O novo conflito entre o governo de Israel e o Hamas, iniciado a partir do ataque realizado neste sábado (07/10) pelas Brigadas Al-Qassam – braço armado do grupo jihadista – e da reação anunciada pelo premiê israelense Benjamin Netanyahu de lançar um novo operativo militar em Gaza adiciona mais um capítulo na longa história de conflitos sangrentos entre esses ambos os lados, e obriga a um novo debate sobre a possibilidade ou não da paz na região.
Para o doutor em Ciências Políticas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Reginaldo Nasser, o conflito que estourou neste sábado tende a mobilizar novamente a comunidade internacional, mas a busca por uma solução vai requerer um discurso atualizado a respeito do tema.
Nesse sentido, a Opera Mundi, Nasser criticou a postura do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, que se referiu ao tema defendendo a retomada de um diálogo visando a solução de “dois Estados”, falando da “garantia da existência de um Estado Palestino economicamente viável, convivendo pacificamente com Israel dentro de fronteiras seguras para ambos os lados”.
Para o acadêmico, especializado em história e conjuntura política dos países árabes, a” ideia de dois Estados já acabou”: “ainda que se quisesse retomar essa proposta, seria impossível torná-la real. Vários pensadores e analistas, mesmo nos Estados Unidos, já estão dizendo isso. Os colonos que ocuparam as terras palestinas nunca vão sair”, frisou Nasser.
O cientista político disse que o governo brasileiro precisa atualizar sua visão sobre o conflito, recomendando “uma ação que seria muito importante e que pode ser tomada agora, através do Conselho de Segurança da ONU (onde o Brasil ocupa a Presidência durante todo o mês de outubro), que é a de validar dois relatórios que foram produzidos há cerca de dois anos, um da Human Rights Watch e outro da Anistia Internacional, mostrando que existe um apartheid na Palestina”.
Leia a íntegra da entrevista de Opera Mundi com Reginaldo Nasser:
Opera Mundi: qual impacto desse episódio de hoje? O que ele significa no contexto dessa longa disputa entre o governo de Israel e as forças de resistência da Palestina?
Reginaldo Nasser: há vários componentes a serem analisados. O primeiro que devemos analisar é o componente político da ação realizada pelo Hamas e pelas Brigadas (Al-Qassam). Para além das justificativas, como a opressão histórica de Israel, da expropriação do povo palestino, da situação deplorável que vive Gaza atualmente, uma cidade que é uma verdadeira prisão a céu aberto, uma série de condições estruturais que permitem reivindicar uma ação de resistência, a questão política passa pelo fato de que o governo de Netanyahu vinha tendo muito sucesso em vários campos.
Internamente, Netanyahu vinha articulando com os setores de direita e de extrema direita. Internacionalmente, voltou a articular um projeto importante com o governo dos Estados Unidos, o qual tenta envolver também a Arábia Saudita.
Devido à aproximação que a Arábia Saudita tem com Israel, diferente do que acontece com os Emirados Árabes, ela não entrou nos Acordos de Abraão – lembrando que esses acordos foram um projeto iniciado no governo Trump e que envolveu vários estados árabes em um processo chamado “normalização com Israel”.
Nesse contexto, Netanyahu vem tentando explicitamente desapropriar o que resta de território da Palestina. Então, essa ação, que joga luzes sobre a questão palestina, pode aumentar os custos de um possível acordo da Arábia Saudita com Israel. Não é possível fazer uma previsão mais a longo prazo das consequências do que ocorreu hoje, mas em um primeiro momento essa será uma questão que vai ser afetada.
O que esperar da resposta de Israel? O que o atual governo do país, aliado à extrema direita, poderia fazer de diferente ao que já foi realizado em outras ações promovidas nos últimos anos?
Se analisarmos historicamente as ações militares impulsionadas por Israel contra os palestinos, não vamos ver muitas diferenças entre o realizado por governos trabalhistas, considerados de esquerda, e o que fazem os governos de direita. Acho que nesse caso existe um consenso. Os chamados “sionistas de esquerda” estão, neste momento, ao lado das forças de Israel.
Muita gente está fazendo comparações com o que aconteceu há 50 anos, na guerra de 1973, quando Egito e Síria atacaram Israel de surpresa e foi um revés importante (para Tel Aviv). É preciso ter um certo cuidado (com essa comparação). Em primeiro lugar, não se pode comparar o atual equilíbrio de forças entre Palestina e Israel com o que havia naquele então entre Israel por um lado e Egito e Síria do outro. Ainda assim, Israel reverteu a ação (naquele caso), ocupou parte do território da Síria, estabeleceu a paz com o Egito e mudou todo o perfil histórico da guerra com esses Estados árabes.
Além disso, Israel cresceu militarmente (desde então). Acredito que da mesma forma, (o ataque de agora) foi uma ação inesperada, mas a capacidade de reação de Israel supera infinitamente as forças que possui a Palestina, é maior que a de qualquer Estado árabe, e vai ser um massacre. Já está acontecendo um massacre em Gaza neste momento.
