“Direito à defesa” tem sido um termo usado tanto por palestinos quanto por israelenses desde o ataque sem precedentes realizado pelo Hamas neste sábado (07/10) a territórios palestinos ocupados por colonos israelenses, e a reação do governo de Israel de declarar guerra contra os palestinos em Gaza.
Porém, qual desses dois setores tem mais direito de reivindicá-lo? Para Bruno Huberman, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e vice-líder do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP), a resposta a essa questão requer dimensionar a condição atual na que vivem os palestinos em Gaza, que, segundo ele, é comparável com a vivida pelos judeus em Varsóvia na Segunda Guerra Mundial, ou pelos negros sul-africanos durante o regime do apartheid.
“Tanto o projeto sionista quanto o nazifascismo e o dos afrikaners se baseavam na defesa da supremacia branca contra minorias racializadas”, analisa o especialista a Opera Mundi, que acrescenta: “em comparação com Varsóvia, o caso de Gaza talvez seja ainda pior. A vida das pessoas em Gaza é pior. O que é pior no caso do Gueto de Varsóvia é que houve uma solução final, e o governo israelense, ao menos até agora, não tem uma solução final para Gaza”.
Militante judeu pró-palestina, Huberman prevê que a reação israelense aos ataques tende a ser muito violenta, mas que “chama a atenção o fato de que agora vemos o Hamas liderando uma coalizão de forças palestinas muito bem organizada, com drones, com barcos, uma organização militar que não era demonstrada há muitos anos”.
Leia a íntegra da entrevista de Opera Mundi com Bruno Huberman:
Opera Mundi: Qual é o significado deste episódio no contexto da longa disputa entre o governo de Israel e as forças de resistência da Palestina?
Bruno Huberman: Este é o maior levante popular palestino desde a Segunda Intifada (2000-2005). Não em número de pessoas, porque em 2021 houve a Intifada da Unidade, que ocorreu no país inteiro, que se seguiu com o ataque a Gaza e a resistência dos palestinos de Jerusalém, mas o que estamos vendo é uma ofensiva militar e política, com retomada de território, sequestro de pessoas para negociação política.
Enfim, é o retorno às respostas militares, como as que marcaram a resistência palestina por muitos anos, especialmente nos tempos da Guerra Fria, e que foi derrotada em outras épocas pelos israelenses.
Como entender a iniciativa do a Hamas?
O Hamas é a organização que buscou manter uma radicalidade do movimento nacional palestino no momento em que o Fatah, liderado pelo (Yasser) Arafat, decidiu negociar com Israel nos Anos 90 e fechar um acordo de paz, que não deu em nada. Esse acordo cumpriu 30 anos neste 2023 e não teve nenhum resultado.
O Hamas ganhou força nesse momento em que propôs recuperar uma radicalidade que a resistência palestina vinha perdendo no final da Guerra Fria.
Isso é muito importante, assim como é importante a tentativa de furar o cerco a Gaza, que existe desde 2005, a partir de um projeto de isolamento do Hamas em Gaza.
Esse projeto teve incentivo dos Estados Unidos e de Israel para fomentar uma guerra civil entre os palestinos, entre o Hamas e o Fatah, para fortalecer a divisão entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Além do bloqueio total tanto marítimo, quanto aéreo e terrestre, a destruição de túneis, tudo isso para inviabilizar a vida dos palestinos em Gaza.
Nesse sentido, a cena do trator furando o cerco a Gaza, e depois aparecem os palestinos comemorando, isso é muito significativo.
O que esperar da resposta de Israel, além do que já foi visto nestes dois primeiros dias?
O que se pode esperar de Israel é muita violência. É o clamor que estamos vendo nos noticiários, tanto por figuras políticas israelenses quanto norte-americanas, como é o caso da Nikki Haley (ex-embaixadora dos Estados Unidos na ONU). Há parlamentares de Israel defendendo abertamente o genocídio dos palestinos e jornalistas pedindo uma nova Nakba (expulsão dos palestinos de suas terras, ocorrida em 1948).
