Este sábado (10/08) marca o 24º aniversário da morte de Florestan Fernandes (1920-1995). Figura de destaque na intelectualidade brasileira, sempre se apresentou como alguém comprometido com os “de baixo” – “socialista, militante de movimentos de protesto social, sociólogo e professor”. Sua última obra foi A Contestação Necessária: retratos intelectuais de inconformistas e revolucionários (Ed. Expressão Popular), em que busca resgatar a trajetória de contestadores da ordem social vigente e de suas facetas mais cruéis.
Em homenagem a Florestan, Opera Mundi publica o capítulo sobre Luiz Inácio Lula da Silva, escrito durante a corrida presidencial de 1994, a segunda disputada pelo líder metalúrgico e fundador de Partido dos Trabalhadores.
LULA E A TRANSFORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO1
LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA
Garanhuns, PE, 1945
Líder sindical e político, muda-se de Pernambuco para Santos em 1952. Cinco anos depois, em São Paulo, consegue seu primeiro emprego. Em 1969, como suplente, integra a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, elegendo-se presidente em 1975, com 92% dos votos. Reeleito em 1978, participa ativamente das mobilizações e greves do ABC, onde organizou a grande manifestação de 10 de maio no estádio de Vila Euclides, que reuniu cem mil trabalhadores. Com a fundação do Partido dos Trabalhadores em 1980, torna-se seu primeiro presidente. Participa da criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em agosto de 1983. Como candidato a deputado federal, nas eleições de 1986, recebe a maior votação do país e passa a integrar a Comissão de Sistematização da Constituinte. Nas eleições presidenciais de 1989 recebe 31 milhões de votos; perde para Fernando Collor por 4 milhões de votos. Em 1994, concorre novamente à presidência da República.
Quando se fala na candidatura de Lula à presidência e se procede a restrições de senso comum ou de má-fé, convém lembrar que ele foi deputado constituinte e, por sinal, o que recebeu a maior votação em todo o país. Exerceu seu mandato com exemplar dedicação e, como presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), organizou um governo paralelo que não deu trégua ao ex-presidente Collor, posteriormente apanhado em falcatruas e deslizes que o levaram ao impeachment. Se as elites econômicas, políticas e militares não tivessem jogado o peso de sua resistência contra Lula, ele teria sido eleito presidente do Brasil e nós não enfrentaríamos as crises política, econômica, social e cultural que reduziram a frangalhos a República pós-ditatorial.
Depois de ouvir vários pronunciamentos e opiniões dos que não chegam a compreender a grandeza de um candidato com o passado, o presente e o futuro de Luiz Inácio Lula da Silva, e movem contra ele uma campanha de difamação sem precedentes e também sem dignidade, achei que seria oportuno reunir algumas reflexões que colocam o Homo politicus na esfera da razão. Todos merecem respeito, mesmo os condenados, e ninguém pode ser acusado por ato que não praticou – e jamais o faria – por sua natureza e concepção do mundo. Até hoje, o presidente do PT honrou a herança dos deserdados e seu dever de agir para modificar o cruel destino deles na sociedade em que vivemos.
Os parágrafos seguintes visam dar uma ideia de conjunto do significado de sua vitória sobre as vicissitudes da pobreza e o compromisso tácito que ele assumiu de suprimir a barbárie – ou pelo menos diminuí-la – em nosso país.
As sociedades capitalistas com extremas desigualdades econômicas, sociais, culturais, raciais, políticas e regionais enfrentam problemas e dilemas históricos de difícil solução. Se as elites das classes dominantes forem muito egoístas e praticarem, em associação com as nações capitalistas hegemônicas, formas de espoliação e exploração sistemática dos sem classe, das classes trabalhadoras e de ralas classes médias impotentes, a violência e a contraviolência instauram-se de modo aberto ou oculto no estilo normal de vida. As religiões e o espírito humanitário de raiz ideológica difundem a submissão passiva e promessas mais ou menos utópicas. Mas a própria estrutura íntima da situação histórica impõe a opressão automática e a repressão crescente como garantia de “defesa da ordem” e de “proteção legítima dos interesses de todos”, mesmo das vítimas. O corolário dessa realidade vem a ser a brutalização da pessoa humana, o desemprego em massa ou em proveito dos que mandam, a fome e a ignorância dos subalternos e oprimidos. Estes só mantêm a memória folclórica ou mística e a esperança mágico-religiosa ou teologal, frutos da doutrinação inerente à dominação de classe. Ou sucumbem aos costumes e à tradição ou aceitam a expulsão do meio, que pode tornar-se crônica, sob o modelo de migração espontânea, expiatória ou organizada como empresa lucrativa.
Esse tipo de sociedade capitalista já foi designado como pré-capitalista (por conter elementos débeis e dispersos decorrentes do capital entesourado ou aplicado em transações elementares) e de subcapitalista (por ele arbitrar o trabalho pelo custo da subsistência vegetativa e anulá-lo com o contrapolo do capital, submergindo-o em uma dinâmica própria, na qual o agente econômico se autodetermina e gera explorações quase escravas, semisservis e neocoloniais). A alteração dessa sociedade mais tradicionalista que capitalista, embora receba as duas qualificações com múltiplas ambiguidades e pelo fetichismo do dinheiro é intrincada e sinuosa. Ela depende antes de fatores exógenos, que de influências desagregadoras imediatas. Sua inclusão em uma “sociedade nacional” com fortes impulsos de mudança global tem sido a via principal da mudança. Ocorre que ela pode associar-se à “ordem nacional” como se esta fosse o escudo de sua persistência e, mesmo, do seu fortalecimento. As elites das classes dominantes adquirem, por várias razões, o empenho de manter sua estabilidade e os intercâmbios parasitários resultantes. Isso bloqueia as populações praticamente segregadas dessas sociedades, que ficam excluídas das perspectivas das mudanças da “sociedade global”. Entregues ao despotismo local, vicejam ou florescem segundo ritmos seculares muito lentos, com frequência, deslocados subitamente por regressão.
