Para um visitante estrangeiro acostumado a viajar para a Venezuela, basta aterrissar no aeroporto internacional Simón Bolívar, a 30 quilômetros de Caracas, para perceber as mudanças. Após o controle de passaportes, as propagandas de cosméticos e jogos eletrônicos das lojas “duty-free” chamam a atenção como sempre, mas as estantes estão vazias. A única coisa que ainda se pode comprar são os produtos locais, como rum, charuto e chocolate.
Na saída, uma multidão de jovens oferece serviço de táxi. Outros, mais discretos, se oferecem para trocar dólares e euros por bolívares fortes, a nova denominação da moeda venezuelana. Não faltam casas de câmbio por ali, mas elas aplicam a taxa oficial: 1 dólar vale 2,15 bolívares fortes (BF). No mercado paralelo, dá para negociar uma taxa duas vezes mais interessante (4 BF por 1 dólar). No centro de Caracas, os mais espertos podem conseguir até 6 bolívares por dólar. Não é fácil enganar o cliente. A taxa de câmbio do mercado negro é calculada diariamente por vários sites hospedados no exterior – clique aqui para conhecer um deles. Mencioná-la na imprensa local é ilegal.
Estas situações ilustram distorções surgidas com a depreciação de 65% no valor do petróleo bruto venezuelano desde o preço recorde de julho de 2008 (150 dólares, com média mensal de mais de 130) até quase 30 dólares em dezembro – atualmente, gira em torno de 55. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) foi de apenas 0,3% no primeiro trimestre, projetando uma elevação anual inferior à média de 10,4% nos últimos cinco anos, que permitiu uma acentuada redução da pobreza. A inflação atingiu 31% no final do ano passado.
Desde 2003, a política econômica venezuelana é baseada em injeções crescentes de dinheiro público (28% do PIB em 2008). Trata-se, na maior parte, de subsídios distribuídos às populações carentes através das missões, programas sociais que cuidam da saúde (Barrio adentro), da educação (Robinson, Ribas e Sucre) e da alimentação (Mercal) e constituem a base da popularidade do presidente Hugo Chávez.
O estímulo das missões sobre a economia é notável. Pela primeira vez, os venezuelanos mais pobres descobrem o consumo. Na primeira fase, as compras responderam às necessidades básicas, ou seja, produtos alimentares. Em seguida, ficaram mais diversificadas. “Quebramos todos os recordes em termos de vendas de desodorantes, batons… Não há outro mercado comparável em dinamismo para os artigos de beleza na região”, confirma um alto executivo do gigante francês da distribuição Casino, presente na Venezuela desde 2000.
No governo, alguns são conscientes do fenômeno. “As ajudas distribuídas através das missões e o salário mínimo mais elevado da América Latina permitiram responder a uma situação de emergência. Mas acabaram estimulando um consumo tipo classe média entre os mais pobres de maneira artificial, porque eles não formam parte da classe média”, reconhece um economista do governo pedindo anonimato.
O problema é que a oferta não acompanha o crescimento da demanda. O aparelho de produção venezuelano é fraco, num país que acredita há anos que o petróleo é uma fonte de riqueza suficiente para se desenvolver. As tensões políticas não ajudam. Convencido de que vários empresários se recusam a produzir ou distribuir para especular, o governo montou o segundo pilar de sua política econômica: o controle de preços.
Desde 2003, os preços de 400 produtos e serviços básicos são tabelados. Também há um sistema de distribuição paralelo, chamado Mercal, que assegurou o fornecimento de alimentos em setores populares durante a greve patronal do final de 2002. Naquela época, o objetivo dos empresários era provocar uma insurreição contra Hugo Chávez, nos moldes das greves de caminhoneiros durante o governo de Salvador Allende no Chile, no começo dos anos 70. Na Venezuela, a organização do Exército permitiu contornar os bloqueios.
A lógica do Mercal é colocar lojas de todos os tamanhos em bairros pobres, com mercadorias a preço 40% inferior ao de supermercados convencionais. A medida foi uma das mais populares do primeiro mandato de Chávez. Mas tem também efeitos perversos, como sublinha Edis Vielma Sosa, um chavista convicto que trabalha há 25 anos em cooperativas de alimentos. “Existem intermediários que roubam e especulam, sem dúvida. É por isso que precisamos de mais controle. Mas em alguns setores, o preço final de venda estabelecido pelo governo é inferior ao custo de produção. Resultado: muitas empresas pararam a produção”.