Também há declarações que chegam a ser irônicas, como a do (Benjamin) Netanyahu pedindo para os palestinos deixarem a Faixa de Gaza após a declaração de guerra. Ele disse “fujam”, mas os palestinos não têm para onde fugir, porque Israel os mantêm presos, eles não podem sair.
Então, o mais provável é que aconteça um banho de sangue. A única coisa que pode evitar isso é uma negociação política pela soltura dos reféns (israelenses), mas até o momento não há indícios de que os israelenses estejam dispostos a tal negociação.
Inclusive, esse discurso de Tel Aviv de tentar enquadrar o que aconteceu como “o 11 de setembro israelense”, que não faz o menor sentido, demonstra essa intenção de uma resposta muito violenta por parte de Israel, como foi a resposta norte-americana em 2001.
PxFuel
Para Bruno Huberman, palestinos em Gaza enfrentam opressão compa´rável à sofrida pelos judeus no Gueto de Varsóvia
Se Israel compara o que aconteceu ontem com o 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, a Palestina pode comparar a condição atual de Gaza com outro momento histórico? Alguns analistas, mesmo antes do que aconteceu, fazem alusões a casos como a dos judeus em Varsóvia e dos sul-africanos em Soweto. Como você vê essas comparações?
São comparações adequadas. Todas elas são apartheids. Todas elas mantiveram uma comunidade enorme enclausurada, cercada por muros, segregada.
Com outras características, claro, mas é comparável, pois tanto o sionismo, quanto o nazifascismo, quanto o regime dos afrikaners foram ou são projetos de supremacia branca contra minorias racializadas, contra os palestinos, os judeus e os negros sul-africanos, respectivamente.
Porém, acho que a situação de Gaza atualmente, mesmo em comparação com esses casos extremos, é ainda pior. A vida das pessoas em Gaza é pior. O que podemos considerar pior, no caso do Gueto de Varsóvia, é que houve uma solução final, e no caso de Gaza, o governo israelense, ao menos até agora, não tem um projeto de solução final.
Até onde esse conflito pode escalar?
É difícil prever, mas o que chama a atenção agora é que nós vemos o Hamas liderando uma coalizão de forças palestinas muito bem organizada.
Este ataque de sábado foi muito bem organizado, com drones, com barcos, com um tipo de parapente que os palestinos desenvolveram, entre outras coisas. Os palestinos tiveram desta vez uma organização militar que não era demonstrada há muitos anos.
Por outro lado, há problemas do lado de Israel. Os reservistas israelenses estão reclamando da qualidade dos equipamentos que estão recebendo, o que pode significar um certo sucateamento das forças israelenses, ao menos aparentemente.
Outro fator que é decisivo para saber até onde o conflito pode escalar é se o Hezbollah vai ou não participar. Eu acho difícil (que participe). O Hamas e o Hezbollah nunca tiveram uma aliança, e se isso acontecer seria algo inédito.
O que esperar da reação internacional ao conflito? Existe alguma possibilidade de ajuda externa aos palestinos no atual cenário?
A reação internacional tem sido de apoio total a Israel. Os palestinos receberam declarações de solidariedade do Hezbollah, além dos governos do Irã e da Síria, mas nenhum desses tende a se transformar em um apoio militar, especialmente no caso dos iranianos e dos sírios, porque isso significaria o início de uma guerra em toda a região, com o potencial de tomar proporções gigantescas. Acho que a racionalidade dos atores envolvidos impedirá que isso aconteça.
Uma questão importante desse conflito no contexto internacional tem a ver com as consequências para as negociações que Israel vem promovendo com as nações árabes, especialmente com a Arábia Saudita.
Talvez, uma das intenções da resistência palestina a partir desse ataque é a de mostrar aos árabes que estão negociando a paz com Israel, buscando uma normalização das relações como se isso também representasse os interesses dos palestinos, que essa visão não faz nenhum sentido, e assim interromper principalmente uma possível aliança entre Israel e Arábia Saudita.