Elas ficam, portanto, dependentes da evolução – ou da revolução – da “sociedade nacional global”. Certas sedições desabam graças a fluxos de insurgência carismática fundada na fé ou por rebeliões que reúnem, como heróis, bandidos supostos ou reais. Deixam atrás de si manchas ou rios de sangue. E atiçam a opressão e a repressão, revelando que os “compadres” e “protegidos” fictícios são inimigos da ordem em potencial e “precisam ser contidos pelo cabresto”. Não há dó nem piedade. A alternativa “obediência cega” é única, válida para todos. As máscaras dos de cima não se destinam a esconder. São uma espécie de perversidade que sulca mais fundo nos corpos e nos espíritos dos “homens de confiança”. Estes doam tudo nessa inversão rústica da vinculação ao senhor – a vida, o trabalho, a honra, sua e da família – e o que parecem possuir não lhes pertence. O direito do cutelo da escravidão era, pelo menos, mais claro. O direito do chefe rústico não conhece fronteiras. Ele toma, compra, vende, dá e pune conforme suas conveniências e interesses preestabelecidos. O espaço do pobre não se dissociou por completo da tragédia do homem pobre livre sob a escravidão. Ou ele ganha o mundo ou fica atado à sina de reproduzir esse autoritarismo destrutivo no âmbito do lar e da localidade. Se for um valente fica. Se for um forte busca outras plagas, tangido pela seca, pela fome ou pela dor de “não ser gente” perante si mesmo e diante de seus iguais.
E a instauração de uma “sociedade nova”? Ela se deu dentro do colonialismo e do capitalismo associado. Para chegar a ela não basta percorrer longas distâncias – é preciso ter algo de seu, para enfrentar a misteriosa jornada e vencer o duplo apego à terra e ao temor das crenças mágicas e religiosas. Arrancar as raízes é morrer um pouco. Quebrar-se por dentro e arder por fora. A expulsão, ainda que inexorável, exige um complemento. A atração compensadora, que procede do desconhecido, só encontra aval no “basta!” ou em falatórios e acenos dos que se julgam melhor nas comunidades estranhas em que vivem. Assim como se formou a tradição da permanência, forjou-se a contradição de “sair do buraco”, de desenterrar-se. Este componente psicossocial é chave. Ele também representa um “chamado da terra”, contudo de uma terra incógnita e impenetrável enquanto não adquire força a corrente de migração interna, voluntária ou involuntária. A programação capitalista resolveu o impasse, sob a pressão inflexível da necessidade de mão de obra barata, o que quer dizer abundante e desqualificada. Logo, correntes humanas de diversas procedências assumiram a figura de torrentes de seres que despencavam para o Sul ou para Brasília, na conquista de trabalho, comida e “um lugar para arranchar-se”. Por caminhos tortos, fortuitos e imprevisíveis, o Brasil não se nacionalizou. Mas estabeleceu-se uma trama de veias que estendeu e aprofundou certas ligações orgânicas entre os Brasis carregados nas costas desses desterrados, que destruiu identidades rústicas ou semirrústicas e se projetou nos oprimidos das cidades e nelas agitou os germes de uma idade nova, complexa e promissora. Esses proscritos fundiam-se aos poucos com outras gentes e aprendiam, ao mesmo tempo, ofícios novos e aspirações incentivadoras. Tinham de se tornar trabalhadores, para “ganhar a vida” sob uma modalidade ignorada de relação com o capital, e urbanitas, moradores de alguma região ou bairro da cidade. Engolfavam-se em dois mundos desafiadores e que lhes abriam as portas para outros desdobramentos, que complicavam e enriqueciam sua ressocialização. Conquistaram, pois, a identidade diferenciada emergente com enormes sacrifícios.
Na cidade, por precárias que fossem as fases de adaptação e assimilação, os migrantes assinalavam seu valor. A humanização da pessoa sofria seus percalços. Mas ela recebia apoios diversos. Na fábrica e nos sindicatos ou em suas igrejas e na vizinhança: aqui a regra era outra. “Quanto tens, quanto vales”, como prescrevia o provérbio. Não atravessaram de um “quadro rústico” para um “quadro urbano” – nem todos se davam bem na aventura. Muitos se viram atirados de um estilo de miséria para outro, bem como de uma rusticidade para outra. Uma legião de “malditos da terra” iria travar contato com o universo que o diabo repeliu. As ondas sucessivas e as pessoas particulares obteriam quinhões diferentes de exclusão, segregação, desemprego, fome, mendicância, prostituição, crime esporádico e organizado, violências sangrentas, trabalho e emprego, solidariedade por vezes acima da raça e geralmente através da cor, educação escolarizada e ascensão social. Os núcleos de suporte, além do sindicato, da fábrica, das igrejas, abrangiam também a escola e os bairros. O importante é que a rebelião achava vários canais de manifestação simultânea e que o “lugar ao sol” podia ser encontrado e perseguido como uma impulsão de raça, de classe e de religião. O inconformista não precisava calar-se sob os tacões de mandões de mentalidade estreita e de tradições sufocantes. Havia alguma plenitude para a vida e para o sonho que ecoavam no ambiente.
