Após o convite do ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal para que Lula discursasse durante a solenidade do 49º aniversário da Revolução dos Cravos, João Gomes Cravinho viu-se no “olho do furacão”, já que líderes de partidos direitistas e da extrema direita se manifestaram contra a decisão.
O anúncio do chanceler aconteceu na semana passada durante a visita ao Itamaraty, em Brasília. Além da agenda com o vice-presidente Geraldo Alckmin, a viagem também tratou dos detalhes a respeito da cimeira luso-brasileira, marcada para acontecer entre os dias 22 e 25 de abril na capital lusitana.
Entretanto, devido à pressão, o governo português decidiu nesta quarta-feira (01/03) recuar da decisão e transformar o convite ao presidente Lula para falar no Parlamento em uma conclave de “boas-vidas”, mas, agora, fora da sessão solene do 25 de abril.
Com a mudança, Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República, afirmou que o Congresso de Portugal sempre recebeu chefes de Estado, declarando ser, sim, possível formar um outro momento diplomático com a presença do presidente do Brasil.
A proposta foi aceita com unanimidade por todos os partidos, menos para o Chega, legenda que representa a extrema direita em Portugal.
Pedro Prola, coordenador do núcleo do Partido dos Trabalhadores (PT) em Lisboa, disse a Opera Mundi entender que a visita de Lula será fundamental para aprofundar os laços históricos após quatro anos de pouco diálogo. “Nesse momento de esperança com a retomada da democracia no Brasil, a comunidade brasileira em Portugal vai receber Lula com alegria e espírito democrático”, pontuou.
Contudo, é sabido que as boas relações entre os dois países foram retomadas antes mesmo da posse do 39º presidente do Brasil.
Em novembro de 2022, durante visita ao primeiro-ministro português António Costa, Lula já dizia com entusiasmo a respeito do regresso dessa união que foi praticamente interrompida durante o governo de Jair Bolsonaro. Prova disso foi o aceno do petista ao dizer que voltaria ao “país-irmão” com Chico Buarque para assinar o diploma do prêmio Camões de Literatura.
Ademais, a vinda do presidente do Brasil em terras lusitanas se faz mais do que necessária em um momento onde milhares de imigrantes enfrentam dificuldades em se regularizarem no país. Devido à burocracia e a escassa estrutura disponibilizada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), o órgão responsável por conceder as autorizações de trabalho e residência em Portugal, está “condenando” muitos à fome e à miséria. O aumento no custo de vida e a falta de políticas públicas eficientes para estancar a crise de habitação também têm contribuído com a situação de vulnerabilidade de muitos brasileiros.
O número de cidadãos que solicitaram apoio para regressar ao Brasil quadruplicou entre os anos de 2021 e 2022. Segundo dados do Programa de Apoio ao Retorno Voluntário e à Reintegração da Organização Internacional para as Migrações (OIM), 92% das solicitações de repatriamento foram de brasileiros.
Ainda assim, tem quem assegure que o verdadeiro problema do momento seja a visita de Lula no Dia da Liberdade.
Ameaças extremistas
Parlamentares da direita e extrema direita ameaçaram deixar a Assembleia da República caso o presidente Lula discursasse durante a abertura das comemorações em solo português.
André Ventura, líder e presidente do partido fascista Chega, afirmou que a proposta do ministro dos Negócios Estrangeiros foi “uma vergonha e um desrespeito ao Parlamento como há muito tempo não se via”.
Em coletiva de imprensa na terça-feira (28/02), Ventura prometeu ainda que, se a participação do brasileiro fosse mesmo confirmada, ele fará “a maior manifestação contra um chefe de Estado já vista em Portugal”, com apoio de associações de imigrantes brasileiros, empresários e igrejas evangélicas.
Apesar da ousadia, não há nada que surpreenda nas declarações vindas de um deputado que chamou Lula de “bandido” durante uma sessão parlamentar em janeiro deste ano. Ventura já havia afirmado em 2022 não ter dúvidas de que Bolsonaro era “o melhor presidente para os brasileiros.”
