O que devia ser uma festa democrática no Irã, onde 39 milhões de pessoas (quase 85% do colégio eleitoral) participaram da eleição presidencial na última sexta-feira (12), inflamada pelo tom vigoroso dos debates que antecederam a votação, virou um cenário de protestos e violência.
A “margem de manobra” que o presidente Mahmoud Ahmadinejad queria capitalizar antes de iniciar um diálogo com os Estados Unidos ficou bem mais estreita. O candidato derrotado, Mir Hussein Mousavi, apresentou uma queixa oficial denunciando “irregularidades” e ontem (15) compareceu a uma manifestação popular, onde foi aclamado. Até a proclamação oficial dos resultados detalhados e com a presença de todas as televisões do mundo, os protestos provavelmente irão continuar.
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Em meio a toda essa turbulência, a reeleição de Ahmadinejad ficará marcada como o acontecimento que fez “implodir” o consenso dentro do sistema da Revolução Islâmica: os “reformistas”, encabeçados por Moussavi e Khatami, continuam contestando os resultados e exigem uma nova eleição. Ahmadinejad pretende iniciar o “julgamento” dos dirigentes corruptos dos últimos 30 anos.
A envergadura da vitória e a cisão liderada por Mousavi e os dois últimos presidentes da república – Rafsanjani, também presidente do importante Conselho dos Guardiães, e Khatami – mostram que estamos vendo a maior crise política do sistema desde a revisão constitucional de 1989, mas também que Ahmadinejad conseguiu mudar os parâmetros do jogo eleitoral.
Os resultados da eleição – quase dois terços dos votos foram para Ahmadinejad e um terço para Mousavi – chocaram os reformistas e observadores em vários países. Para uma parte da classe média de Teerã e de outros centros urbanos, o resultado pode parecer completamente absurdo. Mas isso não significa necessariamente que seja falso.
Da difícil arrancada durante a campanha eleitoral, a “revolução verde” de Mousavi, incentivada pelo ex-presidente Mohammed Khatami (1997-2005) e apoiada por seu antecessor Ali Rafsanjani (1989-1997), cresceu muito nos últimos dias, especialmente depois dos debates, e parecia para seus seguidores capaz de derrubar o regime de Ahmadinejad. Não conseguiu, nem de longe.
As razões são diversas. Os reformistas nunca conseguiram superar a derrota nas eleições legislativas de 2003, na metade do segundo mandato de Khatami, e a ausência no pleito presidencial seguinte de 2005, que abriu as portas para a ascensão de Ahmadinejad. A fórmula de Mousavi, a sintomática aliança anti-Ahmadinejad, mostra que os reformistas começaram a achar um rumo, mesmo que eles continuem divididos e sem estratégia coerente.
Do outro lado, a reeleição de Ahmadinejad no primeiro turno tem também sua lógica própria. Em 2005, ele foi escolhido como um ‘outsider’, que não pertencia nem à elite civil, nem à religiosa nem à empresarial, à la Fujimori (ficando em segundo lugar no primeiro turno e arrasando no segundo contra Rafsanjani) e munido de um programa de combate à corrupção, além da promessa de priorizar os pobres com o dinheiro do petróleo. A reeleição representa a junção de políticas distributivas nas regiões e nas camadas mais pobres com a ideologização dos “Passidjs” e dos “Guardiães da Revolução” (órgãos de controle social).
Como na Venezuela
O exemplo venezuelano ajuda um pouco a entender o fenômeno Ahmadinejad. Como na Venezuela, no Irã o petróleo representa grande parte das receitas do Estado (80%), o presidente é demonizado pela imprensa mundial, odiado pelas elites, é visto como “o filho do ferreiro incorruptível”, que passa boa parte do tempo visitando as áreas pobres e é adulado pelas camadas mais humildes, pelo jeito de se vestir e de falar.
Os temas que interessam à imprensa mundial não são prioritários no Irã. Na questão nuclear, a campanha eleitoral mostrou que os quatro candidatos têm uma posição comum.
A maneira de Ahmadinejad agir e falar (sobre o Holocausto, por exemplo) deixa muitos iranianos envergonhados, mas a maioria de seus partidários acha que o Irã – e seu presidente – é que são desrespeitados e não o contrário, e que a polêmica sobre o Holocausto ou o programa nuclear visam a eximir Israel de suas responsabilidades, do fato de também ter a bomba nuclear e oprimir o povo palestino.
Na realidade, os debates se concentraram sobre as questões econômicas, ponto fraco do mandato de Ahmadinejad e também dos governos reformistas. Os opositores criticaram os números “falsos” da inflação veiculados por Ahmadinejad, qualificado de “mentiroso”. Ele defendeu seus programas sociais e acusou Mousavi – e Khatami – de serem coniventes com a corrupção.
Por trás da atual crise iraniana se perfila a ambiguidade da constituição islâmica: de um lado democrática, do outro autocrática, onde se destaca a figura do “faqih” (sábio e guia supremo) forjada no carisma do aiatolá Khomeini. Antes e depois de sua morte, as contradições entre o presidente à época, Khamenei, atual aiatolá, e o primeiro-ministro, Mousavi, candidato reformista derrotado, influenciaram uma revisão constitucional.
A figura do primeiro-ministro foi abolida, as prerrogativas do presidente transferidas para o aiatolá e os privilégios do primeiro-ministro, para o presidente. As contradições continuaram fortes entre as duas instâncias, especialmente durante o mandato de Khatami, mas também com Rafsandjani e Ahmadinejad.
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