Coincidências históricas fizeram com que o grosso das migrações se desse em períodos de crises econômicas, sociais e políticas – particularmente depois de 1935, sob duas ditaduras implacáveis, que temiam os de baixo e pretendiam submetê-los a uma tutela secularista (não a do “coronel” ou do “chefe rústico”). Quanto mais estimulava a transferência para os centros urbanos dos confins dos sertões ou das pequenas cidades e das comunidades locais, mais a burguesia se sentia insegura com esses deslocamentos que encarava como incontroláveis. A mão de obra barata ameaçava sair muito cara! O edifício de paz burguesa elevou-se, assim, sobre os ombros pisoteados dos trabalhadores e a deterioração interna dos sindicatos. A ditadura de Getúlio Vargas imitou fórmulas italianas dentro de uma maldade tipicamente brasileira. Enquanto parecia servir aos operários e aos sindicatos, fomentou o sindicalismo amarelo, o líder sindical pelego a serviço do Estado e, por seu intermédio, da burguesia e dos desígnios do Ministério do Trabalho. Organizados ou não, portanto, os líderes sindicais e os operários tangenciavam a vontade burguesa, como cauda de suas relações com o Estado e dos seus propósitos sociais. A ditadura militar foi mais direta: definiu, como ponto de partida, a greve como “perigo social” e os operários como “inimigos de classe”. O Estado, simulando pairar acima das classes, de fato, favorecia pacífica ou repressivamente as posições da burguesia, nacional e estrangeira.
Mas havia outra coincidência histórica, mais marcante, à qual poucos prestam atenção. Entre a República Velha, o Estado Novo e a Terceira República em trânsito final, transcorreram processos marcantes. A imigração estrangeira trouxera para o Brasil técnicas sociais de luta de classes, de uso de greves, de grêmios de auxílio mútuo e de partidarismo político. Os imigrantes consideravam-se cidadãos e impunham respeito aos contratos, graças aos consulados de seus países (algo típico, por exemplo, nos conflitos entre os colonos italianos e os fazendeiros). O grão de sal político nunca foi tão denso quanto alguns analistas acreditam. Ele era suficiente, porém, para dissociar diversos segmentos da massa dos trabalhadores da ideologia das classes dominantes. A maioria poderia imitá-las. Grupos ativistas sindicalistas e principalmente anarquistas opunham tenaz resistência ao falso republicanismo vigente e faziam exigências quanto aos níveis dos salários, às condições de trabalho e ao trabalho de mulheres, crianças e velhos, que eram uma vergonha social. Surgiram os sindicatos de profissão e os confrontos da cavalaria e das tropas para sufocar as greves e restringir sua liberdade de ação. Irrompeu a atuação contestatória dos anarquistas e dos anarcossindicalistas, mais tarde rearticulada pela presença do Partido Comunista. Estava montada uma armadilha de contra-ataque à opressão e uma visão de “ordem social” que não se circunscrevia à “legalidade”.
O crescimento urbano-comercial, as tendências à industrialização e os efeitos contraditórios da I Guerra Mundial e da crise econômica de 1929 construíram as bases de algo indesejável pela burguesia: o trabalhador criou, como agente coletivo, por suas mãos, o trabalho como categoria histórica. Ele deixara para trás sua agregação amorfa. Entre os sociólogos, somente Max Weber, fundado em Karl Marx, dera suficiente importância a essa transmutação do aprendiz, do artesão e do assalariado de alta qualificação em contraponto da burguesia. Como categoria histórica, o operário e o sindicato assumiam funções simétricas de autodefesa e de contra-ataque às de que dispunha a burguesia. É claro que o movimento histórico era, aqui, incipiente. Mas ele foi suficientemente intimidador para obrigar a burguesia a ceder parcelas de seu poder político indireto no Estado, através de um governo que se iniciou sob os auspícios do liberalismo e terminou em uma ditadura civil com suporte militar. Esse acontecimento não punha, de imediato, os trabalhadores assalariados ou semiassalariados ao abrigo dos riscos da opressão e da repressão. E rendeu o controle de algumas instituições através das quais as classes dirigentes iriam imiscuir-se, mais tarde, no íntimo da formação do operário e intervir em suas lutas sociais. Todavia as classes assalariadas mostraram seus punhos à ordem existente e davam o primeiro giro histórico para sua conversão em classe em si. Duas décadas mais tarde elas efetuariam o segundo giro, nas grandes greves dos anos 1950.
O que é mais curioso, nesse panorama, é a fragilidade da burguesia e a fraqueza correlata dos trabalhadores em tirarem maior proveito de seu avanço societário. Após o governo Goulart, o que assistimos equivale a um recuo burguês, com a entrega negociada de todo o poder aos militares que comandaram o golpe de Estado e a contrarrevolução, em nome da defesa da ordem, da família e da democracia (um retrocesso a “Deus, Pátria e Família”), que os elementos fascistas não ousaram conduzir às últimas consequências. Os trabalhadores e seus sindicatos e confederações foram amordaçados e sua sobrevivência subordinava-se à submissão integral. Como os cristãos em Roma, os que se mantiveram em condições de desobediência civil foram obrigados a calar e a ranger os dentes. Jogados no fundo do poço, de lá se ergueram por conta de sua resistência – defensiva e ofensiva – e da colaboração ativa que receberam dos rebeldes ocultos (várias personalidades e instituições-chave nas quais a ditadura receava tocar).
O movimento sindical tornou-se um verdadeiro movimento social, que se recusava a agir como cauda da burguesia. Os sindicatos mais ousados trataram de organizar-se nas bases, dentro da fábrica, sabotando a produção, inventando novos tipos de greves que o despotismo burguês não sabia combater e organizando o próprio sindicato como comunidade de diálogo e de luta – a escolha ficava por conta dos patrões. No final, o ciclo militar não se encerra completamente. Mas deixa progressivamente o campo de batalha preservando o poder das classes dominantes e suas elites e sem meios para deter o avanço dos trabalhadores como classe em si. O furor do movimento operário, disposto a avançar se conseguisse as condições necessárias dentro da classe e da sociedade civil, sofreu um declínio sensível (seu radicalismo terminou onde começaria a luta de classes sem quartel).