Prateleiras vazias
Os produtos com preços controlados são escassos nas estantes ou são racionados. Da para encontrá-los no mercado negro, mas com tarifas proibitivas, o que contribui para manter a taxa de inflação acima de 40% no setor alimentar, segundo estimativas oficiais. Carne, frango, açúcar, leite, azeite e maionese desaparecem periodicamente. “O governo se recusa a atualizar os preços controlados, enquanto a inflação desde 2005 é de 125%”, diz o economista Orlando Ochoa, de opiniões oposicionistas.
Na maioria dos casos, o setor privado se esquiva da lei. Por exemplo, já que o governo impõe um preço de venda máximo para o arroz branco, os produtores começaram a privilegiar o arroz integral ou arroz perfumado, que não são tabelados. Consequentemente, o produto de base sumiu do mercado. Em março, o governo contra-atacou, decretando cotas mínimas de produção. O arroz branco terá de representar pelo menos 80% da produção deste cereal.
A medida inclui 11 produtos da dieta básica venezuelana (macarrão, molho de tomate, açúcar, queijo, café, óleo comestível, leite em pó e pasteurizado, margarina, maionese e farinha de milho), com cotas variando entre 70% e 95%. No caso de empresas que produzem exclusivamente variedades fora do tabelamento, como leite com chocolate, será necessário obter uma permissão especial para continuar produzindo. Para quem não acatar, a sanção é a expropriação. É o que aconteceu com o gigante norte-americano Cargill, que perdeu o controle de uma usina de arroz em março e outra de massas em maio.
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Com o risco de nacionalização e de limitação dos lucros, os fluxos de investimentos estrangeiros diretos caíram 56% entre 2007 e 2008. “Criar um controle de preços é uma ideia ótima para manter os produtos básicos acessíveis. Mas esta medida implica uma atualização contínua dos preços e um bom conhecimento da estrutura de custos das empresas”, analisa um funcionário da equipe econômica de Chávez.
Ele lamenta a pobreza das ferramentas econômicas do governo. “A gente não tem como levar em conta as flutuações das tarifas de transporte, de fertilizantes e outros custos logísticos. Sabemos que há abundância de especuladores na cadeia de produção, mas não se sabe onde. Corremos o risco de errar e impor um preço máximo insustentável”.
Tampouco o setor privado é incentivado a produzir mais para a exportação. Paralelamente ao controle de preços, o governo introduziu o controle de câmbio, que constitui o terceiro pilar do sistema econômico, estabelecendo uma tarifa fixa para o bolívar. A medida contribuiu para limitar a fuga de capitais, mas acabou provocando uma sobrevalorização da moeda venezuelana. Com um dólar valendo 2,15 bolívares, a indústria venezuelana não pode competir no mercado internacional. Isso incentiva as empresas a diminuir ainda mais a produção, o que se reflete na oferta interna.
Durante cinco anos, Caracas tem ignorado o problema, importando cada vez mais, graças aos enormes excedentes gerados pela produção petrolífera. Carne, frutas, remédios, autopeças chegavam dos Estados Unidos, Colômbia, Equador, Brasil e China sem por em perigo o equilíbrio da balança comercial, sempre positiva. A queda dos preços do petróleo no último trimestre de 2008 revelou o reverso da medalha: há anos as exportações não petrolíferas declinam, fazendo da Venezuela uma nação cada vez mais dependente dos hidrocarbonetos.
O petróleo representa 90% das receitas de exportação do país e metade das receitas fiscais. Também financia a totalidade dos programas sociais. Em 2008, as exportações de petróleo geraram 87 bilhões de dólares para o Estado. Para este ano, o governo estima não mais que 36 bilhões.
Para lidar com a redução de receita, Chávez decretou uma redução dos gastos públicos em 6,7% e um aumento do IVA (Imposto sobre Valor Agregado) de 9% para 12%. Mas a principal arma é o colchão de divisas acumuladas durante os anos dourados. As reservas são oficialmente de 30 bilhões de dólares, o que deve permitir financiar nove meses de importações se o país mantiver o ritmo de compra. O presidente também quer que o Estado contraia dívidas, aproveitando a reputação histórica de bom pagador de Caracas nos mercados internacionais. Mas a crise financeira mundial secou boa parte das fontes de dinheiro.
Até agora, o governo rechaça a hipótese de aumentar o preço da gasolina, a mais barata do mundo – encher um tanque custa menos de três dólares. Há uma explicação quase psicológica. No dia 27 de fevereiro de 1989, foi o aumento da gasolina anunciado pelo então presidente Carlos Andrés Perez que desencadeou o “Caracazo”, uma rebelião popular cuja repressão provocou entre 400 e mil mortes. Foi também o ponto de partida de um movimento político que levou Hugo Chávez ao poder, dez anos mais tarde.
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Foto: Lamia Oualalou.
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