Marco Aurélio Garcia é um poliglota. Fala um espanhol perfeito, um francês que impressiona pela ausência de sotaque e também pretende dominar o javanês. Pelo menos é o que acredita o jornalista Carlos Brickmann, que em janeiro dedicou um artigo feroz ao assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para as questões internacionais (“O assessor que sabia javanês”, Folha de São Paulo, 8/01/09). Brickmann reagia a uma declaração de Marco Aurélio em entrevista ao diário Valor, em relação à invasão de Gaza pelo Exército israelense, que deixou cerca de 1.400 mortos, centenas deles mulheres e crianças. Sublinhando que Israel violava os princípios básicos do direito internacional, Garcia concluiu, de maneira pouco diplomática: “Isso é terrorismo de Estado”.
Criticar Israel é como pisar num campo minado em qualquer lugar do mundo, mas não é a primeira vez que o pacato professor gaúcho provoca uma reação raivosa – seja pela postura “conciliadora” em relação aos vizinhos latino-americanos, seja pela posição política “esquerdista” demais para o cargo de diplomata informal que exerce (Brickmann chegou a cunhar a improvável combinação trotskista-stalinista).
A fúria da mídia chegou ao paroxismo em julho de 2007, na famosa cena do “top, top, top”, quando foi execrado por comemorar com um gesto “obsceno” (ainda que banal e corriqueiro) a notícia de que o governo não era responsável pelo acidente do avião da TAM que matara 199 pessoas em São Paulo. A imagem, flagrada por uma câmera postada na frente da sua sala no Palácio do Planalto, circulou o Brasil inteiro. Só no Youtube, foi baixada umas 45 mil vezes. Pouco depois, o assessor ganhou uma comunidade no Orkut (“Eu odeio Marco Aurélio Garcia”, hoje dissolvida).
Veja as imagens do “top, top, top”
Marco Aurélio Garcia não esperava tanto. Ele sempre gostou de reconhecimento, mas não a qualquer preço. Na política desde garoto, começou a carreira como vice-presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) e militante do Partido Comunista, “a única opção de esquerda em Porto Alegre” na época, conta. Desse início dos anos 60, ele guarda a lembrança de uma polarização muito grande e de “um extraordinário debate de idéias”. Para seu grupo, Luís Carlos Prestes era uma figura respeitada, mas já do passado. Os jovens eram mais inspirados pelo que se passava em Cuba, onde um punhado de guerrilheiros barbudos conseguira derrubar a ditadura de Batista.
“No início, a gente desconfiava um pouco da Revolução Cubana, parecia um modelo muito heterodoxo. As coisas mudaram com o golpe de Estado no Brasil: começamos a olhar para o Partido Comunista de maneira muito mais crítica e a acreditar na luta armada”, lembra Marco Aurélio Garcia, bebericando um Pinot Noir argentino num restaurante de Brasília. Um ano em Paris – onde a mulher e parceira intelectual Elisabeth Souza Lobo queria estudar sociologia da literatura – confirmou a sensação de que o mundo inteiro estava prestes a passar por uma revolução.
Sem tempo a perder
Era 1968 e a Sorbonne estava em chamas. “Eu queria escrever uma tese sobre a sociologia do marxismo no Brasil, que acabei não fazendo. Decidimos que não podíamos perder mais tempo na Europa, era urgente participar deste processo”, lembra. Em Paris, não dava para entender o alcance do Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968, decreto mais duro do regime militar. Quando o casal chegou a Porto Alegre, em janeiro de 1969, a universidade tinha lhe retirado a oferta de um posto de professor. O jovem historiador tornou-se, assim, jornalista no diário gaúcho Zero Hora. “Foi legal. Aprendi a escrever rapidamente, com mais objetividade, e perdi minhas ilusões: no final das contas, o que você escreve hoje é usado para embrulhar o peixe na feira do dia seguinte”, conta, rindo.
O panorama das esquerdas no Brasil não era muito animador. Depois do golpe, as forças progressistas se dispersaram, tornando-se alvos fáceis para a repressão. Para resistir, a luta armada parecia o único caminho. “Nossa visão da realidade latino-americana estava errada, a gente acreditava mesmo que o exemplo do Vietnã ia se espalhar pelo mundo”, admite. O militante que ganhou o apelido de “Professor” não enganou a si mesmo. “Tinha uma consciência aguda de minha incapacidade militar. Uma vez, em Cuba, nos anos 70, até acreditei que podia virar um quadro revolucionário militar. Uns companheiros me levaram para um treinamento e concluí: não vai dar”.
É muito mais um homem de palavras que de luta, e recusa qualquer qualificação ideológica definitiva. “Eu nunca fui trotskista, apesar do que todo mundo acha, inclusive o Lula. Eles veem como prova o nome do meu filho, Leon, mas não tem nada a ver com Trotsky, é só um nome bonito”, insiste, sem convencer. Marco Aurélio apenas reconhece ter sido influenciado pelo pensamento trotskista, que o ajudava a “escapar dos esquemas tradicionais”, e ter mantido “boas relações com os quadros da LCR [Liga Comunista Revolucionária, da França]”.