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André Ventura, líder do partido extremista Chega, disse que pretende fazer manifestação contra a presença de Lula no Parlamento português
Todavia, Ventura não começou a sua vida pública defendendo fascistas abertamente, o atual líder da extrema direita portuguesa chegou a criticar a expansão do poder das polícias, a discriminação de minorias e o “populismo penal” em sua tese de doutorado, entregue em 2013.
Fundador do Chega, o parlamentar começou a sua trajetória na política no PSD, o mesmo partido de Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal. Em 2017, candidatou-se a prefeito da cidade de Loures pela legenda. Na época, foi acusado de “roubar” o discurso extremista de José Pinto Coelho – outro representante reacionário e velho conhecido dos que lutam contra o racismo e a xenofobia em Portugal.
Já para Rui Rocha, líder da Iniciativa Liberal, a atitude do governo foi uma afronta à casa da democracia, pois, segundo ele, o convite não foi debatido entre os demais deputados do Parlamento.
Questionado se fosse Bolsonaro a receber o convite, Rebelo explicou que Lula é o presidente do Brasil e que não se deve personalizar um chefe de Estado. A declaração aconteceu após um encontro com refugiados ucranianos em Lisboa. “O pior que poderia haver era agora o presidente da República imiscuir-se numa questão que é definida pela própria Assembleia”, pontuou.
Para Cyntia de Paula, presidente da Casa do Brasil de Lisboa, esse ataque à vinda de Lula não representa a vontade de boa parte dos brasileiros que vivem no país. Segundo ela, a instituição a qual preside reconhece que partidos de extrema direita elegem como inimigos principalmente as pessoas imigrantes.
“A tentativa de impedir a visita do Lula é um ato deplorável e não representa a comunidade brasileira. Um fato comprovado na eleição de 2022, em que o petista obteve maioria em Portugal, com 65% dos votos válidos no segundo turno”, reforçou a Opera Mundi.
Dois pesos, duas medidas
O curioso é que, no mês passado, o bilionário Abilio Diniz tentou reescrever a história do povo português durante um evento privado em Lisboa ao afirmar que a “Revolução dos Cravos foi um golpe de Estado”.
Nenhum deputado da oposição se incomodou com isso, muito menos reconheceram a coerente atitude do governo de Costa em não enviar representantes para um encontro que envolveu banqueiros e ministros do Supremo Tribunal brasileiro.
Outro episódio também é o chamado a Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, para discursar no mesmo Parlamento em abril do ano passado com o argumento de que seria um apelo pela paz e contra Vladimir Putin, presidente russo.
Apesar da justificativa legítima, é preciso ressaltar que o presidente da Ucrânia se tornou chefe de Estado após o Euromaidan, em 2014, quando a população ucraniana ficou contra o governo do presidente eleito, Viktor Yanukovych, que denunciou sofrer um golpe de Estado.
Batalhões neonazistas vêm sustentando operações de ataque contra a população etnicamente russa na região do Donbass antes mesmo desse episódio. Isso sem falar na proibição de mais de 10 partidos de oposição ou nas diversas evidências que ligam Zelensky a anseios supremacistas.
Então, por que é o discurso de Lula que incomoda tanto os deputados portugueses e o de Zelensky não?
Incomodados que se retirem
A cimeira luso-brasileira vai acontecer após sete anos desde a última conferência. Apesar da falsa polêmica e da instrumentalização que estão tentando criar em torno do convite a Lula, o evento será realizado em um momento fulcral para as negociações e acordos neste país (que possui a maior comunidade brasileira na Europa, com mais de 270 mil residentes).
A verdade é que os laços entre Brasil e Portugal dificilmente serão desfeitos. Como bem sabemos, essa relação começou há mais de 500 anos devido a uma invasão seguida por um genocídio indígena e mais de três séculos de escravidão.
Aos portugueses que compreendem a importância de não se negar a história factual e de se responsabilizar os colonizadores pelas suas atrocidades do passado, a ideia de conceder a palavra a um brasileiro em uma data de celebração revolucionária deve ser encarada como motivo de orgulho.
Não é todo dia que se recebe a visita de um sindicalista sobrevivente à ditadura militar (1964-1985), de um ex-operário que se tornou presidente do Brasil pela terceira vez depois de unir um país de dimensões continentais contra o saudosismo militar. Sua figura tem tudo a ver com um dia em que se celebra a liberdade.