O trem de Viena a Frättingsdorf balança suavemente pelos trilhos, embala o sono dos passageiros. Na manhã fria de abril, com resquícios de um inverno que passou dos limites, o aquecimento do vagão gera um torpor irresistível. Pela ampla janela, as fazendas e seus casarões de pedra se multiplicam a perder de vista. A viagem, nessa sensação de câmera lenta, dura cerca de uma hora.
Pontualmente às 9h42, Horst von Wächter estaciona seu carro em frente à estação. O castelo onde mora, na vila de Haggenberg, fica a quatro quilômetros dali, no silêncio profundo do interior da Áustria. Sem descer, ele abre a porta do passageiro e recebe a reportagem de Opera Mundi com uma pergunta incisiva: “Então você quer saber mais sobre meu pai? Por quê?”
A desconfiança é inevitável. Horst von Wächter, 74 anos, é o quarto dos seis filhos de Otto Wächter, comandante austríaco da SS nazista, o alto escalão paramilitar de Adolf Hitler. Seu pai foi governador do distrito da Cracóvia, na Polônia, e da Galícia, hoje noroeste da Ucrânia, durante a invasão alemã na Segunda Guerra Mundial. É um dos responsáveis diretos pela construção do gueto de Cracóvia e ratificou o uso de câmaras de gás para matar judeus. Fugitivo, não foi julgado no Tribunal de Nuremberg, apesar de ter sido citado diversas vezes.
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Apesar do papel determinante na Segunda Guerra, há pouco ou nada sobre Otto Wächter no Arquivo Nacional da Áustria e nas pastas do Centro de Documentação de Berlim, que concentra milhões de papéis sobre o nazismo. O homem que tentou caçá-lo após a guerra, Simon Wiesenthal, considerava-o “o mais odiado entre todos os nazistas fugitivos”, mas conseguiu compilar uma única pasta apenas, hoje parte de seu arquivo, em Viena.
Diante de tão pouco às claras, Horst dispôs-se a falar abertamente sobre o pai. Sua recente abertura para tratar do tema – ele passou a estudar a história da família há poucos anos – é fato raríssimo entre filhos de nazistas proeminentes. Seu esforço, afirma, é por fazer “justiça” ao pai, “corrigir” erros em sua biografia e relativizar os crimes que ele cometeu, separando a ação da SS, responsável pelo Holocausto, da administração civil do território invadido.
À vontade em seu quarto, no Castelo Hagenberg, Horst revelou, em entrevista exclusiva, fatos inéditos da vida de seu pai, dado como morto em condições suspeitas em 1949 (leia aqui o perfil de Otto Wächter). Assim como outros nazistas do alto escalão, do porte de Adolf Eichmann, Franz Stangl e Josef Mengele, Wächter estudou uma fuga para a América do Sul e considerava o Brasil sua melhor opção.
A entrevista tem duas partes. Na primeira, cuja íntegra está abaixo, Horst fala sobre a carreira política de seu pai, definida pela adesão ao NSDAP (o partido nazista alemão) em 1923 e a participação direta no Putsch (golpe de Estado) na Áustria, em 1934. A segunda parte, que será publicada amanhã, trata de aspectos pessoais da vida do general da SS até ser dado como morto em Roma, escondido e sob identidade falsa, supostamente nos braços do bispo Alois Hudal, notório por acobertar e facilitar a fuga de nazistas.
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Opera Mundi: O sr. disse querer “corrigir” a história de seu pai. O sr. poderia dizer o que isso significa e o que exatamente gostaria de corrigir?
Hosrt Wächter: Eu quero fazer justiça a ele. Eu quero deixar claro quem ele era, qual seu caráter e o porquê de suas ações. É para que as coisas sejam compreendidas, sabe? Esse quadro é de meu avô [aponta para um retrato de Josef Freiherr von Wächter, pai de Otto Wächter, sobre a cabeceira de sua cama], que foi um oficial bastante condecorado na Primeira Guerra Mundial, e também foi ministro da Defesa [da Áustria]. Ele foi um dos 30 oficiais mais condecorados da guerra. Essas pessoas queriam fazer o bem às outras. Eles não são o que todo mundo diz hoje do Terceiro Reich, que todos na SS eram criminosos [a SS foi banida da Alemanha em 1945 e classificada como organização criminosa no Tribunal de Nuremberg], o que não pode ser verdade. Sempre há gente que quer fazer o melhor, apenas fazer seu trabalho.
