Em quatro dias repletos de encontros oficiais, primeiro na Itália e, a partir de quinta (22/06), na França, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu com líderes de vários países, quando tratou de temas da área ambiental, sobre o acordo comercial entre União Europeia e Mercosul e reiterou o posicionamento do Brasil em relação à guerra na Ucrânia.
Em entrevista ao Portal Vermelho, a analista internacional Ana Prestes considerou a agenda muito positiva pelos recados que Lula deixou para os países ricos, antecipando o tom do Brasil na reunião do G20, em novembro, no Rio e Janeiro. Desde os encontros com o Papa Francisco, no Vaticano, passando por reuniões com o presidente da Itália, Sérgio Mattarella, e a ousada agenda com a primeira-ministra de extrema-direita Georgia Meloni, a socióloga considera que Lula foi passando seu recado.
O fato de se reunir com a premiê italiana mostra que o Lula é um estadista respeitado por todas as forças políticas, mesmo as mais extremistas, na opinião de Ana. “Não é como o Bolsonaro que só conversava com os poucos amigos que tinha na extrema-direita internacional”, comparou. Há mais de seis anos o Brasil não tinha relação com o país, o que ele qualificou de “inexplicável”.
Mas foi na França — país-chave para desbloquear o processo de implementação do acordo de livre comércio entre Europa e Mercosul —, que o chefe de Estado brasileiro fez articulações políticas, deu um recado histórico em nome do Sul Global, e reiterou o posicionamento do Brasil em relação à guerra na Ucrânia.
Lula participou de uma cúpula sobre um novo pacto financeiro global para lutar contra as mudanças climáticas e a pobreza. A cúpula, uma iniciativa do presidente francês, Emmanuel Macron, teve como um dos temas centrais a reforma de instituições internacionais como o FMI e o Banco Mundial, e favoreceu o encontro caloroso de Lula com estadistas africanos, entre outros.
Mas a maior vitrine de Lula na área ambiental nessa semana europeia foi provavelmente seu discurso no show “Power of Planet” nos jardins da Torre Eiffel para milhares de jovens. Para a analista, seu discurso foi histórico e vai reverberar por muito tempo.
O evento da ONG Global Citizens tem como curador artístico o vocalista da banda Coldplay, Chris Martin, que apoia esse movimento que mobiliza cidadãos de todo o mundo em relação a temas como fim da pobreza extrema e preservação do planeta.
“Na verdade, quem poluiu o planeta nestes últimos 200 anos foram aqueles que fizeram a revolução industrial e, por isso, têm que pagar a dívida histórica que têm com o planeta Terra. Não foi o povo africano que poluiu o mundo. Não foi o povo latino-americano que poluiu o mundo”, disse, sob aplausos da multidão de jovens, em frente a Torre Eiffel. Sua fala é uma resposta as cobranças ambientais desmedidas que a Europa faz ao Sul Global, após terem destruído todas as suas florestas para se industrializar.
Ali, segundo Ana, ele se comportou como um porta voz do Sul Global, os países que foram colonizados pela Europa. “Ele demarcou o campo das responsabilidades e dos compromissos que devem ser assumidos. Foi um recado, porque os europeus estão querendo elevar mais os compromissos no acordo UE-Mercosul com as questões ambientais. O que Lula diz é que não dá pra passar uma mesma régua para todos. Tem diferenças”, afirmou.
Ana interpreta que o compromisso dos países que iniciaram a industrialização tem mais deveres, nesse momento, para garantir a transição energética e o desenvolvimento sustentável.
“É muito fácil impor sanções para os países que foram colonizados, saqueados e explorados e agora querer exigir que esses países correspondam às metas estabelecidas por quem colonizou”, destaca ela.
Sul-Global
Quando fala em Sul Global, Ana fala justamente dessa conexão entre Lula e os países africanos que estavam em Paris e veem nele uma peça muito importante do jogo internacional para vocalizar suas agendas.
“Muitas agendas ficaram interrompidas com a estagnação da OMC, a pandemia, o período Bolsonaro; todas as negociações ficaram estagnadas”, lembrou ela. “É como se o Brasil voltasse a ser um articulador e interlocutor importante das demandas desse grupo de países em desenvolvimento”.
