“A verdadeira explicação para a lentidão do desenvolvimento industrial na África está nas políticas do período colonial”, escreveu Kwame Nkrumah, primeiro presidente de Gana, em seu livro de 1963, Africa Must Unite (A África Precisa se Unir, em tradução livre).
“Praticamente todos os nossos recursos naturais, para não mencionar o comércio, a navegação, os bancos, a construção e assim por diante, caíram e permaneceram nas mãos de estrangeiros que buscam enriquecer investidores e impedir a iniciativa econômica local”, escreveu à época, quando muitas nações conquistavam suas independências de países europeus. No entanto, mais de meio século depois, acontecimentos indicam que uma nova realidade pode estar começando a ser delineada.
São eles: os golpes de Estado que agitaram países subsaarianos, mostrando energia renovada para a superação da lógica colonial e imperialista, e uma nova perspectiva nas relações com a grande potência asiática, que parece disposta a viabilizar recursos para o desenvolvimento sem as contrapartidas draconianas exigidas pelo Ocidente.
Paralelamente à reunião de cúpula do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) em 2023, foi lançada uma Iniciativa de Apoio à Industrialização da África, na qual a China se comprometeu a aumentar o financiamento para construir infraestrutura, projetar e criar parques industriais e ajudar os governos e as empresas africanas a desenvolverem suas políticas e setores industriais.
A ideia é apoiar um projeto de desenvolvimento que surja da experiência africana, em vez de ser imposto aos Estados africanos pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) ou outras agências e países ocidentais.
Em publicações lançadas recentemente pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, especialistas avaliam que a Iniciativa de Cinturão e Rota (ICR), conhecida como “novo caminho da seda chinês”, lançado em 2013, tem fornecido financiamento significativo para projetos de infraestrutura que podem formar a base para a industrialização em regiões tradicionalmente exportadoras de matérias-primas e importadoras de produtos manufaturados, caso de boa parte dos países africanos.
Isso não significa que a China seja a tábua de salvação da África, até porque esse tipo de raciocínio faz parte do passado e o caminho da África pode, e deve, ser construído pelos africanos. No entanto, por sua própria experiência de construção de manufatura contra uma estrutura que reproduz a dependência, a China tem muito a compartilhar em termos de conhecimento. E, como possui enormes reservas financeiras e não impõe condicionalidades nos mesmos moldes que o Ocidente, pode também ser uma fonte de financiamento para projetos de desenvolvimento.
Em dezembro de 2022, o presidente do Banco Africano de Desenvolvimento, Akinwumi Adesina, afirmou que “a prosperidade da África não deve mais depender da exportação de matérias-primas, mas de produtos acabados com valor agregado”. Exemplos: transformar cacau em chocolate, algodão em vestuário, grãos de café em café pronto para consumo, cobalto e níquel em baterias de íon-lítio e carros elétricos, cobre e prata em smartphones.
Como Kwame Nkrumah escreveu em 1963, “África tem tudo o que precisa para se tornar um continente moderno e industrializado”.
Twitter/Brice Oligui
Para os europeus, o que aconteceu no Níger, somado aos casos de Mali e Burkina Faso, foi um “duro golpe” à presença francesa na África
Pelo fim da submissão
Esse novo cenário de cooperação para o desenvolvimento ocorre num momento político intenso e propício para mudanças, já que o clima na região é de ousadia para enfrentar as estruturas neocoloniais que esmagam a esperança. Os povos querem pôr fim à submissão.
A raiva contra os antigos colonizadores franceses – e que ainda exercem forte influência política na região – tem sido tão intensa que provocou pelo menos sete golpes de Estado recentes no continente africano (dois em Burkina Faso, dois no Mali, um na Guiné, um no Níger e um no Gabão) e desencadeou manifestações em massa da Argélia ao Congo, e mais recentemente no Benin.
O golpe mais recente — no Níger, que depôs o presidente Mohamed Bazoum em julho de 2023 — foi liderado por oficiais militares revoltados com a presença de tropas francesas e estadunidenses e com as crises econômicas permanentes infligidas a seus países. Nos levantes anteriores, a motivação era basicamente a mesma. Mas há outros detalhes.
Essa região no norte da África subsaariana, o Sahel, tem enfrentado uma cascata de crises: a seca da terra em decorrência da catástrofe climática, o aumento da militância islâmica devido à guerra da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na Líbia em 2011, o aumento das redes de contrabando para o tráfico de armas, pessoas e drogas pelo deserto, a apropriação de recursos naturais – inclusive urânio e ouro – por empresas ocidentais que simplesmente não pagaram adequadamente por essas riquezas e o enraizamento das forças militares ocidentais por meio da construção de bases e da impune atuação de seus exércitos.