Seu pai foi membro do Partido Nazista desde o início.
Sim, ele foi primeiro da SA [o primeiro exército paramilitar de Hitler, em 1923]. Mas o evento mais importante da vida de meu pai foi a Primeira Guerra Mundial. Sua família era da Boêmia, onde havia uma forte oposição nacionalista entre os alemães e os checos. Ele terminou a escola em Budweis, no sul da Boêmia, onde havia um ginásio alemão, e entrou nesse conflito quando ainda era jovem. Ele estava tentando fazer algo e resolver os problemas. Então ele, claro, entrou no movimento nacionalista desde o início. Foi através do esporte. Meu pai era um esportista, foi campeão austríaco de remo na década de 1920. Ele não veio da universidade. Muitos surgiram desse lado [acadêmico], mas ele veio da área esportiva.
O senhor tem detalhes sobre o que aconteceu a ele no período? Sobre suas visões políticas ou participação política?
Havia um clube esportivo alemão – e tudo era para ser alemão. Nem tanto austríaco, mas tudo estava baseado no “ser alemão”. De fato, a Áustria foi forçada à independência após a Primeira Guerra, porque na verdade todos queriam se juntar à Alemanha. Esse era o grande sonho: a reunificação com a Alemanha. Por isso ele viu com bons olhos a Anschluss [anexação da Áustria, em 1938], porque era isso o que pessoas sonhavam. Elas queriam fazer parte da “grande nacionalidade alemã”, e isso aconteceu. Mas havia as ideias de Hitler sobre – especialmente – os povos eslavos, os tchecos, a quem ele tratava como Untermensch [subespécie]. Eles não estavam “à altura” dos alemães e essa foi a razão pela qual a guerra deu errado. Tenho certeza que a União Soviética teria caído 50 anos antes se os alemães tivessem compreendido a situação e buscado a independência de Ucrânia e das outras nações orientais. É o que elas esperavam, a liberação do regime comunista. Meu pai sempre defendeu que era preciso respeitar as pessoas e nunca tratá-las como animais.
Seu avô e seu pai seguiram carreira na advocacia.
Sim, meu avô tornou-se ministro da Defesa [da Áustria] em 1921 – desde 1890 ele era do partido Großdeutsche [Volkspartei, extinto partido nacionalista austríaco]. Foi quando eles se mudaram para Viena e ele se tornou advogado. E, claro, com sua ligação ao nacionalismo, ele começou a defender nazistas nos tribunais. Meu pai também, ele era diplomado e se tornou aquilo que se classificava como “advogado independente” [entre 1932-1934]. Em Viena ele conheceu um grupo de pessoas que trabalhava para forçar a Áustria a se tornar parte da Alemanha. [Ele foi mais tarde advogado do partido nazista e da SS.]
Seu pai foi governador geral da Cracóvia. O que há para ser “corrigido” na versão corrente da história da administração dele?
Hoje as pessoas não fazem mais distinções entre o governo civil e a SS. Dizem que o governo civil foi responsável por tudo o que aconteceu lá pelas mãos da SS. Isso é um grande mal-entendido. Ele viviam em disputas internas. É preciso esclarecer que existia esse dualismo, proposto e assinado por Hitler. Quando ele estabeleceu a base legal para a instituição do governo geral, ele disse que havia o governo civil e a polícia, que por sua vez não estava subordinada ao governo. Ela era independente. Por isso, havia disputas internas praticamente todos os dias. E também por isso meu pai tem essa má reputação de criminoso. Ele morreu em julho de 1949. A data de sua morte está sempre colocada errada. Em setembro de 1949 uma jornalista em Roma descobriu sobre sua morte. Os jornais, com grandes manchetes, colocaram-no como o “assassino de [Engelbert] Dollfuß [chanceler da Áustria assassinado na tentativa de golpe de 1934]”. Depois veio uma sequência de três dias de manchetes em jornais vienenses. Isso criou sua má reputação e por isso ele sempre foi tratado como criminoso.
Mas seu pai também é reponsável pela decisão de usar câmaras de gás para matar judeus. Como o senhor vê isso?