O trabalho, como categoria histórica, ficara plantado no centro dos dinamismos que passaram a orientar o funcionamento do Estado e todas as atividades centrais do governo, de significado político nacional. Sem completar seu processo de integração como classe em si, os trabalhadores e seus movimentos sociais atreveram-se a exigir democracia com liberdade e igualdade de oportunidades.
Dada essa moldura, é possível recolocar-se o principal enigma de nossa história. Por que as contradições internas tão chocantes e bárbaras não desencadearam as reformas e revoluções capitalistas, pelo menos a partir das fraturas da ditadura militar e da oposição frontal da conciliação pelo alto das diversas facções da burguesia? Não basta apelar para o passado colonial, imperial ou da República oligárquica. Tampouco é suficiente rastrear fatores e efeitos explicativos ligados à difusão das relações de dependência com as sucessivas formas de imperialismo. Alguma coisa brecou a história a partir de dentro. A paralisia burguesa nasce dos meandros de elites conservadoras, estamentais ou de classes. Mas elas concentraram, como minoria, a riqueza, a cultura e o poder e não revelaram nenhuma predisposição para tirar o país do atoleiro, como seria do seu interesse maior. Por quê? Não existem atavismos históricos e, depois das ebulições que fermentaram, até sob a extrema opressão e repressão de 1964 em diante, elas foram impelidas ao conhecido lema: agir ou perecer. A fraqueza dos de baixo, determinada por condições que se reproduziram em situações variáveis, foi a espinha dorsal do ânimo quebradiço daqueles que deviam chocar-se com a ordem “legal” e rebentá-la de alto a baixo. Fragilidade dos privilegiados por fraqueza dos oprimidos, apesar de suas retaliações locais ou regionais, permitiu que o capitalismo que nos coube fosse um capitalismo selvagem. Os de cima imprimiam continuidade à “legalidade”, que pertencia só a eles. Os de baixo não davam um basta, porque temiam agravar seus males. Os de cima comandavam sem receber dos de baixo uma cobrança definitiva. O desequilíbrio modificava muito pouco a transformação da ordem ilegal, coberta pelo manto falso de um Estado de direito fictício. Os de baixo poderiam enfrentar e alterar tal ordem social, podre por fora e por dentro!
Demorou quase um quarto de século para que essa reciprocidade de impossíveis principiasse a balançar e apontasse em outra direção, a do esboroamento. Em termos relativos, os de baixo deram um salto inferior à sua situação de classe real, nas zonas rurais e urbanas (mesmo considerando-se comunidades metropolitanas de maior porte e São Paulo, a megalópole). É necessário que se descontem os anos de compressão inicial e as fragmentações incessantes que isolaram o campo da cidade ou que alcançaram maior fermentação depois da década de 1950, no interior dos sindicatos, das confederações e dos partidos de esquerda. O “inimigo principal”, no centro dos embates, fomentava as divisões e dissensões. Além disso, as classes dominantes promoviam conciliações sucessivas, impondo-se como alvo o “inimigo número um da ordem pública”. Tais obstáculos atrasaram uma evolução tendendo gradualmente para o clímax. Não impediram que a situação de classe dos de baixo se consolidasse, que as convergências mais importantes aflorassem e que elas se irradiassem por toda a sociedade. Novos aliados, procedentes dos setores ameaçados das classes médias, de entidades radicais da sociedade civil e de parcelas consistentes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) (comunidades de base, instituições formais constituídas para defrontar-se com problemas específicos, a Teologia da Libertação, minoritária mas combatente da linha de frente, e a própria política global da CNBB, favorável ao inconformismo como fonte de equilíbrio democrático nos conflitos de classe) reforçaram o ativismo militante das forças sociais subalternizadas.
O reformismo ofereceu o ponto de apoio para uma política de saltos múltiplos concomitantes dos de baixo, embora o fermento revolucionário definisse utopias concretas realizáveis (ou seja, a superação da opressão capitalista por dentro da ordem). A situação de classe sofria alterações que provinham dos interesses e valores variáveis dos agentes coletivos e sua diferenciação constante. Os movimentos sociais imbricavam tanto na situação de classe condicionante, quanto na diferenciação que atingia, ao mesmo tempo, alta mobilidade e rapidez com habilidade espantosa. Em plena crise da ditadura militar na decomposição do poder coercitivo do governo e das classes dominantes sobrou maior espaço histórico para a desobediência civil dos oprimidos. Pela essência de sua longa maturação, os movimentos operários e sindicais marcharam à frente, selando a sorte da ditadura e a natureza das crises econômicas e políticas subsequentes. Mas seguiram-se realizações paralelas do movimento negro (o movimento social mais antigo, pois se organizara como tal em seguida ao abolicionismo dos brancos para os brancos), o movimento das mulheres (pouco eficaz na prática, por dissociar a liberação das mulheres do núcleo ideológico dos conflitos de classes, mas de elevado efeito de demonstração), o movimento indígena (confinado em áreas restritas, mas importante por conferir peso social ao genocídio como prática cotidiana e estratégica), o movimento dos sem-terra (subestimado em suas origens, mas herdeiro de uma tradição revolucionária da luta pela democratização da posse da terra e da política agrária, cujo crescimento e combatividade o colocaram no eixo das alianças de classes expropriadas e da desobediência civil como métodos de desagregação da ordem ilegal vigente), o movimento das crianças de rua e de combate à fome (que carregava consigo o desmascaramento do caráter cristão e pacífico de uma democracia que congelava, mesmo após a ditadura militar e a Constituição de 1988, a cidadania, os direitos sociais fundamentais e a democracia) etc. Constata-se que tudo que o bloqueio militar pretendia estabilizar moveu-se inapelavelmente; e o retrato do Brasil, falseado pela burguesia nos idos de 1960, impusera-se sem que nenhuma força das elites das classes dominantes pudesse impedir.
