Rafael Correa e Álvaro Uribe vivem às turras. No início do mês, irritado com o acordo militar entre Colômbia e Estados Unidos, o presidente equatoriano acusou o colega colombiano de “agressão contínua” por pelo menos sete anos, referindo-se às fumigações do governo colombiano para destruir plantações de coca no sul do país, já que o veneno chega ao Equador por meio de rios e do vento, danificando plantações e prejudicando a saúde das pessoas.
“É um bombardeio com glifosato sem importar a morte de cultivos, gado e, muitas vezes, gente. A Colômbia nunca teve a delicadeza de parar essas agressões”, disse o presidente equatoriano ao jornal El Tiempo.
Do lado colombiano, indígenas pagam boa parte dessa conta e não conseguem a devida reparação. O defensor público Alvaro Raul Vallejos, do estado de Nariño, no sul do país, diz que recebe diversas reclamações da população, em especial de índios.
Foto mostra a reserva Gran Sábalo, onde vivem índios da etnia Awa, que já sofreu fumigação
“Uma das queixas que fazem os indígenas é que as fumigações são indiscriminadas, não só afetam os cultivos ilícitos como também os legais. Então, as poucas possibilidades de segurança alimentar dos indígenas estão sendo afetadas pelas fumigações”, diz ele.
Apesar das queixas, os processos iniciados pela defensoria têm pouco efeito prático, segundo a assessora Nuri Ortiz. Um exemplo aconteceu em setembro de 2008, quando a camponesa Aramina Hurtado Bermudez procurou a defensoria para mostrar as diversas feridas sobre o corpo de seus filhos de 4 e 2 anos. Ela contou que em maio daquele ano os meninos estavam nadando em um rio perto de casa, no interior do município de Barbacoas, no estado de Nariño, quando foram atingidos por uma fumigação no local.
Leia mais:
Humanos não devem ter contato com glifosato
Aramina disse que deu banho nas crianças para livrá-las dos químicos, mas logo começaram a surgir problema na pele e no couro cabeludo. “Começaram com a aparição de pequenos grãos que viram lesões cutâneas e queda de cabelo acompanhadas por febre, coceira persistente, mal-estar geral e infecção”, diz o testemunho. O hospital local chegou a diagnosticar as crianças com dermatite devido a produtos químicos sobreinfectada.
Mas, segundo Nuri Ortiz, a queixa contra a polícia antinarcóticos e a Direção Nacional de Entorpecentes teve que ser arquivada por falta de infraestrutura. Em carta à defensoria, o Instituto Departamental de Saúde alegou que só teria sido possível fazer o diagnóstico se as vítimas tivessem se apresentado 24 horas depois da fumigação.
“O Instituto manifestou em várias ocasiões as dificuldade técnicas que se apresentam para poder confirmar os casos de intoxicações agudas por glifosato de acordo com os protocolos de vigilância estabelecidos pelo Instituto Nacional de Saúde, porque não conta com recursos humanos capacitados, meios de laboratório e capacidades de envio oportuno de amostras biológicas e tampouco dispõe de informação sobre as datas e lugares das fumigações aéreas”, diz a carta.
O vídeo gravado pela assessora e obtido pelo Opera Mundi (assista abaixo) mostra a gravidade do problema. “Sabemos que isso acontece, mas são poucos os casos que chegam até nós porque geralmente as vítimas moram em lugares muito isolados”, diz Nuri Ortiz.
De acordo com o coordenador da área de saúde da União Indígena do Povo Awa, José Arturo, o glifosato tem gerado muitos problemas de pele, especialmente em crianças indígenas. “Quando há fumigações em território Awa, as dermatites aumentam em cerca de 30%. As crianças não conseguem dormir por causa das feridas, não podem encostar em nada, a pele fica muito irritada e cheia de machucados”.