A principal reputação de meu pai está relacionada diretamente com Simon Wiesenthal. Porque Wiesenthal escreveu que viu meu pai no dia 15 de agosto de 1942 em Lemberg, quando ele e sua mãe foram colocados no trem. Ele escreveu também [no livro Os Assassinos entre Nós] que meu pai mandou 800 mil judeus para a câmara de gás e que era o homem que ele mais odiava entre todos os nazistas. Mas eu consigo provar que nesta data ele não estava em Lemberg. Tenho uma carta que ele escreveu para minha mãe no dia 15, em que ele estava em uma assembleia partidária na Cracóvia. Ele não estava em Lemberg. Simon Wiesenthal confundiu-o com Fritz Katzmann, que era o chefe da SS em Lemberg. Ele o confundiu porque meu pai costumava usar o uniforme da SS, porque com esse uniforme ele teria mais autoridade. Isso também é mencionado no diário de [Hans] Frank [governador geral dos territórios invadidos]. Ou seja, ele está completamente equivocado. O problema é que Simon Wiesenthal disse isso e é muito difícil contradizê-lo.
Roberto Almeida/Opera Mundi
Dentro do castelo, Horst mantém imagens não só do pai, mas também do avô
Onde o senhor estava e o que sentiu ao saber do que Wiesenthal afirmava?
Eu não me ocupava disso. Eu achava que precisava ficar mais velho. Mas sempre tive uma sensação ruim sobre Simon Wiesenthal. Tenho 800 cartas trocadas entre meus pais, e cartas bastante importantes. O que quero provar que ele era totalmente contra a SS. Ele era contra, apesar de usar o uniforme da SS.
Então ele tinha inimigos na SS?
Havia um superior chamado [Friedrich-Wilhelm] Krüger na Cracóvia, o chefe [da SS] em todo o governo geral, que tentou eliminar meu pai.
Politicamente ou fisicamente?
Ele queria mandar meu pai para Waffen SS [tropa de elite de Hitler], que era como um esquadrão suicida, dado o número de mortes. Se ele tivesse entrado para a Waffen SS, certamente teria morrido. Depois disso, meu pai foi o responsável por montar divisões de ucranianos, e depois de Stalingrado [a batalha durou de agosto de 1942 a fevereiro de 1943] eles mudaram… meu pai também foi um grande amigo de [Andrey Andreyevich] Vlasov, sabe? Ele foi um dos mais fortes generais de Stálin que depois tentou montar seu próprio exército russo para lutar contra o próprio Stálin. Os alemães o aprisionaram, por cerca de 2 anos, até que [Heinrich] Himmler [comandante da SS] entendeu que eles queriam lutar contra os comunistas e poderiam ajudar os alemães. Então, claro, meu pai ficou cada vez mais importante, porque tinha conexões com grupos eslavos. Até que se tornou chefe das divisões eslavas na Reichssicherheitshauptamt [o serviço de inteligência nazista] em Berlim. Ele teria de supervisionar todos os exércitos que lutavam pelos alemães.
Qual era o objetivo principal dele nesse cargo?
Era construir exércitos contra Stálin. Era a ideia dele, bastante simples. Começou em 1943. Himmler estava bastante cético, mas então perceberam que havia muitos voluntários. Como meu pai estava no governo civil, que não tinha nada a ver com o exército, ele buscou uma solução política. Se ele conseguisse convencer essas pessoas a lutar contra o bolchevismo, eles teriam ganhado a guerra. Em maio de 1945, ele deixou Berlim e se juntou a essa divisão ucraniana na Áustria. Essa divisão foi a única que não foi entregue a Stálin pelo povo. Ele tinha conexões e também padres. Era a única divisão da SS que tinha seu próprio padre. Meu pai trabalhou diretamente com o arcebispo de Lemberg, que era uma personalidade venerada.
Seu pai era partidário de uma ligação próxima com a Igreja Católica.
Sim, sem dúvida. Por isso ele conseguiu que essa divisão não sucumbisse ao tratado de Yalta [em 1945], que ordenava que todos os soldados deveriam ser entregues a Stálin. Em Yalta, Stálin disse que queria a divisão do meu pai, já que ele a considerava a mais perigosa, com poloneses e ucranianos. Os ucranianos sempre quiseram ser independentes da Rússia, o que acabou acontecendo.
Seu pai teve uma carreira proeminente no partido nazista. Consta nos arquivos que ele era bastante expansivo, proativo e tinha presença.
Ele tinha bom humor, deixava uma boa impressão, tinha bons modos. Ele era bem-sucedido nessa figura do caráter alemão. Ele obteve sucesso em convencer as pessoas. Ele não era um fanático, um primitivo.