Reprodução
Florestan Fernandes se definia como “socialista, militante de movimentos de protesto social, sociólogo e professor”
A Constituição de 1988 legitimou a ação defensiva e ofensiva dos movimentos sociais, dos seus agentes humanos e da democracia como estilo de vida, apesar das disparidades aviltantes impostas pela estrutura da sociedade e dos dinamismos da cultura ou da presença exorbitante do Estado no patrocínio dos mais iguais. “Inacabada”, ela ficou a meio caminho, sem levar até o fundo as exigências e expectativas do povo. De qualquer modo, avançou requisitos para outras conquistas (que não foram implantadas por desinteresse de regulamentações legais que deveriam nascer no próprio Legislativo, no Executivo ou no Judiciário, três poderes que equacionam a República democrática em função do status quo, respeitados os interesses e os valores das classes dominantes e do monopólio que elas exercem através da representação). Criou-se um contraste exasperante. O país já está caminhando sobre seus pés e pensando segundo sua cabeça. Mas permanece nos três poderes da federação, principalmente no Legislativo, invertido, de cabeça para baixo. Minorias articuladas formulam o que ele deve ser, enquanto maiorias em rápido processo de articulação veem-se confinadas ao papel de espectadoras, de coadjuvantes ou de fonte de legitimação alienada. Eis aí o erro de cálculo: as eleições disputadas por Luiz Inácio Lula da Silva servem de marco e de sinal de que as coisas não são mais assim… Mitos e realidades do passado remoto e recente ou do presente in flux foram ou estão sendo desmascarados e desmoralizados. Os de baixo, finalmente, equiparam-se à situação de classe de que desfrutam concretamente. Ou os de cima modificam seu horizonte político e seu comportamento ultracentralizador ou logo não acharão quem os obedeça. O medo dos deputados e dos senadores diante de atitudes de repulsa e rejeição serve de contraprova dessa descrição. A ordem legal está em contradição com a ordem social. Esse é o fato crucial. Se o equilíbrio instável entre ambas não proceder de cima, ele terá de impor-se de baixo para cima. As crises e as perdas serão maiores – e piores para os de cima. Mas o capitalismo possui uma lógica política. Os privilegiados da terra não poderão usufruir para sempre de certas vantagens pré e subcapitalistas, e chegou o momento de uma escolha: ou eles toleram reformas e revoluções inerentes ao capitalismo ou eles regredirão a uma posição neocolonial na era dos monopólios gigantes e de seu tipo de imperialismo “conquistador”. A alternativa procederá de uma rebelião popular incontrolável. O povo deixou de ser o espectador surdo, mudo e manietado.
Esta excursão talvez seja longa demais para o objeto restrito deste texto. Não me toca a ambição de situar o herói na história em processo. Ela se impunha, todavia, para a compreensão do significado histórico de Luiz Inácio Lula da Silva. Ele é parte do turbilhão em que se gestou a sociedade brasileira de nossos dias. Era preciso, pois, evocar fatos e processos que ainda não são claros à percepção das elites econômicas, intelectuais e políticas. Para elas, ele ainda é o nordestino que “teve sorte” e que “soube aproveitar-se da boa-fé dos operários do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo”. Não aprenderam nada com suas mutações de importância histórica. O ensaio de Frei Betto sobre Lula (Lula, o metalúrgico, São Paulo, Estação Liberdade, 1989) os auxiliaria a conhecer o homem, o operário, o sindicalista, o deputado, o candidato à presidente da República e o líder do PT. Mas o que menos se quer é conhecer as faces históricas de um político visceral, que atraiu profundamente a curiosidade de Ulysses Guimarães, que soube pressentir a sua importância no atual cenário político. Aos que ignoram os diversos aspectos de sua carreira, tomo a liberdade de indicar a biografia simples mas significativa de Frei Betto.
Há na vida de Luiz Inácio Lula da Silva os anos que abrangem a tragédia do excluído e oprimido e o período em que sua atividade pessoal o colocou em interação com os ideais proletários de transformação da sociedade brasileira. É difícil, mas clara, essa separação. Uma infância de nordestino pobre de uma família grande, mas instável, que esteve mais em companhia da mãe do que do pai. Uma família, enfim, de corte tradicionalista, que se viu arrancada do solo e, pelas contingências da pobreza, deslocou o seu núcleo para o Sul, arrastada pelas correntes migratórias. Sofrimento, trabalhos penosos e incertezas delimitavam seu horizonte cultural. Depois de alfabetizado, a primeira realização de monta confunde-se com o curso no Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e a incorporação à condição proletária. As experiências na fábrica alargaram e enriqueceram aquele horizonte cultural. O choque entre o tradicionalismo e o radicalismo operário deixou sulcos profundos na percepção e explicação da realidade. Luiz Inácio não era uma personalidade qualquer. O modo pelo qual redefiniu seguidamente seus rumos evidencia isso: uma capacidade incomum de autoaprendizagem e de reflexão sobre si e sobre os outros situam-no, ao mesmo tempo, como alguém que quer romper a rotina opressiva do ambiente, inclusive a da fábrica. Há muitas lacunas sobre os pontos altos e baixos dessa fase de desabrochar de um rebelde potencial. O quanto experimentou dos influxos desenvolvimentistas, comunistas e anticomunistas, correntes entre operários? E como as opções se dirigiram para o trabalho, sujeito ao despotismo patronal intermediado por chefes de seções e fiscais de turma, e pela castração política do trabalhador em período anterior à ditadura militar, mas intensificada pelo aparato policial repressivo? O quanto de atitudes negativas ou positivas recebeu de um sindicalismo atrelado ao Estado, cão de guarda dos patrões, e como elas desafiaram a sua argúcia crítica? Quão extensas e profundas foram suas participações dos grupos conspirativos, que reergueram o movimento operário por dentro da situação de trabalho e formularam as exigências de um “novo sindicalismo”? Qual era o grau de tensão emocional e racional que teve o condão de vincular o operário a aspirações de liderança que culminavam em descontentamento e ruptura com os padrões vigentes de acomodação cultural e política? Como se explicava o anseio de renovação sem uma cultura socialista sedimentada (o que se nota até hoje)?