Desde o Egito, na COP27, o Lula tem falado muito sobre a questão da fome, da soberania alimentar, sobre deslocamentos provocados por mudanças climáticas, os chamados refugiados climáticos. “Esse compromisso dos países mais ricos com estas questões, inclusive, deve continuar sendo o tom do G20, em que os temas fazem parte da construção da presidência do Brasil na conferência”, disse ela sobre a cúpula que deve fechar o ano, no Rio de Janeiro.
Governança global
“O Lula está muito militante de uma mudança no sistema de governança global, na ONU e no Conselho de Segurança. É muito difícil, porque EUA e China não vão querer deixar mexer no Conselho de Segurança num momento como este”, disse ela, contextualizando o cenário de crise econômica e guerra na Europa.
Mas ela ressalta que o Brasil pode não conseguir essa meta (entrar para o Conselho de Segurança como membro permanente), mas pode conseguir outras. Lula mira alto para conseguir coisas importantes.
“Deve ter sido frustrante para o Brasil, sim, essa reunião sobre governança global, porque as potências do Norte não vão querer mexer nisso. Não vai sair nada da França, EUA, Alemanha. O Macron puxa essa reunião, justamente, para ser o dono da pauta. Toma a dianteira com iniciativas próprias para neutralizar qualquer mudança mais profunda”, analisou a especialista.
Ana acredita que a forma como o Brasil e os Brics (grupo de países emergentes) vão impor uma mudança na arquitetura financeira global, é por meio da desdolarização, com a entrada em campo do Novo Banco de Desenvolvimento e a articulação em bloco. “Não vai ser mudando o que já existe, mas criando novas instituições e paradigmas”, avalia.
Na prática, a cúpula com o objetivo de redesenhar a arquitetura financeira mundial não correspondeu aos interesses do Brasil. ”A minha percepção é que essa reunião acaba mesmo servindo como um aquecimento para o G20”, diz ela.
Para o presidente Lula, a ONU precisa ter representatividade e força política para que medidas ambientais aprovadas em reuniões internacionais possam ser efetivamente implementadas de forma global. “Se não mudarmos essas instituições, a questão climática vira uma brincadeira”, disse Lula no encerramento da cúpula em Paris.
Ana observa que ele tem falado isso desde antes de tomar posse. Que não adianta ficar fazendo COP (Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas) sem nenhuma efetividade. “Sem mudar isso, a questão climática não passa de retórica”, ele repete. O Brasil ainda espera o cumprimento da antiga promessa dos países ricos de liberar US$ 100 bilhões por ano para os países em desenvolvimento lutarem contra as mudanças climáticas.
Flickr/Palácio do Planalto
Analista internacional Ana Prestes considerou a agenda de Lula na Europa muito positiva
Acordo Mercosul-UE
Durante a viagem, Lula criticou repetidas vezes as novas exigências na área ambiental impostas pelos europeus em relação ao acordo União Europeia. Ele critica as ameaças dos “parceiros estratégicos” em discurso diante de Macron.
Lula aproveitou para denunciar o protecionismo que os europeus não assumem, pois só defendem o livre comércio para si. Lula fala o que eles não querem ouvir e acaba gerando reações negativas em toda a imprensa europeia.
“Nós precisamos da União Europeia e a UE precisa muito de nós. É importante colocar um pouco da arrogância de lado e colocar o bom senso para negociar. Isso vale para eles e para a gente”, foi o que disse Lula, procurando inclusive os parlamentares esquerdistas que também resistem ao acordo.
“Lula desagrada porque vai na contramão. Europeus dizem que esse acordo já vai ser assinado a qualquer custo até o final do ano, e o Lula mostra que não é bem assim”, explicou.
Segundo a analista, os europeus disfarçam o protecionismo através de pautas como o meio ambiente. “Eles faziam muito isso no tempo do Bolsonaro, sob a justificativa de que ele era um destruidor do meio ambiente, fascista, etc. O Bolsonaro é isso, tudo bem, mas eles travaram, agora, muitas questões do acordo com essa desculpa de que pode surgiu um novo Bolsonaro”, critica.
Na verdade, tudo não passa do velho protecionismo agrícola francês, de acordo com Ana, que é um setor muito forte na França e inviabiliza o acordo. Falam em problemas de uso de pesticidas que são proibidos na Europa, dumping e desequilíbrios entre os direitos trabalhistas dos dois blocos.