Queixas
Todo ano, cerca de 150 mil hectares são fumigados na Colômbia. Não há nenhum tipo de consulta prévia às comunidades e nem mesmo aos governos locais. Por isso, o chefe de governo do estado de Nariño, Fábio Trujillo, é taxativo: “Não gostamos das fumigações”. Para ele, a estratégia fracassou no estado.
Segundo informações oficiais do governo de Nariño, em 2008 foram fumigados 57 mil hectares de área no estado. Porém, o último censo da polícia antinarcóticos, realizado em fevereiro de 2009, aponta que existem 21.400 hectares de coca, pouco menos que os 22 mil existentes em 2007.
“Apesar das fumigações, continuamos tendo o mesmo nível de coca todo ano. Continuam havendo plantações e os insumos, como gasolina, continuam entrando”, diz Trujillo.
Ele vê poucas chances de mudança num futuro próximo. “Isso é política nacional, não temos nenhum controle. Nem podemos opinar. Apenas chega uma carta dizendo: vai haver fumigação a partir deste dia nesta parte do estado”.
O assessor de paz do estado, Zabier Hernandez, concorda: “Sempre que pedimos que parem, nem mesmo o diretor de entorpecentes nos dá ouvidos. Nem o governo nacional tem um controle disso, é dirigido diretamente pelos Estados Unidos”.
A visão dos EUA
Adam Isacson, diretor para América Latina do Center for International Policy, afirma que a influência norte-americana é inegável – e desproporcional.
“Quem decide onde se deve fumigar é o departamento antinarcóticos da embaixada norte-americana na Colômbia, conjuntamente com a divisão antinarcóticos da polícia colombiana. Mas quem paga quase todos os custos dessa divisão? Quem paga os salários, a munição, a manutenção das aeronaves e os pilotos? São os Estados Unidos”, afirma Isacson.
Sob contrato direto com o Departamento de Estado norte-americano, as fumigações são conduzidas pela empresa militar privada Dyncorp, sob um contrato anual de cerca de 164 milhões de dólares. No estado de Nariño, a base para as operações fica no aeroporto de Tumaco, no litoral pacífico. A mão-de-obra é formada por ex-militares norte-americanos aposentados contratados pela Dyncorp, que também fornece os aviões e o equipamento. O glifosato é fornecido pela Monsanto.
Para Isacson, a estratégia tem perdido apoio dentro do governo norte-americano. “Tem mais gente na administração e no congresso que não apoia tanto as fumigações, que acha que se as fumigações ocorrerem sem presença do estado as pessoas vão continuar plantando. Essa visão está evoluindo”.
Mas, para ele, o fim das fumigações ainda está longe. “Há muito apoio na seção antinarcóticos da embaixada norte-americana e no Bureau de Controle Internacional de Narcóticos, do Departamento de Estado dos Estados Unidos, onde acreditam que a fumigação é a única solução. Então, não acho que a administração Obama está preparada para acabar com isso. Mas está evoluindo, e deve haver diminuição em locais onde há mais presença do Estado colombiano”, diz.
Plano Colômbia
O despejo do herbicida glifosato foi adotado desde o ano de 1986. Desde 2000, é a principal estratégia para acabar com as plantações no sul do país, dentro do Plano Colômbia, sempre feito por aviões de empresas militares privadas.
Em 2007, um estudo da Comissão Científica Equatoriana concluiu que “o pacote herbicida forma parte de um sistema nocivo que, além dos impactos químicos, desencadeia processos de atemorização, migração e ruptura dos suportes comunitários, destruição de fontes de alimento e sustento econômico e impacto nos biomas e espécies”.
No ano passado, o Equador fez uma queixa formal na Corte Penal Internacional pelos danos causados pelas fumigações. Segundo Quito, a medida foi necessária depois de repetidos pedidos formais para que a prática fosse abandonada.
O problema também ocorre no Brasil. Certa vez, o município Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, foi pulverizado por uma nuvem de agrotóxicos que caiu sobre as casas, alimentos e pessoas. Leia reportagem da extinta Radiobrás.
* Texto e foto.
NULL
NULL
NULL