Nos dias 11, 12 e 13 de abril de 2002, partidos de direita, setores das Forças Armadas e da imprensa deram um golpe de Estado na Venezuela que conseguiu afastar o então presidente Hugo Chávez do poder por 48 horas. 21 anos após os atos que redefiniram a política recente no país, o Brasil de Fato publica a primeira de duas entrevistas especiais com testemunhas que presenciaram os fatos históricos daquele período.
Já havia anoitecido quando o telefone do escritório de Gilberto Giménez tocou, no canto escuro de uma das muitas salas do Palácio Miraflores, sede do Poder Executivo da Venezuela. Agitado como as dezenas de pessoas que estavam ali no dia 11 de abril de 2002, ele ignorou os três primeiros toques, pensando que de nada adiantaria atender uma ligação de trabalho naquele momento em que o mandato do então presidente Hugo Chávez estava por um fio. O telefone, entretanto, não desistiu até que Gilberto, em um golpe de fúria, cedeu:
– Alô! – gritou o funcionário, quase ofendendo seu interlocutor.
– Olá, desculpe – respondeu a voz do outro lado da linha, percebendo que telefonava em má hora.
– Você fala do Palácio Miraflores?
– Quem é?
– Aqui é da Rádio Emissoras Unidas de Honduras. Gostaria de saber o que está acontecendo, de fato, aí. A imprensa venezuelana está dizendo que vocês estão cercados por tanques e que o governo já caiu.
– Mentirosos! Quem rodeia o Palácio é o povo que apoia o presidente!
“Naquele instante percebi que o golpe também era midiático”, conta ao Brasil de Fato Gilberto Giménez, que não se arrepende de ter atendido a ligação.
Ele trabalhava apenas há dois meses no Miraflores quando setores das Forças Armadas, do empresariado e da imprensa venezuelana tentaram dar um golpe de Estado para derrubar Chávez, em abril de 2002. Hoje exercendo o mandato de deputado pelo partido Movimento Eleitoral do Povo (MEP), Giménez era um dos assessores da Secretaria da Presidência à época e tinha a tarefa de gerenciar a imagem do então presidente no exterior.
“Muitos não entendiam, inclusive os progressistas, como era possível que um militar fosse de esquerda e estivesse realizando as transformações que o comandante Chávez estava levando a cabo”, diz.
Foram algumas dessas transformações que despertaram a ira da oposição e abasteceram as intenções golpistas de velhos oligarcas. Reformas iniciadas por Chávez como a nova Lei de Terras, que atacava frontalmente o latifúndio improdutivo, e principalmente a Lei dos Hidrocarbonetos, que limitava os lucros das petroleiras estrangeiras no país, mobilizaram setores reacionários que, buscando defender privilégios sociais e econômicos, passaram a convocar constantemente locautes e passeatas, atirando o país em um intenso clima de acirramento político.
O ápice chegaria no dia 11 de abril, quando partidos de direita e ex-diretores da estatal petroleira da Venezuela, a PDVSA, que haviam sido despedidos recentemente por Chávez, convocaram milhares de apoiadores para um ato que, em teoria, aconteceria em frente à sede da empresa no bairro de Chuao, zona leste de Caracas.
Horas mais tarde, ficaria evidente que a intenção desse grupo não era permanecer concentrado no local. Figuras como Guaicaipuro Lameda, diretor recém-demitido da PDVSA, e Enrique Mendoza, então governador do estado de Miranda, começaram a convocar os manifestantes para marchar em direção ao Palácio Miraflores. A imprensa, escrita e televisionada, vinha alimentando durante semanas a ideia de um “ultimato” ao governo, declarando apoio explícito aos protestos da direita e exibindo convocatórias para as marchas durante os intervalos comerciais.
Uma edição extra do diário El Nacional, o maior do país naquele momento, publicada na tarde do dia 11 de abril, trazia uma enorme foto do ato opositor acompanhada da seguinte manchete: “A batalha final será no Miraflores”.
De repente, o incitamento da direita não era apenas uma ameaça à estabilidade do governo, mas tornava iminente uma confrontação direta e armada entre civis, porque do outro lado da cidade, em vários quarteirões em torno do palácio presidencial, milhares de manifestantes chavistas se preparavam para defender o presidente.