No Uruguai, sentindo-se um desertor
A pressão dos militares incentivou o casal Garcia a deixar o Brasil mais uma vez. “Naquele momento, me senti um desertor, alguém que fugia de uma obrigação moral muito forte. Retrospectivamente, fizemos bem”. Marco Aurélio e Elisabeth vão para Montevidéu, de onde fogem depois de alguns meses, no dia da queda dos tupamaros. “Eu vivi o filme 'Estado de Sítio', do Costa-Gavras, ao vivo”.
Destino: Santiago do Chile, sacudida pela recente eleição de Salvador Allende. “O Chile era uma democracia e a chegada ao poder da Unidade Popular foi uma experiência única. Para mim, era também a possibilidade de dar aula numa universidade, que era meu sonho”.
Marco Aurélio acrescenta, com sorriso melancólico: “Toda minha vida, fiquei dividido entre a militância política e a vontade de fazer carreira universitária. Talvez por isso, acabei não sendo nem um bom político, nem um bom intelectual”. Breve silêncio. Marco Aurélio não gosta da própria avaliação e corrige: “A divisão teve sua riqueza: o trabalho intelectual pode ser útil para o militante, e vice-versa. Acho a esfera acadêmica excessivamente dominada por uma perspectiva cética. O ceticismo é importante, mas ter algumas certezas pode ajudar a escolher o bom caminho intelectual”.
O economista chileno Roberto Pizarro, que o conheceu na academia em Santiago, confirma que esta era a característica de todo o grupo de brasileiros (integrado também por Ruy Mauro e Emir Sader). “Eles ensinaram a toda uma geração que a teoria era cinza diante da vida, e que a firmeza das convicções era mais satisfatória que o usufruto do poder, ou a subordinação sem crítica ao poder”, diz Pizarro ao Opera Mundi, por telefone, de Santiago.
Trinta e cinco anos depois do primeiro encontro, o chileno revela profunda admiração pelo companheiro brasileiro: “Marco Aurélio foi conseqüente com as aulas que dava: lutou contra as ditaduras no Brasil e no Chile, e perseverou incansavelmente para que Lula chegasse à Presidência da República”.
Mas no trágico 11 de setembro 1973 em que Allende foi assassinado, o jovem professor do Departamento de Ciências Sociais não sabia ainda nada do metalúrgico de São Bernardo do Campo. Membro do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria), um dos principais grupos da esquerda chilena da época, ele assistiu, impotente, à derrubada do governo socialista e da Unidade Popular.
“O MIR pretendia ser uma estrutura político-militar, mas nunca se preparou militarmente para o que iria acontecer, para o que qualquer observador podia prever: um golpe de Estado. Este episódio trágico me fascina, li dezenas de livros sobre o tema”, conta. Marco Aurélio estava na linha de frente para testemunhar o despreparo do partido: “No dia do golpe, estávamos uns 40 reclusos na universidade, com algumas armas ridículas, esperando o levante popular que, obviamente, nunca aconteceu”.
No Chile, barba raspada e passaporte falso
Após ficarem presos por algumas horas, os brasileiros conseguiram se refugiar na Embaixada do Panamá, antes de se espalhar entre a Argentina, ainda democrática, o México e a Europa. Marco Aurélio e Elisabeth escolheram Paris, onde acabaram ficando de 1974 a 1979, dando aulas na universidade. Na época, a capital francesa era uma verdadeira encruzilhada de latino-americanos.
O MIR encarregou Marco Aurélio de organizar a militância na Europa. Munido de um passaporte de refugiado, podia circular à vontade para organizar reuniões e juntar dinheiro para a resistência. Mas as missões podiam ser bem mais complicadas. Certa vez, o comando do partido pediu para ele levar para os companheiros clandestinos no Chile 110 mil dólares, uma fortuna para a época.
”Sabia que era muito perigoso. Todos os que tentaram cumprir esta tarefa antes acabaram mortos em alguma parte do Chile”, diz. Marco Aurélio não tinha disposição para o heroísmo, mas acabou topando. “Uma vez mais, senti o peso daquela obrigação moral e política”.
Raspou a barba para passar despercebido no Chile e organizou uma viagem complicada, usando o passaporte de um militante francês de Marselha. “Achava que era mais fácil imitar o sotaque de um marselhês que de um parisiense”, diz, carregando nos erres, em francês, para explicar melhor. Deu certo. Mas nem este dinheiro nem o sacrifício de dezenas de militantes foram suficientes para derrubar o ditador Augusto Pinochet. “Os problemas do MIR nos ajudaram a compreender a necessidade de pensar um partido de outra maneira, e a importância da autonomia dos movimentos sociais”, conclui.
Leia mais sobre o AI-5, a queda de Allende, o MIR e o filme “Estado de Sítio”.
Leia os demais trechos do perfil:
Parte 2: PT achou que o poder fosse um “proverbial palácio de inverno”
Parte 3: Sabe tudo de América Latina, mas é moderado, diz assessor de Chávez
Parte 4: “Dilma é a minha candidata”
O texto na íntegra
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