“Meu marido saiu de casa numa manhã, em Buenos Aires, e nunca mais voltou”, contou Cristina Mihura a Opera Mundi. Bernardo Arnone é o esposo que foi uma das vítimas da Operação Condor. Seu algoz é Antônio Mato Narbondo, de 81 anos, ex-coronel do exército uruguaio condenado pelo tribunal de Roma à prisão perpétua por ter participado do assassinato e desaparecimento de quatro cidadãos italianos, ocorridos nas décadas de 1970 e 1980.
Após 48 anos lutando por justiça, Mihura agora conta os dias e espera ansiosa pela decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiro para que o assassino de seu marido tenha a pena executada no território brasileiro.
Isso por que o STJ está analisando o pedido da Justiça italiana para que o Brasil execute a pena de Narbondo. Visto que o ex-militar também tem cidadania brasileira, ele segue protegido pela Constituição que veda a extradição de cidadãos brasileiros.
O caso, porém, está parado desde 5 de maio. O último despacho é de 24 de abril, quando a ministra relatora Laurita Vaz remeteu os autos com vista para parecer do Ministério Público Federal (MPF), pois a defesa de Narbondo apresentou contestação no começo de abril.
“A Justiça brasileira deveria levar em conta que já passou quase meio século desde que Bernardo desapareceu, e ainda estou lutando para obter a justiça. Esses atrasos são incompreensíveis e desmerecidos. Quando o caso foi para o Brasil, eu realmente apreciei a decisão tomada pela ministra presidente do STJ, Maria Thereza de Assis Moura, que acolheu o pedido italiano para ser analisado. Achei que a decisão seria mais rápida, mas está tudo parado e não temos notícia do andamento do caso”, disse Mihura a Opera Mundi.
Cristina Mihura e Bernardo Arnone em julho de 1974, no Uruguai / Arquivo pessoal
Segundo o órgão, a solicitação da ministra Vaz foi encaminhada à Assessoria Jurídica de Processos Oriundos de Estados Estrangeiros da Procuradoria Geral da República (PGR). O assunto está sob análise e não há prazo para o encaminhamento do parecer, nem é possível adiantar seu conteúdo.
Opera Mundi antecipou com exclusividade que o pedido de execução de pena foi assinado pelo ministro da Justiça italiana, Carlo Nordio, e enviado ao governo brasileiro ainda em dezembro de 2022. Na data, o advogado de Narbondo, Julio Martin Favero, disse à reportagem não “acreditar” que a Justiça brasileira colocaria o ex-coronel na prisão, pois, segundo ele, “o crime já prescreveu no país”.
Atualmente o ex-coronel mora em Santana do Livramento, cidade de fronteira com o Uruguai, de onde fugiu após ter sido convocado para depor em um processo no qual é investigado pela morte de um operário em 1972. Narbondo adquiriu, em 2003, a nacionalidade brasileira herdada da mãe, a gaúcha Argelia Narbondo Diaz.
Gustavo Lima/STJ
Pedido da Justiça italiana para que Narbondo cumpra pena no Brasil está em processo de decisão no Supremo Tribunal de Justiça (STJ)
A viúva de Bernardo Arnone é uma histórica ativista de familiares de vítimas italianas da Operação Condor que, junto com outros parentes de desaparecidos, apresentou a queixa inicial em junho de 1999. Um ano antes, em 1998, o procurador Giancarlo Capaldo havia aberto outra investigação para as vítimas do país europeu da ditadura do chileno Augusto Pinochet. Sucessivamente os dois casos foram reunidos, mantendo as especificidades das duas seções distintas de responsabilidade.
Por conta do tempo do processo, alguns parentes que buscam verdade, justiça e memória, além de reparação histórica, faleceram e não chegaram a ver as sentenças de condenação. Os que seguem vivos, apesar da sentença, continuam aguardando que os assassinos paguem pelos crimes.
É o caso de Mihura. Ela disse que espera poder colocar a “palavra fim no caso”. Para isso, segundo a ativista, são necessárias duas coisas: “que Narbondo cumpra a sua pena e que me diga onde está o corpo do meu marido. Só assim terei paz”.
As vítimas de Narbondo
Conhecido como “el Burro” no Uruguai, pela forma brutal em que conduzia seus interrogatórios, o coronel é um dos 14 torturadores (onze uruguaios e três chilenos) condenados pelo tribunal de Roma à prisão perpétua no processo que julgou os crimes contra cidadãos italianos ocorridos durante o período da Operação condor.
A Condor foi uma rede de perseguição, tortura e assassinato de opositores políticos implementada pelas ditaduras do Cone Sul. As vítimas de Narbondo, além de Bernardo Arnone, são Gerardo Gatti, Juan Pablo Recagno Ibarburu e María Emilia Islas Gatti de Zaffaroni.
Os quatro faziam parte de um grupo de 27 uruguaios que militavam no Partido por la Victoria del Pueblo (PVP) e foram sequestrados em Buenos Aires entre o final de setembro e início de outubro de 1976. Assim como Bernardo, os corpos de Gatti, Ibarburu e Zaffaroni nunca foram encontrados.
Uma das vítimas do ex-coronel Narbondo foi Bernardo Arnone / Arquivo pessoal
Narbondo foi reconhecido por ex-presos políticos como um dos algozes que torturavam durante os interrogatórios, mas também por um ex-militar uruguaio que testemunhou que ele integrou parte do Departamento 3, um órgão ligado ao Serviço de Informação de Defesa (SID), do Uruguai. O órgão em questão operava com as inteligências dos países onde atuava a Operação Condor, no Cone Sul.
Em agosto de 2021, após anos de silêncio, Narbondo falou com o jornal gaúcho Matinal e disse que era militar e cumpria ordens. “Vivíamos em uma época de guerrilhas nos países. Os Tupamaros no Uruguai, VAR Palmares no Brasil, o mesmo na Argentina, Chile. Então tudo o que eu disser em minha defesa, como militar, não vai adiantar. Foi um período, e aquilo tudo ficou no passado”, disse.