O esquema de arapongagem realizado pela Abin durante o governo Bolsonaro com o uso do software espião FirstMile, investigado pela Polícia Federal, já começa a ter repercussões internacionais. Nesta quinta-feira (1/02), o advogado israelenese Eitay Mack entrou com um pedido de investigação criminal junto à procuradora-geral de Israel contra autoridades israelenses e a fabricante do software.
O pedido (leia aqui) demanda que a procuradoria-geral abra uma investigação contra a empresa israelense Cognyte, fabricante do software usado pela Abin, bem como contra oficiais do Ministério da Defesa e do Ministério de Relações Exteriores de Israel, particularmente contra a diretora da Agência de Controle de Exportações em Defesa (DECA), Racheli Chen, e a chefe da Unidade de Exportações de Defesa do Ministério de Relações Exteriores, Tamar Rachmimov.
De acordo com a peça, todos devem ser investigados pela suspeita de terem violado leis israelenses e internacionais e de terem cometido “uma série de crimes reconhecidos pelas leis israelenses” ao aprovarem a venda e a continuidade do uso do software espião no Brasil pela Abin. O advogado chama atenção para o fato de que mais de 30 mil alvos teriam sido espionados pelo esquema ilegal na Abin, o que “deveria ter levantado a suspeita” da Cognyte e das autoridades israelenses quanto ao uso ilegal da ferramenta.
O aplicativo FirstMile tem capacidade de acessar a localização em tempo real de telefones celulares captando os metadados trocados entre o aparelho e torres de telecomunicação. Além disso, possibilita o armazenamento do histórico da geolocalização do aparelho e a criação de alertas sobre a presença do telefone móvel em uma determinada área. De acordo com investigação da Polícia Federal, o aplicativo foi ilegalmente usado contra milhares de alvos no Brasil durante o governo Bolsonaro. Para que os dados fossem monitorados, bastava que se digitasse o número do celular escolhido como alvo.
“Lutaremos por justiça em Israel para as vítimas da Cognyte e de Netanyahu no Brasil”, diz advogado
O advogado Eitay Mack argumenta à procuradoria-geral israelense que a investigação no Brasil joga luz sobre o cometimento de crimes que também podem ser considerados delitos tanto pela lei internacional quanto pelas leis israelenses.
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A Opera Mundi, ele afirma que “infelizmente, a Cognyte parece não se importar em fazer negócios tanto com regimes ditatoriais quanto com regimes democráticos sob séria ameaça, como o Brasil sob o presidente Bolsonaro”, e diz que “é importante lembrar que a empresa não operou em seu próprio nome, mas com licenças do governo Netanyahu, que tinha uma relação próxima com o governo Bolsonaro.” Confira a entrevista abaixo:
A ação é movida em nome de várias pessoas. Poderia descrever, em termos gerais, quem são esses demandantes? Eles são afiliados a ONGs, outros advogados, acadêmicos?
Todos eles são ativistas políticos e de direitos humanos pela democracia e igualdade dentro de Israel, pelo fim da ocupação israelense dos territórios palestinos e pelo fim das exportações militares de Israel, que são usadas para cometer violações de direitos humanos em outros países. Eles se juntaram à demanda não como parte de uma ONG, mas como cidadãos israelenses. Também protestamos juntos durante a visita do presidente Bolsonaro a Israel, inclusive no memorial das vítimas do Holocausto, o Yad Vashem.
A petição cita o fato de que as informações coletadas com o FirstMile pela Abin foram armazenadas em servidores de dados em Israel. Esse fato implica em alguma responsabilidade específica em relação à Cognyte e/ou ao Estado de Israel? Ou seja, esse fato é relevante para estabelecer uma participação direta da Cognyte nos possíveis crimes cometidos pela Abin? E poderia implicar, em última instância, na divulgação das informações, seja publicamente ou às autoridades brasileiras, caso ainda não tenha sido feito?
Esse fato é significativo porque aumenta a responsabilidade pessoal dos funcionários e proprietários da Cognyte. Nos termos da lei israelense, eles tiveram que obter uma licença de exportação não apenas para o sistema em si, mas também para o fornecimento de serviços e conhecimentos. Além disso, em vista do enorme escopo de aproximadamente 30 mil pessoas que foram monitoradas, isso deveria ter levantado a suspeita deles. Em comparação, a empresa NSO afirmou em 2019 que o tempo todo estava monitorando apenas cerca de 150 alvos em todo o mundo. Com relação à Cognyte no Brasil, o número é enorme. A argumentação de que eles deveriam ter suspeitado que algo estava errado é importante, pois o sistema foi vendido pela primeira vez ao governo do ex-presidente Michel Temer. Além disso, os bancos de dados devem ser usados para investigação em Israel pelas autoridades israelenses.