Visto de fora, a primeira marca perene da presença de Luiz Inácio aparece no remanejamento do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo – afirmar-se contra a ordem existente no mundo operário sem romper os limites do inconformismo aceito pelos capitalistas. Os patrões ficaram espantados com um líder sindical que formulava as reivindicações salariais e de melhoria das condições de trabalho e de maior segurança para o trabalhador sem tempestades em copo d’água. Um líder operário intransigente, mas que pretendia negociar sem ameaças. Elaborou-se, pelos meios de comunicação de massa, o estereótipo do novo tipo de liderança sindical, preso aos objetivos diretos e indiretos das negociações e liberado das controvérsias ideológicas. Os empresários sentiam-se estimulados a trocar opiniões e a ceder onde parecia inevitável. Ele ganhou o qualificativo de “líder sindical inteligente”, como se fosse o padrão do “trabalhador exemplar” no capitalismo. Outro passo incisivo de Luiz Inácio voltava-se para a técnica existente das formações sindicais. Não era fácil combater o sindicalismo dos pelegos e dos líderes sindicais oportunistas, atados pelas duas mãos ao governo e aos interesses patronais. Sem dúvida, esse sindicalismo teve o seu momento. Mas ele se esgotara econômica e politicamente. Os riscos do controle estatal e da autocracia patronal ficaram evidentes ao longo da contrarrevolução. Como também se patenteara que a força social dos operários, dos sindicatos e das confederações volatizava-se com indesejável facilidade. Sob muitos aspectos, aquela força social, intrínseca à situação de classe avançada, negava a capacidade de luta social dos trabalhadores e isolava-se dentro de uma concha compensada por mera propaganda pseudopartidária e ideológica. Por fim, o último marco: como difundir concepções inovadoras de organização e de luta sindicalista, dados tantos obstáculos. Foi neste momento que conheci Luiz Inácio e seus propósitos mais amplos. Li várias cartas e documentos que propunham aos sindicatos uma espécie de união interpares. Jamais os trabalhadores, os sindicatos e as centrais operárias chegariam a algum lugar sem fundir suas diversas frentes de luta social e de acumulação de forças. A situação de classe imperante favorecia esse salto maior. A resistência ergueu-se de barreiras psicológicas, nascidas da ambição pelo poder tão arraigada na liderança sindical, de corte antigo ou moderno. A natureza agreste e de cooperação competitiva dos sindicalistas não deixa de ser compreensível. Eles não são anjos. Mas Luiz Inácio nunca conseguiu conectar suas formulações sobre o sindicalismo com os sindicatos vivos e suas lideranças. Teve que se defrontar com um desvio que redundou, mais tarde, na fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) como agregação de estados vassalos e autônomos.
Essa passagem do operário a líder sindical e as duas veredas que se abriram para um novo estilo de negociação com os patrões e uma tentativa de articulação entre sindicatos e centrais operárias assinalam um ápice de carreira política. Os êxitos do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo difundiram-se pela sociedade e promoveram o realce que ele conquistara nos duros embates da classe operária. Nos dois pontos, porém, ele venceu pela metade e teve de engolir muitas amarguras. Os empresários logo descobriram que ele não era o “nosso homem no meio operário” e fizeram uma contramarcha de descrédito pessoal que não encontrou ressonância porque os interesses de Luiz Inácio incrustavam-se entre os operários e as populações pobres no vir a ser de classe social em si. No final, dissiparam-se as confusões de negociação aberta como vitória do patrão, o que lhe foi muito útil. Os líderes sindicais pelegos, muitos com identidades políticas radicais e servos de seus partidos, e até de aparência revolucionária, moveram céu e terra contra uma ameaça inconcebível. Perdiam prestígio social, máquinas do partido e posições de negociação com a burguesia que arruinaram projetos políticos que transcendiam aos sindicatos e às centrais operárias. Tomaram a si aquilo que os empresários faziam, engalfinhando-se em pugnas que implicavam a desmoralização de Luiz Inácio. Este, exibindo uma ponderação matreira, fez um giro de 180 graus, que iria culminar na instalação do PT e na fundação da CUT.
Sem bases teóricas mais amplas, partiu da situação de classe dos trabalhadores e dos oprimidos em geral. No conjunto, a série de eventos encadeados envolvia processos econômicos, culturais, sociais e políticos. Como a descompressão da ditadura permitia aproveitar o caminho percorrido de maneira mais sólida, Luiz Inácio começou pelo que era mais urgente e estava ao alcance das mãos. Nos confrontos com os capitalistas nacionais e estrangeiros viu o que era óbvio: os trabalhadores careciam de um polo político próprio para dinamizar a sociedade civil segundo seus interesses, valores e ideologia. Não podiam “cercar” o inimigo real. Contando com um partido, porém, teriam como organizar-se para os embates nas altas esferas do poder político específico, isto é, estatal e governamental. De imediato, o alcance da inovação parecia pequeno, pois outros partidos anteriores, como o PCdoB (Partido Comunista do Brasil) e o PCB (Partido Comunista Brasileiro), e formações radicais de classe média, parassocialistas, haviam falhado nessa tentativa. As circunstâncias históricas eram outras. O PT mourejou para crescer, mas em uma década lograra êxitos sem precedentes. Com o PT, o operário chega ao Congresso Nacional e trava batalhas cujo alcance pode ser medido pelo que conseguiu, aliado a outros partidos de esquerda ou a facções de centro-esquerda. Luiz Inácio lança-se, por essa via, a um cenário nacional ávido por ouvi-lo e por segui-lo. Suas práticas de liderança combinavam um máximo de democratismo com um mínimo de autoritarismo. Durante os trabalhos da Assembleia Constituinte, punha as questões em debate na bancada do PT, sem quase interferir nas discussões; por fim, entrava em cena com uma solução inclusiva (isto é, que apanhava os problemas pela raiz). Assim surgia a proposição a ser posta em votação, quase sempre aprovada pela maioria. O produto consistia na decisão do partido, negociado depois por ele próprio, por outros membros individuais ou por pequenos grupos da bancada. Os confrontos – de grande ou pequena monta –, se davam nas diversas comissões. Nelas firmava-se o ganha, perde ou modifica, com a bancada sempre pronta para reunir e retomar os debates de aceitação ou rejeição e o líder atento ao desenrolar simultâneo das soluções de real importância para o PT. Nesse sentido, revelou-se um líder de espírito político aberto, que concedia prioridades visíveis a questões ligadas aos assalariados, aos sindicatos operários e aos confortos ou necessidades de que são privados os setores desvalidos da população.
