acontecimentos mais perplexos diante de situações não-planejadas ou esperadas.
Na Argentina é possível distinguir pelo menos quatro áreas de extrema direita que surgiram em momentos e circunstâncias diferentes, mas foram articuladas e reconhecidas como participantes de um mesmo movimento histórico.
A primeira ocorreu em 2018, em oposição à maré verde que lutava pelo aborto livre, legal e gratuito. Naquela época, a vanguarda era exercida pelos setores mais conservadores das igrejas evangélicas, que mobilizaram multidões e implantaram um eficaz lobby parlamentar. No entanto, o espanto daquela aparição foi logo esquecido, entre as comemorações pela vitória eleitoral do peronismo em 2019.
Paralelamente a esta mobilização de rua, foi estabelecida uma máquina de guerra digital abertamente reacionária, com uma forte ênfase antifeminista e antiprogressista. Alguns influenciadores tiveram um papel de destaque na elaboração de argumentos e no desenho de campanhas, mas o principal dinamismo recai sobre a miríade de utilizadores bastante minoritários que encontram nas redes sociais a superfície de expressão para uma vontade politicamente incorreta que tinha sido expulsa das instituições e da mídia.
A terceira irrupção expressou-se a nível eleitoral e teve Javier Milei como fator unificador, baseado na narrativa libertária. O magnífico resultado obtido nas eleições primárias legislativas de 2021 deu ao sujeito da extrema-direita uma estratégia de poder clara e funcionou como uma fusão perfeita das diferentes correntes ideológicas que nele fervilham.
Diana Mondino/Twitter
Javier Milei (La Libertad Avanza) toma posse da presidência da Argentina neste domingo (10/12)
O quarto ataque explodiu no dia 1 de setembro de 2022, quando Sabag Montiel disparou o gatilho contra a vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, introduzindo uma linguagem bélica no conflito contra o qual o sistema político exibiu o seu espanto e impotência.
Entre quatro situações diferentes que acabam beneficiando sempre o mesmo ator: a extrema direita, o verdadeiro catalisador desta emergência histórica foi a pandemia de covid-19 em 2020.
Na Argentina, o Isolamento Social Preventivo e Obrigatório (ASPO) ordenado pelo executivo nacional durante muitos meses funcionou como terreno fértil para que ideias libertárias se sintonizassem com o descontentamento social e, especialmente, com a agitação juvenil generalizada. Foi também a ocasião para que essa raiva se articulasse com o amplo canal do antiperonismo atávico.
Em meio a isso nasce uma desculpa baseada no descontentamento generalizado, mas que na verdade é uma ameaça à governança democrática.
Durante e após o estado de emergência sanitária, os grupos de choque proliferaram e, em linha com o roteiro eleitoral, concentraram os seus esforços na expulsão da Frente de Todos do poder executivo. O ataque à vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner foi o ponto de viragem desta saga e desempenhou um papel relevante na derrota do peronismo – primeiro político e depois eleitoral – ao revelar o grau de fraqueza em que se encontravam as forças populares, progressistas e feministas.
Um ano após a tentativa de assassinato, a Equipe de Investigação Política publicou uma investigação sobre os autores do ataque e as suas articulações políticas.
Foi evidenciado que o ataque à CFK “não foi o único e muito menos o último ataque violento realizado pela direita radicalizada argentina”. Neste momento o progressismo precisava assumir que este tipo de ação, a violência, poderia ser implementado de forma sistemática. “Não adianta fingir demência. Nem a sua visibilidade tem que nos sobrecarregar”, avalia a pesquisa.
Os ataques registrados pelo RADAR
A vitória eleitoral por ampla margem da coalizão A Liberdade Avança (LLA) em 19 de novembro foi em si um golpe devastador para o espírito daqueles que estão localizados no amplo campo nacional e popular, entre os setores progressistas e de esquerda, e em particular para as lutas decisivas do feminismo e do movimento pelos direitos humanos. Neste contexto, a série de ataques contra ativistas e militantes comprometidos com estas orientações políticas pode transformar a confusão em angústia, paralisando qualquer capacidade de reação.
Até o momento da redação do relatório que Opera Mundi obteve acesso, o RADAR compilou 247 ataques que, pelas suas características manifestas ou pela identidade dos seus autores, são atribuíveis à direita radicalizada.
Dos 247 casos detectados até agora, 20 aconteceram em 2020, 48 em 2021, 52 em 2022, enquanto até agora em 2023 foram 127 ataques que continuam a aumentar rapidamente, o que indicaria um crescimento da violência da extrema-direita.
A maioria destes eventos constituem “ataques a símbolos e lugares” (175); 20% correspondem à categoria “assédio e intimidação” (48); e há quase 20 “ataques à integridade física e à vida”.
Quanto aos objetivos deste tipo de agressão, um olhar preliminar indica que durante estes quatro anos os alvos preferidos foram três: a) os movimentos de memória e de direitos humanos, b) certas identidades políticas, e c) os feminismos e as diversidades de gênero.