Ele era classificado como “inteligente”.
Mas não era um intelectual. Era um homem prático. Ele conseguiu fazer com que as pessoas trabalhassem rápido e encontrassem as melhores saídas. Ele era um funcionário do Estado muito bom. Em 1938 ele disse à minha mãe, antes de entrar no governo alemão: “Eu posso ser um bom advogado e ganhar muito dinheiro ou um bom político e tentar fazer algo para todos no país. O que faço?” Claro que minha mãe respondeu que a escolha era dele, que ele poderia fazer o que quisesse. Mas seu destino político, claro, já estava selado desde o Putsch [tentativa de golpe fracassada do partido nazista na Áustria, em 1934] e ele nunca mais poderia mudar ou deixar a vida política pela advocacia. Já me perguntaram: por que ele não largou tudo na Polônia [em virtude do Holocausto]? [Ludwig] Losacker [seu braço-direito] escreveu que eles se sentiam responsáveis pelas pessoas lá. E se deixassem o governo, a SS ficaria mais forte.
Como ele tratava as minorias? Que informações o sr. tem a respeito disso?
Tenho uma carta de Lemberg, onde ele tinha uma casa grande, com empregados. Havia uma cozinheira que era uma nazista fanática e xingava os funcionários poloneses. Eles avisaram que não trabalhariam mais por causa dela. Meu pai tentou explicar a ela que não pode tratar as pessoas assim e que deveria mostrar superioridade no trabalho, no comportamento e na qualidade do tratamento que oferecia aos outros.
Mas ele tomou alguma medida em defesa dessas pessoas como governador?
Ele tomou medidas restritivas em Cracóvia contra os judeus, para construir o gueto [em março de 1941]. Isso leva sua assinatura. Ninguém sabia como encontrar uma solução. Ninguém sabia como as coisas estavam se desenvolvendo. Meu pai sempre achou que poderia encontrar Hitler e convencê-lo de mudar suas políticas.
O senhor se refere à Solução Final [extermínio de todos os judeus].
Sim, com relação a judeus, poloneses e a todos os povos eslavos. Só depois ele soube que não poderia fazer nada. Mas sempre disse: “Se eu pudesse ir a Hitler e explicar que isso está errado. Que isso nos trará ainda mais inimigos. Que devemos tratar esses povos como seres humanos.” Ele tinha certeza que poderia convencer Hitler, mas nunca foi recebido.
Eles nunca se encontraram?
Encontraram-se apenas durante a Anexação da Áustria [em 1938]. Durante a guerra, não. Nem no bunker, nem no quartel-general.
Como o senhor vê hoje a carreira do seu pai?
Acho que ele não tinha escolha. Ele nasceu nesse tempo de ideias nacionalistas, confusão, fanatismo. Ele, como um homem que queria fazer algo positivo, mudar as pessoas, resolver coisas, automaticamente estava fadado a dar esses passos que deu. Ele obteve sucesso porque seus grandes inimigos no governo, como Krüger e Katzmann, foram enviados para outras regiões em 1943. Ele obteve sucesso, mas claro que a coisa toda não tinha futuro. Estava tudo fadado a desmoronar. A ideia de nacionalismo e de superioridade racial é nonsense.
Como era a relação de seu pai com Heinrich Himmler, chefe da SS?
Himmler ficou bastante bem impressionado com ele, com seu comportamento e como ele se apresentava. Com seu caráter. Himmler era um burocrata, um tipo Schreibtisch (escrivaninha, em alemão). Ele ficou impressionado com meu pai. Foi Himmler quem o deu o posto na SS. Himmler distribuía esses postos como presentes, para tornar a pessoa dependente dele. Ele dava presentes ao meu pai, a todos os filhos que ele teve – o objetivo era ter o maior número possível de filhos -, uma medalha. Por outro lado, meu pai não aceitava as políticas de Himmler e da SS, mas ele só conseguiu construir a divisão na Ucrânia por ter esse contato direto.
Ele era um protegido de Himmler.
Sim. Quando os russos conquistaram a Galícia e Krüger ordenou que meu pai entrasse no exército, Himmler disse: “Não, o Dr. Wächter será enviado à Itália.” Isso porque ele foi criado em escolas italianas, em Trieste, e falava o idioma muito bem. Ele faria parte do governo militar a partir de agosto de 1945.