Após o golpe no Níger, o Ocidente esperava enviar uma força por procuração – liderada pela Comissão Econômica dos Estados da África Ocidental (Ecowas, na sigla em inglês) –, mas os líderes militares africanos hesitaram. Por toda a região foram criados comitês de solidariedade para defender o povo do Níger de qualquer ataque.
Enquanto isso, não só parecia que o povo do Níger resistiria a qualquer intervenção militar, como também Burkina Faso e Mali prometeram defender imediatamente o país contra qualquer intervenção desse tipo. Nesse contexto, os governos dos três países criaram a Aliança dos Estados do Sahel (AES, na sigla em inglês), para estabelecer uma arquitetura coletiva de defesa e assistência mútua para o benefício das respectivas populações. Um produto de solidariedade mútua.
Mas a AES não é apenas um pacto militar ou de segurança. Na cerimônia de assinatura, o ministro da Defesa do Mali, Abdoulaye Diop, caracterizou a aliança como uma combinação de esforços militares e econômicos entre os três países. Estava lançada a semente que pode resultar numa agenda econômica que beneficie as populações e impeça a França de exercer sua autoridade sobre a região.
Histórico
Desde meados do século 19, o colonialismo francês se fez presente no Norte, Oeste e Centro da África. Em 1960, a França controlava quase cinco milhões de quilômetros quadrados (oito vezes o tamanho da própria França) somente na África Ocidental. Embora os movimentos de libertação nacional do Senegal ao Chade tenham conquistado a independência da França naquele ano, o governo francês manteve o controle financeiro e monetário por meio da Comunidade Financeira Africana ou CFA (antiga Comunidade Francesa da África), mantendo a moeda franco CFA (lê-se franco cefá) e forçando os países a manter pelo menos metade de suas reservas cambiais no Banque de France.
A França manteve as estruturas neocoloniais que permitiram que as empresas francesas sugassem os recursos naturais da região (como o urânio do Níger, que alimenta um terço das lâmpadas francesas) e impuseram uma agenda de austeridade e endividamento impulsionada pelo FMI.
O ressentimento contra a França aumentou depois que a Otan destruiu a Líbia em 2011 e exportou a instabilidade para a região do Sahel, na África. Uma combinação de grupos separatistas, contrabandistas trans-saarianos e ramificações da Al-Qaeda se uniram e marcharam ao sul do Saara para capturar quase dois terços do Mali, grandes partes de Burkina Faso e porções do Níger. A intervenção militar francesa no Sahel por meio da Operação Barkhane (2013) e a criação do projeto neocolonial G-5 Sahel levou a um aumento da violência por parte das tropas francesas, inclusive contra civis.
Políticas de substituição de importações, que haviam sido importantes para outros países do chamado Terceiro Mundo, foram rejeitadas em favor da exportação de matérias-primas baratas e da importação de produtos agregados caros. A espiral de dívida e dependência assolou o continente.
Esse estado de coisas incentivou a migração em toda a região, o que levou a Europa a implementar medidas de segurança e política externa, incluindo exportação de tecnologias de vigilância ilegal para os governos neocoloniais desse cinturão da África. O grito La France, dégage! [Fora França!] define a atitude de agitação em massa na região contra as estruturas neocoloniais que tentam estrangular o Sahel.
No entanto, uma força reacionária constantemente busca impedir a mudança necessária para o desenvolvimento autônomo e profundo da África. Ao longo dos últimos 30 anos, muitos partidos com uma história que remonta aos movimentos de libertação nacional e até mesmo aos movimentos socialistas se transformaram em representantes de suas elites, que, por sua vez, são condutores de uma agenda ocidental.
A entrada das forças de contrabandistas da Al-Qaeda deu às elites locais e ao Ocidente a justificativa para oprimir ainda mais o ambiente político, reduzindo as já limitadas liberdades sindicais e eliminando a esquerda das fileiras dos partidos políticos estabelecidos. A questão central e que os líderes dos principais partidos políticos, independentemente de sua orientação ideológica, ainda não possuem real independência em relação à vontade de Paris e Washington. Eles se tornaram fantoches do Ocidente.
* O texto acima foi composto com base em trechos de artigos do historiador e jornalista indiano Vijay Prashad, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, publicados no decorrer de 2023 pelo Brasil de Fato.