A CUT foi concebida como a esfera de auto-organização livre dos trabalhadores. Ocorreram, dentro dela, conflitos que vicejaram por causa de curto-circuitos entre modelos mais democráticos de organização (práticas que cresceram sob o jugo ditatorial) ou de sindicatos associados por convergências nascidas da própria condição operária, mas intermediadas desde a origem até o topo. A rapidez com que a CUT se firmou na constelação empresarial e política parece surpreendente. Mas é preciso atentar que ela fortalecia sindicatos que, isolados, teriam baixo poder de barganha e porque ela preenchia o vácuo legado pela arquitetura da “paz burguesa” montada por Getúlio Vargas e sustentada pelos governos posteriores. Luiz Inácio desempenhou distintos papéis burocráticos, políticos e de relações entre estratégia e tática dentro do movimento operário na formação e evolução da CUT. Recusou qualquer fusão entre as duas instituições – a CUT e o PT –, embora fosse evidente que pôs lado a lado um braço econômico forte das lutas sociais dos trabalhadores e um braço político ativo para alçar aquelas lutas ao lugar onde elas se decidem. Na prática, prevaleceu um intercâmbio orgânico, que separava idealmente as duas instituições, mas as impulsionava à unidade ou à convergência de objetivos nucleares. As greves gerais e, principalmente, a elaboração da Constituição de 1988 deixam esse efeito em claríssima evidência.
Os elos dessa exposição encadeiam operário, líder sindical e vocação política invulnerável. Esta merece saliência especial: ela impregna todas as atividades de Luiz Inácio Lula da Silva e brotou assim que surgiram as oportunidades para sua eclosão. Foi o que lhe proporcionou vantagem sobre a concorrência com outros líderes sindicais, alguns de mais renome na ocasião. Foi também o que lhe permitiu sobrepor-se à intimidação empresarial e acumular vitórias em várias greves complicadas, nas quais lhe valeram sua intuição para transtornar técnicas desgastadas de conflito e recorrer à imaginação política para antecipar os resultados alternativos possíveis. Essa vocação política natural refinou-se com notável rapidez e impunha a procura de assessorias confiáveis e competentes. Seguindo seu procedimento habitual, os assessores definiam relações entre meios e fins, forneciam dados conclusivos, mas nunca deram a fórmula recomendável e suscetível de correções por ensaios de erros e acertos. Portanto, a vocação política nascia da complexa combinação de experiência, informações fidedignas, intuição e imaginação política invulgares.
Na Assembleia Nacional Constituinte pude acompanhar como sua personalidade política funcionava, a mente criadora de um autêntico “homem de ação”, imbuído de uma práxis de “transformação do mundo”.
Os momentos típicos de sua carreira política poderiam, pois, englobar funções extrapolíticas e parapolíticas. Como líder sindical, por exemplo, estimulou greves e manifestações operárias carregadas de significado político: greves que desafiavam os limites prescritos pela ditadura aos trabalhadores, aos sindicatos, aos cidadãos e às instituições tidos como “perigosos”; ou o grande comício realizado em Vila Euclides, em 1980 – que transtornavam qualquer disposição de tolerância pelo regime. O melhor, entretanto, seria demarcar em sequência os momentos específicos de competição pelo poder político-estatal. Além da candidatura frustrada para ocupar o governo do Estado de São Paulo, a listagem abrange: a candidatura de deputado federal constituinte; a candidatura à presidência da República, quando caiu nas armadilhas das elites das classes dominantes, da difamação proliferada pelos meios de comunicação; o uso pioneiro do “gabinete oculto” (denominado “governo paralelo”) que favoreceu uma investigação sistemática do desgoverno Collor (fonte de sondagens e conhecimentos que transcendiam ao âmbito de ação de uma tentativa de modernização arcaizante e de técnicas de rapinagem que associam os empresários nacionais e estrangeiros no solapamento da soberania nacional); a sua “campanha civilista” – através das várias caravanas da cidadania – que percorreu, de Norte a Sul, todas as regiões do Brasil, com o fito de desvendar as realidades ignoradas por um governo isolado em Brasília, prisioneiro de seu degredo geopolítico e militar; a atual candidatura à presidência, amarada por alianças com os partidos da esquerda e pelos radicais de centro-esquerda, dispostos a modernizar o país fora e acima de acordos tutelados e monitorados a partir das corporações gigantes, das nações centrais e de suas conglomerações político-diplomáticas, controladas pela Europa, Estados Unidos e Japão.
