Para quem se dedica à misteriosa arte de observar Khamenei, 19 de junho tem um significado especial. Naquele dia, depois de dar o esperado ultimato ao povo do Irã, o líder supremo mostrou uma face nunca antes exibida em público: ao concluir seu sermão banhado em sangue com um voto de martírio, não pareceu valente e desafiador, e sim fraco e patético.
O aiatolá Ali Khamenei, o homem cuja figura costuma inspirar respeito e pavor em milhões de pessoas, tinha um nó na garganta. Conteve as lágrimas diante das dezenas de milhões de espectadores perplexos. Sabia que, em menos de três semanas, um sistema que ele ajudara a construir, o governo exercido por um líder religioso supremo, dava sinais de profundo abalo.
A pressão aumentava em meio a acusações de que Khamenei e a cúpula da Guarda Revolucionária, trabalhando com o presidente Mahmoud Ahmadinejad, haviam perpetrado uma vasta fraude eleitoral destinada a derrotar o candidato reformista Mir-Hossein Moussavi e, ao mesmo tempo, expurgar elementos recalcitrantes do governo, a começar pela facção liderada por Hashemi Rafsanjani, antiga pedra no sapato de Khamenei.
Aparentemente confiantes no sucesso, os supostos conspiradores não previram o enorme movimento popular que abraçaria a causa de Moussavi. Em 15 de junho, cerca de 800.000 pessoas marcharam pacificamente pelas ruas do centro de Teerã. O número seguiu aumentando por dois dias, até que Khamenei pôs fim à breve Primavera de Teerã com seu ultimato e uma maciça demonstração de força.
Nas últimas semanas, milhões de iranianos votaram com os pés, marcharam pacificamente, experimentaram a catarse coletiva, travaram intensas batalhas nas ruas e desafiaram os decretos do governo com confiança crescente. Antes da repressão, eles provaram o gosto da liberdade e do direito individual. E não o esquecerão tão cedo.
O angustiado sermão de Khamenei em 19 de junho não foi motivado simplesmente pelo levante popular nas ruas. Segundo uma fonte bem informada na cidade sagrada de Qom, Rafsanjani trabalha impetuosamente nos bastidores para convocar uma reunião de emergência do Khobregan, ou Assembleia dos Especialistas, órgão clerical de elite que pode depor o líder supremo ou diluir seus poderes.
Acusações
O caso jurídico contra Khamenei envolveria várias acusações. Primeiro, ele seria acusado de encorajar um golpe de Estado, ainda que sem derramamento de sangue, sem consultar o Khobregan. A segunda acusação seria a de conspirar sorrateiramente para retirar Rafsanjani, presidente do Khobregan e formalmente a terceira maior autoridade do país, de suas posições de poder. Em terceiro lugar, Khamenei seria acusado de ameaçar a própria estabilidade da república com sua ambição e sua temeridade.
O suposto plano de Rafsanjani é substituir a ditadura solitária de Khamenei por um Conselho de Liderança com três ou mais clérigos de alta hierarquia. Esta fórmula foi proposta e abandonada em 1989 por vários clérigos proeminentes. Rafsanjani provavelmente recomendará a concessão de uma cadeira a Khamenei no conselho para evitar uma reação violenta de seus fanáticos seguidores. Não está claro se Rafsanjani terá o apoio de dois terços dos membros da câmara necessário para tal mudança, embora o equilíbrio de forças no Khobregan possa ser alterado pelos atuais acontecimentos nas ruas. Afirma-se que Rafsanjani defende, num gesto simbólico, a realização da reunião em Qom – centro religioso do país, que Khamenei rebaixou – e não em Teerã, o local de costume.
Se há uma imagem que se tornou ícone nos últimos e extraordinários eventos, é a dos jovens mascarados que aparecem em todos os momentos de maior comoção. A Onda Verde, nome escolhido por Moussavi para seu movimento, é um fenômeno de múltiplas gerações, etnias e classes, mas com um forte tom urbano e de classe média. E é composto por números praticamente iguais de homens e mulheres.
Jovens destemidos
Por mais difusa que possa ser, a Onda Verde tem um componente crítico que funciona como fio condutor: uma classe de jovens revolucionários que a conduz em tempos difíceis. Muitos desses rapazes e garotas têm entre 18 e 24 anos, usam braçadeiras e máscaras verdes e são destemidos. Antes que a Guarda Revolucionária entrasse na briga, em 20 de junho, os jovens militantes da Onda Verde suportaram dias de ataques incessantes da milícia fanática Bassij e das tropas de choque regulares.
O que alimenta esta nova militância? A República Islâmica não é uma ditadura no sentido comum da palavra. Seus praticantes acreditam realizar a obra de Deus na Terra. Guiar os indóceis pela persuasão e coerção está entre suas principais missões. Quase todos os jovens no Irã, particularmente as mulheres, podem relatar dezenas de histórias de humilhação e discriminação nas mãos de agentes e simpatizantes do governo.
Para estes jovens, cada pedra atirada contra a polícia, cada combate corpo a corpo com os milicianos e vigilantes, cada confronto com a Guarda Revolucionária fortemente armada não é apenas um ato de rebeldia política. É uma experiência catártica de libertação pessoal.
Ao contrário de seus pais ingênuos, com suas utopias e romantizações da violência revolucionária, os novos revolucionários são sofisticados e sóbrios. Têm poucas ilusões quanto à dimensão dos problemas de seu país ou as complexidades da vida numa sociedade altamente tradicional e religiosa. Por exemplo, seus slogans, embora predominantemente seculares, misturam temas políticos e religiosos para não afastar os fiéis.
Sua resposta à retórica inicialmente comedida de Obama é outro sinal de uma nova sofisticação política: todos entendem que a intromissão dos EUA seria o proverbial beijo da morte para a causa da oposição.
Nos próximos dias e semanas, este movimento nascente enfrentará desafios difíceis. Poderá sofrer alguns contratempos e reviravoltas, mas o que importa é a experiência adquirida. A essa altura, é improvável que o medo, sozinho, possa conter a maré de descontentamento ou fazer com que as coisas voltem ao status quo anterior.
(Artigo publicado na The Nation e Fotos Agência EFE)
* Babak Sarfaraz é o pseudônimo de um jornalista no Irã.
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