Gaza, para que se tenha uma ideia, é um território do tamanho de Parelheiros (bairro de São Paulo), mais ou menos, mas possui dois milhões de habitantes, uma das maiores densidades demográficas do mundo e é um dos lugares do mundo de onde não podem sair refugiados. Acontecem esses ataques e as pessoas não têm para onde fugir. É uma situação lastimável.
Portanto, não haverá diferenças neste caso. Gaza continuará cercada. É impossível haver uma vida com um mínimo de dignidade nesse território. Apesar de nós falarmos de uma forma geral da “questão palestina”, esse tema tem se dividido cada vez mais em “questão da Cisjordânia” e “questão de Gaza”. Essa foi uma estratégia do (ex-premiê) Ariel Sharon: quando ele anunciou que “haveria autonomia em Gaza” houve grupos de defesa da Palestina que comemorou, mas foi uma estratégia para que, a partir daí, se fizesse este cerco que existe hoje por mar, terra e ar.
Ricardo Stuckert
Lula se encontrou com o líder palestino Mahmoud Abbas na última Assembleia Geral da ONU em setembro e defendeu com solução de dois Estados
O que esperar dos países árabes com relação a este episódio, especialmente aqueles cujo território está próximo ao conflito?
Há um longo processo de “normalização”, vamos chamar assim. Em primeiro lugar, é preciso desfazer um equívoco, uma narrativa que Israel adora, de que se trata de um conflito entre árabes e judeus. Isso não é verdade, pois não envolve todos os árabes, e tampouco os governos árabes.
Os Estados que entraram em guerra contra Israel em algum momento são: o Egito em 1957, depois que Israel, junto com Inglaterra e França, atacaram o Egito; depois Egito e Síria em 1967, e novamente em 1973.
Nunca houve outro Estado árabe em conflito armado contra Israel. A Jordânia, por exemplo, sempre foi muito próxima a Israel. Os países do Golfo Árabe idem. O Egito foi quem fez a grande guinada. Após a guerra de 1973, quatro anos se passaram e, em 1977, assinaram um acordo de paz mediado pelos Estados Unidos.
Agora, as ruas (nos países árabes) sempre se manifestam a favor da Palestina, e os governos desses países, temendo a reação das ruas, fazem algumas declarações críticas a Israel, mas não vão além disso.
Qual deve ser a reação da comunidade internacional a respeito do tema? O Brasil, sob a Presidência de Lula e por estar na Presidência transitória do Conselho de Segurança da ONU, poderia jogar um papel nessa disputa?
Esse tipo de conflito só pode ter algum impacto se houver reação das grandes potências. Durante a Guerra Fria, ele estava pautado pela aliança dos países árabes com a União Soviética e de Israel com os Estados Unidos. Isso terminou até mesmo antes do fim da Guerra Fria. Já na Guerra do Líbano (1975-1990), a União Soviética foi se afastando do conflito.
Hoje, Israel tem um ótimo relacionamento com a Rússia, China e sobretudo com a Índia, os países do Brics. Então, os países árabes não vão agir, nenhuma grande potência vai tomar alguma providência, como já não vem tomando, e o cerco à Palestina vai acontecer.
Do Conselho de Segurança da ONU não virá qualquer decisão favorável à Palestina, porque receberia o veto dos Estados Unidos, e mesmo os outros membros permanentes, como Inglaterra, França Rússia e China, tomariam algum tipo de medida mais contundente.
O Brasil poderia fazer algo, mas mais no sentido simbólico. Tem uma grande liderança (Lula), que poderia ter um papel importante nesse cenário, mas que está com um discurso defasado. O governo brasileiro continua achando que falar em dois Estados é algo concreto, que é algo viável, e essa ideia já acabou. Ainda que se quisesse retomar essa proposta, seria impossível torná-la real. Vários pensadores e analistas, mesmo nos Estados Unidos, já estão dizendo isso. Os colonos que ocuparam as terras palestinas nunca vão sair.
Então, o Brasil precisa se adequar, e eu diria que uma ação que o país poderia tomar neste momento, independente do que possa fazer através do Conselho de Segurança, é a de validar dois relatórios que foram produzidos há cerca de dois anos, um da Human Rights Watch e outro da Anistia Internacional. São dois organismos reconhecidos internacionalmente e que publicaram informes mostrando que existe um apartheid na Palestina.
Acho que esse é o ponto principal, porque isso pode fortalecer a causa do movimento de Boicote, Desinvestimentos e Sanções (BDS), que é um movimento internacional pró-Palestina que prega o boicote ao Estado de Israel em questões culturais, econômicas e científicas, acabando com o investimento a empresas e empreendimentos de Israel devido ao apartheid. A analogia é com a África do Sul, onde o fim do apartheid foi fruto do mesmo processo. Acredito que esse é o único recurso que resta aos palestinos neste momento.