Relativamente aos perpetradores, em 2020 houve apenas um ataque atribuído a apoiantes de Milei, em 2021 foram dois, os mesmos de 2022, enquanto em 2023 já foram registados mais de vinte atos violentos perpetrados explicitamente por libertários.
Outras observações específicas ajudam a individualizar certas características do processo:
Em 2021, a presença de símbolos neonazistas chamou a atenção em vários casos, ao contrário do que aconteceu em 2020, embora nunca tenham sido maioritários.
Em 2022, os ataques a moradores locais e a militantes peronistas aumentaram, enquanto nos anos anteriores o alvo favorito eram grupos de esquerda (que continuaram a estar, obviamente, entre os alvos).
Em 2023, uma tendência anteriormente sugerida confirma-se dramaticamente: quase todos os ataques físicos registados recaem sobre questões de diversidade de gênero.
Sobre isso, o RADAR evidencia que tais ataques não são meras diferenças ideológicas ou um fenômeno de fissuras e polarização, mas sim desejos de aniquilação total, em nome de uma regulação moral dos modos de viver no espaço comum.
Os ataques classificados pelo RADAR
Uma vez consolidada a chegada ao poder através, a violência, longe de ser mitigada, transborda, e a pesquisa distingue três tipos de ataques da direita radicalizada:
Em primeiro lugar, estão os casos que podem ser chamados de “espetaculares”, cujo objetivo é provocar um clima de pânico e promover a sensação de medo difuso e generalizado.
A carta que um grupo de deputados nacionais recebeu com ameaças de morte e terminologia nazistas, ou o vídeo de um alegado ex-militar que circulou nas redes sociais onde alertava vários dirigentes sociais que iam ser repelidos com armas de fogo se saíssem para protestar, são exemplos óbvios.
Essas e outras ações como a procura cada vez mais generalizada do “Falcão Verde”, símbolo inequívoco dos sequestros da ditadura militar argentina são acontecimentos gravíssimos que merecem uma resposta institucional firme, mas que não devem ser amplificados porque o que pretendem é justamente inocular o terror no debate público.
Há um segundo tipo de ataques que o RADAR sugere chamar de “espontâneos”, realizados principalmente por apoiantes do A Liberdade Avança que estão encorajados e decidiram atacar aqueles que representam as identidades políticas que perderam as eleições. Ameaças ou provocações a ativistas políticos e sociais, dissidentes, apoiantes locais, fábricas recuperadas e centros culturais do amplo espectro progressista e de esquerda.
O episódio mais conhecido foi o de uma pessoa que insultou e gravou o ex-candidato presidencial peronista Juan Grabois, enquanto o líder tomava café com seu pai em Buenos Aires. Mas não foi apenas uma figura pública que sofreu este tipo de ataque nos últimos dias: em 23 de novembro, uma passageira de um ônibus na Grande Buenos Aires agrediu fisicamente uma professora lésbica não binária.
O terceiro tipo é particularmente preocupante, pois constituem “ataques orquestrados”, que têm um certo grau de organização e incubam as sementes de uma ação repressiva extra-estatal. Em alguns casos os seus criadores pertencem ao partido libertário, enquanto em outros permanecem na opacidade sem que sejam conhecidas as suas reais capacidades operacionais. Um episódio acompanhado de perto pela pesquisa ocorreu no dia 19 de novembro na cidade de Caseros, subúrbio de Buenos Aires, mais precisamente no estabelecimento onde votaria a candidata à vice-presidência, Victoria Villarruel, conhecida por sua militância contra as políticas de memória e justiça da ditadura argentina.
Alguns membros da Comissão de Familiares dos Desaparecidos de Tres de Febrero se aproximaram do local, com fotos e cartazes que aludiam à repressão ditatorial. Alertados pelos meios de comunicação social de que estava em curso um protesto pacífico, grupos de militantes do La Libertad Avanza chegaram ao local e ameaçaram os ativistas dos direitos humanos. “Vai acontecer com eles o mesmo que com os desaparecidos”, foi uma das queixas. Vários dias depois, um dos agressores repreendeu o representante da Comissão de Familiares numa rua central da zona: “não vamos deixá-lo sozinho”, lembrou-lhe. Esta forma de manifestação de violência de extrema direita detectada em diferentes áreas anuncia uma disputa territorial que pode influenciar decisivamente a forma do conflito social que se aproxima.
Com Milei a extrema direita e a violência chegam ao poder
Embora para muitas pessoas a violência nas ruas não seja algo novo, há uma especificidade no que é agora identificado: a legitimação.
Capacitados por um mandato de guerra governamental, as pessoas sentem-se legitimadas para agir sobre aquilo ou àquele que têm atacado há algum tempo.
No mesmo dia em que marca quarenta anos do retorno à democracia na Argentina, Milei toma posse para sua administração da Casa Rosada.
A estreita ligação entre a intensificação dessa violência e o sucesso nas urnas não é surpreendente. Tampouco é surpreendente o uso estratégico que os líderes locais da extrema direita parecem fazer dessa conexão perturbadora, classifica o RADAR.