Foi em meio a esse clima que Giménez chegou ao Miraflores para trabalhar naquele dia 11 de abril. Pelas próximas horas, o funcionário presidencial veria os mortos causados pela violência nas ruas, franco-atiradores mercenários sendo capturados por tropas leais a Chávez, o canal de televisão estatal tomado para impedir que o governo denunciasse o golpe e o ponto de máxima tensão, quando militares golpistas entraram no salão presidencial para sequestrar Chávez e concretizar o golpe, nas primeiras horas da madrugada do dia 12. Um dos últimos civis a deixar o palácio, Giménez diz que chegou a telefonar para sua mãe de dentro do Miraflores para se despedir. “Eu estava convicto em defender o governo até as últimas consequências”, afirma.
O então funcionário presidencial e hoje deputado recebeu a reportagem do Brasil de Fato em seu gabinete para contar o que testemunhou e como sobreviveu ao golpe de Estado.
Confira os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Como você chegou para trabalhar no dia 11? Já havia um pressentimento de golpe entre os funcionários do Miraflores?
Gilberto Giménez: Quando ocorreu o 11 de abril, eu tinha apenas dois meses trabalhando no Miraflores. Ainda nem tinha um crachá oficial, tinha um provisório que me dava acesso ao Palácio. No dia 11 de abril, eu fui trabalhar como qualquer outro dia normal de trabalho, com as angústias próprias de qualquer pessoa que vivia esse momento desesperador, desse acirramento que havia nas ruas, dessa agitação constante que os meios de comunicação espalhavam entre o povo venezuelano. Nós sabíamos que haveria uma marcha esse dia e o que o chavismo geralmente fazia – e continuamos fazendo – era convocar uma outra marcha. Como enfrentamos a mobilização opositora? Com mobilização chavista. Haviam convocado uma mobilização nos arredores do Miraflores para esse dia, havia inclusive palcos ao redor do Palácio, no centro de Caracas, e ali havia um clima de música e alegria. Desse lado, havia a festa chavista habitual, e por parte dos meios de comunicação e da loucura opositora havia o que já sabemos, as mensagens de ódio contra Chávez.
Então eu fui trabalhar como qualquer outro dia, mas seguindo de muito perto os acontecimentos pelos meios de comunicação. Naquele momento acompanhamos pela Rádio Caracas Televisão [RCTV], Venevisión, etc. De fato, os meios estatais eram muito fracos, o canal Venezuelana de Televisão [VTV] era um canal muito débil, com pouco alcance, com sistemas tecnológicos muito obsoletos e câmeras muito velhas. Começamos a ver que durante o desenrolar dos acontecimentos havia uma enorme – e há que se reconhecer assim – concentração opositora. Eu acho que esses dias foram os dias de maior mobilização opositora na história desse setor político. E isso faz parte de um sistema democrático normal, é comum que ocorram atos opositores. Há pessoas que podem gostar de um presidente de uma determinada ideologia e há pessoas que não gostam.
O presidente Chávez foi eleito com a grande maioria dos votos do povo venezuelano, mas havia uma classe, sobretudo uma classe média, que não conseguia se identificar com algum projeto, pois não eram ricos, mas também não eram pobres. Eles tentavam se desvincular dos pobres, mas eram vistos com desprezo pelos ricos. Essa classe média sem lugar, sem consciência de classe, era um setor facilmente manipulável pelos meios de comunicação e sob esse bombardeio eles se mobilizaram.
Mas a oposição sabia que havia uma concentração chavista no centro e diversas autoridades alertaram para a possibilidade de um confronto direto entre os dois grupos. Vocês perceberam que a intenção da direita era usar o enfrentamento como pretexto para pedir a renúncia de Chávez como, de fato, acabou ocorrendo?
Totalmente. A concentração opositora era em Chuao, no leste de Caracas, mas alguns líderes da oposição começaram a convocar o povo a ir ao Miraflores. Foi aí que nos demos conta de que se tratava de um plano insurrecional. Aqui, na Venezuela, a oposição se expressava com toda liberdade, porque é um direito constitucional. O governo do comandante Chávez – me atrevo a dizer – era inclusive condescendente, porque eles sempre faziam concentrações e manifestações sem cumprir algumas normas, sem avisar o percurso, bloqueavam ruas etc. Mas eles sempre tiveram liberdade. Que estranha ditadura, não? Que permitia que o povo se mobilizasse.