Não se trata de voltar ao desenvolvimentismo e maiores disparidades econômicas, raciais, culturais, regionais e políticas. Tampouco de desembarcar com a maior pressa e cegueira possíveis em uma globalização mistificada e em um neoliberalismo falsificado. Mas também não há uma obsessão pelo isolacionismo nacionalista que pretenda refazer os caminhos dos Estados Unidos e do Japão fora de época. O PT, em suas principais correntes internas, é um partido dos trabalhadores que aspiram construir uma sociedade nova sob o socialismo. Todos sabem o quanto isso é impraticável observando a velha estratégia do “quanto pior melhor”. Pior para quem? Melhor para quem?
Cabe, neste escrito, uma digressão. As duas tendências mais fortes no PT ou levam à social-democracia ou ao socialismo revolucionário. Nenhuma delas é suicida. No ABC do marxismo aprendemos que o grau de desenvolvimento capitalista condiciona as possibilidades e as perspectivas de uma revolução social. Ninguém parece disposto a pagar preço inútil de uma revolução social predestinada ao malogro e à regressão. Por isso, temos de desenterrar e de refinar duas antigas noções empregadas pelos clássicos da reforma social e da revolução social: as de “revolução dentro da ordem” e de “revolução contra a ordem”. Resistir a essas noções traduz medo diante do capitalismo e perda de confiança no socialismo como alternativa de civilização sem barbárie.
O programa do PT visa saturar os requisitos da primeira noção. A burguesia, na Europa e nos Estados Unidos, deu pleno curso à revolução burguesa por causa do poder de pressão dos de baixo e de seus aliados nas classes sociais intermediárias. A revolução burguesa só foi realmente burguesa em seus primórdios, quando ela se debatia com o antigo regime e buscava o apoio dos de baixo (nos Estados Unidos a equivalência desse processo precisa ser tirada dos aristocratas e escravocratas do Sul). Ao irromper como poder absoluto a burguesia tentou brecar a revolução. Não conseguiu porque o desenvolvimento capitalista acelerado pôs frente a frente os antagonismos de classe, alimentados pelos que rejeitavam a interrupção da revolução. No Brasil e na América Latina, a revolução burguesa foi interrompida em níveis precoces, favorecendo a coexistência do arcaico, do moderno e do ultramoderno.
Ficaram, assim, imensos vazios não preenchidos pela ocupação remunerada, pela eliminação de desigualdades iníquas, de padrões indignos de vida, de ignorância e de ralas oportunidades educacionais, de cidadania restrita e de democracia como estilo de vida dos privilegiados. A segregação e a discriminação étnicas e raciais não foram arroladas, porque elas constituíam, por si mesmas, a base de uma burguesia colonialista e ultraespoliativa, como se a semiescravidão adquirisse estabilidade na sociedade civil capitalista.
O programa do PT ergue-se como uma ruptura com o passado colonial, com o neocolonialismo instaurado com a transferência da Corte e com a situação de dependência que desatou aparências da revolução burguesa ao que se restringia à importação de técnicas sociais, culturais e políticas manipuladas em favor de privilégios de minorias organizadas sob os modelos de dominação de castas ou de classes, de acordo com os ritmos e rumos das transformações internas. A questão nada tem a ver, hoje, com a restauração de uma revolução burguesa exógena em pleno trópico. Mas de debelar os problemas e dilemas sociais provocados pela inércia das elites dos estamentos (no passado remoto) e das classes sociais (no passado recente e no presente). Como diriam os educadores da década de 1930: a educação não é privilégio. É primordial democratizar a sociedade civil e o Estado. O desenvolvimentismo criou esperanças que nasciam frustradas, porque ignorava as reformas e revoluções decorrentes do capitalismo maduro. Não é preciso repetir o elenco das mudanças estruturais. É suficiente colocá-las em seu lugar e ressaltar que elas são transitórias para os que almejam o socialismo como meta final. Dadas as alterações ocorridas nas relações de classes e a capacidade de impor mudanças capitalistas de baixo para cima, o conjunto de transformações profundas confunde-se com a revolução dentro da ordem. O capitalismo não voa em cacos pelos ares. Porém, a ruptura com superposições de estruturas coloniais, neocoloniais e de dependência persistentemente redefinidas, segundo estratégias de determinadas nações hegemônicas, de conglomerados de corporações gigantes e de uma globalização do mundo do capital, deixa de funcionar como ameaça, fator de deformações e limite ao desenvolvimento capitalista interno. A revolução permanente assume feições complicadas na atual periferia.
A opção de Luiz Inácio por visões prospectivas de desenvolvimento capitalista interno – que o incorpora às experiências social-democráticas – são nítidas. A ruptura interna já é, por si mesma, um fardo pesado para um governo e um Estado em crise e desafia a resistência sociopática à mudança estrutural das elites das classes dominantes. O reformismo e o revolucionarismo circunscrito (às relações raciais ou à educação, por exemplo) podem ser aceitos por várias classes sociais e facções de classes sociais. E não negam, por si mesmos, e tampouco impedem a revolução contra a ordem se o clamor pelo socialismo difundir-se como fogo no palheiro. Um partido dos trabalhadores não pesca soluções confinadas – ele transcende o status quo e a ordem social existente. Para que ele ganhe maior espaço histórico impõe-se que os inconformistas atinjam a radicalidade em condições históricas nas quais possam instituir a democracia da maioria, combinando igualdade com liberdade e outros alvos concomitantes ou sucessivos. Luiz Inácio silencia sobre tais desafios, porque sabe que a revolução dentro da ordem já inscreve os antagonismos sociais na dinâmica normal das relações de classes e em uma rede ampla de transformações que, se forem concretizadas, converterão o Brasil em um país capaz de produzir – e não só consumir – a civilização moderna. Enquanto os neoliberais sonham com o enterro do socialismo, a própria sociedade capitalista favorece o seu renascimento nos moldes das exigências históricas e conforme os princípios filosóficos que o erigiram na invenção mais sublime da mente criadora dos seres humanos.
1 Publicado na revista Praxis, Belo Horizonte, n. 2, set. 1994, p. 7-25.