Desemprego, fome e inflação. Estes são alguns dos principais problemas enfrentados pela população da Argentina nestes quatro primeiros meses do governo ultraliberal de Javier Milei.
Um cenário que já era “claramente” previsto pelo próprio presidente do país platino, segundo a avaliação de Pablo Chena, professor de Economia pela Universidade Nacional de La Plata e ex-diretor Nacional de Economia Social e Desenvolvimento Local.
“É a consequência lógica das políticas neoliberais implementadas. Para ser mais específico, com o governo do partido A Liberdade Avança (extrema direita), passamos da retórica política de ‘o Estado cuida de você e os monopólios são os culpados pelos problemas econômicos como inflação, restrição externa, fuga de capitais’, para aquela resumida por Milei como ‘o Estado é uma associação ilícita e os monopólios são benfeitores sociais, porque trazem bem-estar e reduzem a pobreza’”, explica o economista a Opera Mundi.
Na última semana de março, Milei anunciou a demissão de 15 mil servidores públicos, totalizando 24 mil trabalhadores que perderam suas funções desde o início do atual governo, com a implementação de sua política de ajuste fiscal e redução do poder do Estado.
“É parte do trabalho que estamos fazendo para reduzir o Estado, são funcionários que não são necessários”, informou o porta-voz da República, Manuel Ardoni, em coletiva de imprensa.
A declaração não passou batido. A Confederação Geral do Trabalho (CGT), que havia promovido a primeira greve geral contra Milei em 24 de janeiro, logo anunciou uma “grande mobilização” para 1º de maio, data marcada como o Dia dos Trabalhadores.
Trata-se de uma “destruição do Estado” que implica diretamente na integridade dos funcionários contratados, segundo Johanna Duarte, secretária gremial da União de Trabalhadores e Trabalhadoras da Economia Popular (UTEP), um sindicato argentino destinado à defesa dos direitos dos excluídos do mercado de trabalho.
Ao criticar que as recentes decisões beneficiam os especuladores financeiros em detrimento dos direitos da maioria do povo argentino, a representante destacou a Opera Mundi o papel crucial da CGT, ao considerá-la uma “ferramenta central para deter este governo”, atribuindo-a a capacidade de convocar grande parte dos setores argentinos “contra os avanços do governo criminoso de Milei”.
“A partir da UTEP, temos construído diferentes jornadas de luta para denunciar a política de Milei de proibir as cozinhas comunitárias, em um país onde temos quase 60% dos irmãos argentinos vivendo em níveis extremos de pobreza. Fecharam mais de 40 mil cozinhas comunitárias, sendo elas o único meio para garantir um prato diário de comida a mais de quatro milhões de argentinos. É, sem dúvida, uma política de genocídio social deste governo. E sem dúvida, aumentará o conflito social e acabará se manifestando por meio de uma mobilização massiva contra Milei”, afirmou Duarte.
Fome e pobreza: Milei já sabia
De fato, os quatro meses de Milei no poder têm sido marcados por protestos. A população pôs os pés nas ruas para criticar as medidas neoliberais. Uma das pautas que mais tem mobilizado as pessoas é a da precificação dos recursos básicos, sobretudo, dos alimentos e medicamentos.
Ainda em março, o Instituto Nacional de Estatística e Censos da Argentina (INDEC) lançou um informe revelando que a linha de pobreza no país atingiu 41,7% da população no segundo semestre de 2023, afetando cerca de 19,5 milhões de pessoas, enquanto 11,9%, cerca de 3,5 milhões de pessoas, estão em situação de indigência.
Embora os números divulgados se tratem da gestão do ex-presidente Alberto Fernandez (2019-2023), esta é uma questão que, apesar das diversas promessas de melhoria realizadas em campanhas eleitorais, não tem sido “bem conduzida” pelo atual mandatário, segundo Chena. E Milei “já sabia” do cenário que ia conformar seu país durante o primeiro semestre de governo.
“Milei sabia que a desvalorização de 51% da moeda local, combinada com um ajuste fiscal feroz para atingir o déficit zero, um ajuste monetário e a liberalização dos preços monopolistas dos alimentos, iria gerar estagflação, maior pobreza e miséria”, aponta o economista.
Para Chena, o fenômeno do aumento repentino da pobreza se deve ao fato de o atual governo ter desvalorizado a moeda local logo que tomou posse, e simultaneamente ter divulgado o preço dos alimentos de consumo massivo produzidos por grandes monopólios locais e estrangeiros.
“Esta política significou um aumento no preço dos alimentos de mais de 100% em três meses”, acrescenta o docente.
A coca-cola quintuplicou
“Uma coca-cola que custava dois reais agora está por dez reais. Nunca um ônibus ou metrô, nos dois anos que morei, foi menos de um real. Agora está a 1,50, e com previsão de que vai continuar aumentando. Está aumentando muito, num nível que vai fazer diferença na conta final do mês”, desabafou Julia Ferreira, uma brasileira de 23 anos que atualmente reside em Buenos Aires.
A jovem contou a Opera Mundi que se mudou para a capital argentina em janeiro de 2022 com o objetivo de iniciar seus estudos no curso de medicina em uma instituição privada, notando vantagens por ser “mais barato do que no Brasil”.
“No geral, os gastos para me manter aqui, com tudo incluso, contando moradia, comida, lazer, transporte… o combinado com os meus pais era um gasto de 2,5 mil reais. Foi assim por um tempo”, disse Ferreira, preocupada com o aumento frenético dos preços na prateleira dos mercados.
“As pessoas estão tendo dificuldade. Não estão comprando mais tanta carne. Estão trocando as marcas dos produtos que compravam, como o sabão em pó, por exemplo. Agora eu estou comprando um arroz mais barato, de uma marca que nunca vi, e vou mudar de açougue”, lamentou a estudante, que teve que adaptar os gastos do cotidiano à realidade permitida pelo país.
Em relação a esse cenário de inflação que impacta diretamente no dia a dia do povo argentino, o professor Chena defende algumas medidas econômicas que Milei deve tomar para aliviar a crise nos próximos meses. Entre elas, a necessidade de uma expansão do crédito produtivo que possibilite a recuperação de parte da produção de recursos e de empregos. Para isso, uma regulação rigorosa na entrada e saída do capital financeiro especulativo, somada a uma renegociação da dívida pública com órgãos como o Fundo Monetário Internacional (FMI), que conte com redução de juros.
No entanto, em relação às perspectivas do modelo Milei e de suas tendências, o economista compartilha de uma visão pessimista.
“Estimo que veremos um aumento significativo do desemprego, fruto de uma recessão profunda. Simultaneamente, a diminuição da inflação devido à própria recessão e à abertura das importações. A pobreza e a indigência permanecerão nos níveis atuais e a desigualdade social aumentará”, especula Chena.