Enfim, quando vimos essa convocatória da oposição, o primeiro medo que tivemos foi de ocorrer uma confrontação. Além disso, os jornais e TVs já vinham exacerbando os ânimos. Do nosso lado, o chavismo se sentiu agredido e criou-se um clima de disposição para defender Chávez e o processo revolucionário. Do outro lado, um setor cheio de ódio, também inflado pelos meios de comunicação, vinha para tirar o presidente Chávez do Miraflores. “Arrastem-lo para fora!”, eles gritavam. Há muitos documentos que provam essa intenção de gerar esse confronto.
Então, é claro, começa a haver temor no Miraflores, pois ficava evidente que a marcha opositora estava vindo ao centro de Caracas, que era um território chavista. Isso era como uma afronta ao chavismo, uma provocação aberta, que a oposição viesse a um território chavista. Já estava plenamente identificado que Altamira e outros setores como El Cafetal e Las Mercedes eram território opositor, mas o centro de Caracas era um território chavista.
Por volta do meio-dia, os meios de comunicação começaram a dizer que a marcha opositora estava se aproximando do centro de Caracas. Eu me lembro que, no Miraflores, deram instruções para que todos os civis se retirassem do Palácio. Nesse momento, eu tive a oportunidade de sair às ruas e vi que o ambiente festivo que havia pela manhã já era outro. Havia um ambiente de raiva, porque todos já sabiam que a oposição estava vindo ao centro. Eu vi velhinhas pegando paus e pedras, literalmente, dizendo umas às outras que defenderiam o Miraflores. Havia de tudo: motoqueiros, mulheres, jovens, trabalhadores. Eu me lembro que, por iniciativa própria, as pessoas pintaram os rostos de vermelho, com batom e maquiagem, faziam riscos vermelhos na cara para que os chavistas estivessem identificados.
A Guarda Nacional havia montado cordões, sobretudo na subida da Praça O'Leary, em direção a Catia, pela avenida Sucre. Eu caminhei até ali, de terno e gravata, vestido com minha roupa de trabalho, e consegui ver o fluxo opositor chegando. A Guarda Nacional tentou dispersar várias vezes a marcha com gás lacrimogêneo, mas não conseguiu. Então decidi voltar ao Miraflores e nesse momento começaram os disparos. Do sótão do Palácio, um espaço alto onde costumávamos nos reunir para tomar café, eu consegui ver os primeiros mortos. Em uma das ruas laterais, onde está a escola Andrés Bello, havia um rapaz morto na esquina. Seu corpo estava estirado no chão e depois o cobriram com um lençol branco. Dali não conseguimos ver o que acontecia na Ponte Llaguno, só depois vimos pela TV, o que diziam as emissoras tradicionais. Os celulares começaram a falhar, o sinal caía. Eles realmente souberam nos isolar do ponto de vista informativo.
Você chegou a conversar com Chávez ou ver o presidente em algum momento do dia 11?
Eu não vi o comandante Chávez porque havia uma espécie de cordão de segurança para que ele não caminhasse nos corredores do Miraflores, mas tive a oportunidade de ver e conversar com muitos ministros: Aristóbulo Istúriz [ministro da Educação], Ana Elisa Osorio [ministra do Ambiente] e outros. Sobre os que estavam no Palácio, há um fato importante que eu gostaria de comentar. Duas jovens irlandesas, Kim Bartley e Donnacha O’Briain, estavam aqui no país fazendo um documentário sobre Chávez. Elas acompanhavam o presidente em todas as suas viagens e atividades. Casualmente, o golpe de Estado aconteceu no período em que elas estavam na Venezuela e tinham acesso ao Palácio. Elas filmaram tudo e esse material deu origem a um documentário maravilhoso, que serviu para denunciar o golpe, chamado “A Revolução Não Será Televisionada”.
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Nos dias 11, 12 e 13 de abril de 2002, partidos de direita, setores das Forças Armadas e da imprensa deram um golpe de Estado na Venezuela