“Eles têm medo dessa abertura e também querem fazer as concorrências públicas no Brasil. Eles querem entrar no mercado de licitações e concorrências públicas governamentais do Brasil, que são reservadas às empresas brasileiras. Esse é um grande impasse, junto com as sanções ambientais. Eu acho ótimo o Lula denunciar isso. Ele disse que, desse jeito, não vai passar acordo”.
Guerra e paz
A imprensa europeia continua enfatizando que Lula está do lado da Rússia. Como disse Ana, para eles, se não está 100% fechado com a Ucrânia, é porque está com o Putin. No entanto, a retórica de Lula tem evoluído para dizer que é preciso sentar à mesa de negociações e ouvir os dois lados. Não adianta ignorar Putin, se o objetivo for encerrar a guerra. Ambos precisam ter vantagens num acordo de Paz, e só eles podem dizer onde querem chegar.
Para Ana, apesar da tentativa de desqualificar o posicionamento de Lula sobre a guerra, a abordagem deste tema tem evoluído bem no discurso de Lula. “Nesta viagem, ele se associou ao discurso do Papa Francisco, que defende a paz”, citou.
“Acho que dessa vez ele acertou a embocadura do discurso, que estava meio errático no início. Fala que ‘a gente já votou com vocês na resolução da ONU, de fevereiro, mas agora a gente quer compromisso com o diÁlogo’”, observa ela.
Ela também ressalta como importante o modo como Lula sempre fala dos outros conflitos, da Palestina, da Síria, etc, muitos deles provocados por invasões da OTAN. ”Sempre faz essa demarcação. Ele fala que são guerras que têm tratamento diferenciado”.
“Acho que está muito bom o discurso dele”, diz. Ana acredita que fica mais claro o que ele realmente quer falar sobre a questão da Ucrânia. “Antes, parecia que o discurso jogava para um lado, num momento, outra hora para o outro”.
Lula declarou entender que os europeus que têm uma guerra à sua porta tenham uma visão diferente. “Eles estão no centro da guerra. Eu estou a 14 mil quilômetros de distância. Eles estão sofrendo a consequência mais direta do conflito”, afirmou, se referindo ao aumento dos preços da energia no continente.
A popularidade de Lula como alvo
A Europa não recebe bem nada disso. Isto está evidente a cada viagem e pronunciamento de impacto de Lula. “A imprensa europeia já virou a cara para o Lula. Tanto que, quando Olaf Scholz (chanceler da Alemanha) esteve no Brasil, a imprensa alemã bateu muito no Lula”.
Ana Prestes lembrou que a imprensa, frequentemente, acusa Lula de apoiar Vladimir Putin e de ter desprezado Zelensky no G7. “Só não estão batendo mais, porque realmente o Lula é uma figura popular também na Europa”, avalia ela. Ela menciona o fato da fala mais marcante ter sido dita num festival musical, em Paris, para uma multidão de jovens europeus.
Agora, começam a usar a agricultura brasileira, sua principal commodity comercial, para atacar o país como um atraso para o meio ambiente. Ela avalia que a capacidade de Lula de intervir positivamente no cenário internacional é um dos seus maiores capitais políticos.
“Uma das formas de atacá-lo é tentar descapitalizar isso, obviamente. Tentar mostrar falsas contradições, a meu ver, como o desencontro dele com Zelensky no G7, em Hiroshima”, citou.
“Tentam desviar o que Lula disse em Paris, como se ele, um ex-metalúrgico, não reconhecesse os benefícios da industrialização, quando não é disso que ele está falando”, explica. Ela também menciona o modo como a imprensa europeia e americana tenta explorar falsas polêmicas envolvendo Lula com o presidente venezuelano, Nicolas Maduro, ou o regime político na Nicarágua, para tentar diminuir o papel dele como líder internacional. “O Foro de São Paulo, neste final de semana, certamente será um alvo de ataques. Mais um encontro que deve reafirmar esse papel de liderança do Lula”, antecipa ela.
No entanto, as viagens só reafirmam esse tamanho dele na cena internacional. “Ele faz uma visita à Europa e faz todo mundo, até os chefes de estado, chorarem com ele, falando das demandas históricas de desigualdade do Sul Global”, conclui.