Para ser claro, a Procuradora-Geral de Israel deve conduzir uma investigação separada e independente da investigação no Brasil. Ou seja, ela não pode se esconder atrás das complicações diplomáticas. A suspeita é de delitos de acordo com a lei israelense, e a empresa e os funcionários são israelenses.
Alan Santos / PR
O ex-presidente Jair Bolsonaro com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, durante visita a exposição de empresas israelenses
Em sua petição, o senhor cita outros processos em relação à Cognyte, como o caso de Mianmar e outros (Ruanda, Sudão do Sul, Gana). Esses casos foram semelhantes ao do Brasil? Quais decisões foram tomadas em relação a eles pelas autoridades israelenses?
A segunda queixa referente à Cognyte é sobre Mianmar. As outras denúncias que fizemos foram sobre outras empresas. Nenhuma decisão final foi tomada ainda. Em Israel, essas coisas levam anos. Ontem mesmo recebi uma decisão sobre uma reclamação que apresentei há 5 anos e meio. Infelizmente, a Cognyte parece não se importar em fazer negócios tanto com regimes ditatoriais quanto com regimes democráticos sob séria ameaça, como o Brasil sob o presidente Bolsonaro. É importante lembrar que a empresa não operou em seu próprio nome, mas com licenças do governo Netanyahu, que tinha uma relação próxima com o governo Bolsonaro. Quando o presidente Bolsonaro visitou Israel, organizamos protestos contra ele e agora lutaremos por justiça em Israel para as vítimas da Cognyte e de Netanyahu no Brasil.
A ação judicial se baseia, em grande parte, no tema das licenças de exportação que o Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores devem conceder às empresas interessadas em exportar tecnologia de defesa (no caso, a Cognyte). Você sabe se essas licenças foram concedidas? Em caso afirmativo, você tem acesso a essas licenças ou elas só poderão ser vistas se a investigação for levada adiante pela Procuradoria Geral de Israel?
Trata-se de uma empresa que opera na Nasdaq e publica em seus relatórios que opera com licenças de exportação do Ministério da Defesa de Israel. Essas licenças são secretas e a política do Ministério da Defesa é não comentar nem desmentir quando há escândalos que são expostos, como agora no Brasil. A falta de transparência torna possível evitar a responsabilização. É por isso que os processos no Brasil são importantes – eles fornecem provas inequívocas de que, de fato, o sistema foi vendido no país e usado ilegalmente.
Em sua ação judicial, afirma-se que “a Cognyte, seus proprietários e funcionários, e também os funcionários do Ministério da Defesa e do Ministério das Relações Exteriores relevantes para o uso do sistema FirstMile no Brasil, são todos suspeitos de violar o direito internacional e as leis criminais israelenses”. Você poderia descrever, em termos gerais, quais leis internacionais e israelenses são suspeitas de serem violadas?
O direito à privacidade e à liberdade de expressão são direitos humanos básicos, o sistema FirstMile os violou com o objetivo de prejudicar oponentes políticos e interromper investigações no Brasil. Os principais responsáveis pelos crimes são, obviamente, os perpetradores na Abin, mas, de acordo com as leis internacionais e israelenses, os israelenses são, no mínimo, suspeitos de colaborar com os crimes. Em termos de delitos concretos, como há uma investigação no Brasil sobre a criação de uma organização criminosa, há suspeita de um delito segundo a lei israelense, de auxílio a uma organização criminosa. Além disso, há suspeitas de delitos na lei israelense de auxílio à invasão de privacidade, obstrução de investigações, extorsão, entre outros.
Se poderia supor que, como os crimes que estão sendo investigados foram cometidos no Brasil, por autoridades brasileiras, a Cognyte e as autoridades israelenses não poderiam ser implicadas nisso.
Não. De acordo com as leis penais israelenses, quer os delitos mencionados acima tenham sido cometidos ou pretendam ser cometidos em Israel ou no exterior, desde que constituam delitos tanto de acordo com as leis de Israel quanto com as leis do local em que foram cometidos, ou mesmo que não sejam delitos de acordo com as leis do local em que foram cometidos, as leis penais israelenses se aplicam a eles. Além disso, se for constatado na investigação que alguns dos serviços foram prestados remotamente em Israel, isso também tem importância.