Estamos em um novo momento de partida nas relações com a China. Primeiro, porque é necessário relançar os canais políticos de diálogo constrangidos pela anti-diplomacia bolsonarista. A elevação de padrão qualitativo das relações bilaterais passa por buscar maior aproximação dos governos. Segundo, porque a dinâmica das relações Brasil-China e o mundo mudaram desde quando o presidente Lula assumiu pela primeira vez a Presidência e viajou à China, em 2004, e os dias de hoje.
O Brasil de 2004 via a China como país que proporcionaria uma diversificação das parcerias comerciais centradas nos Estados Unidos. Já o Brasil de 2023 vê Pequim como principal parceiro comercial, com um volume de comércio que é quase o dobro do que se tem com o 2º parceiro.
A necessidade agora é diversificar o comércio para além da China, além de diversificar as trocas com o próprio governo chinês.
Centrada em torno das três commodities (soja, petróleo e minério de ferro), a pauta exportadora tem sua dinâmica própria. Puxada pela demanda chinesa e pelos preços internacionais, até cresceu nos últimos anos. Mas, havia uma clara ausência de política consistente para a China que mirasse além do curto prazo e estivesse ligada a um projeto de desenvolvimento nacional visando uma nova industrialização em bases tecnológicas e ambientais.
A viagem do presidente à China deve marcar o início de uma nova relação em três âmbitos: ampliar e adensar a relação bilateral; identificar cooperação em fóruns internacionais em torno de temas que as partes consideram prioritárias para a pauta internacional; e olhar com mais atenção e de forma mais sistemática experiências de políticas públicas nas mais diversas áreas que, apesar das grandes diferenças entre os países, possam servir de inspiração.
No mundo de 2004 não havia guerra da Ucrânia, rescaldo de crise financeira, disputa tecnológica, ideológica e comercial entre China e Estados Unidos. Os órgãos de apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC) ainda funcionavam.
O G7 funcionava como G8, com a participação da Rússia. Esse mundo não existe mais. Um novo clima de guerra fria com apelos a dividir arbitrariamente o mundo entre democracias e autocracias deve ser rejeitado. O Brasil deve manifestar sua vocação de um país multi-alinhado.
Diante disso, o que o Brasil deve buscar?
Em termos bilaterais, é preciso encontrar um caminho para que a China contribua para o projeto de uma nova industrialização orientada para a digitalização e sustentabilidade do país, uma das metas do novo governo Lula.
Pela via do comércio, dificilmente isso irá ocorrer. Embora possa ser possível incluir um ou outro produto de maior valor agregado na pauta exportadora, em termos estruturais, o Brasil não tem condições de alterar qualitativamente as relações de troca com a China. O caminho, então, é pela via dos investimentos e projetos de cooperação conjuntos, que podem ser vistos como compensatórios ao padrão comercial existente que reproduz a lógica centro-periferia.
No setor automotivo, por exemplo, que passa no mundo inteiro para uma revolução tecnológica, espera-se que a empresa chinesa BYD assuma a fábrica da Ford na Bahia e passe a produzir (inclusive para exportação) motores elétricos para caminhões e carros e, posteriormente, carros elétricos.
Os dados dos últimos anos mostram que há interesse chinês em investir aqui. Os investimentos acontecem independentemente do Brasil ter políticas industriais e tecnológicas, a partir de estratégias definidas lá fora, mas poderiam ganhar em peso, densidade e uma maior contribuição ao desenvolvimento brasileiro se articulados com políticas nacionais.
Há de se buscar mecanismos para estimular o direcionamento desses investimentos para setores identificados como prioritários e com capacidade de encadeamento para empresas e instituições de pesquisa nacionais. Isso pressupõe que o governo brasileiro deve ter clareza para indicar e projetos de parceria para propor.
Para a relação Brasil-China aproveitar de seu potencial é preciso uma sinergia grande entre nova política industrial e tecnologia e política externa, a exemplo do que foi articulado nos últimos anos pelo setor agroexportador.
É preciso recursos não só na infraestrutura, mas também investimentos que possibilitam reinserção produtiva do Brasil. É o caso por exemplo do setor de semicondutores, o qual o país já se colocou como ator que quer contribuir para a cadeia de fornecimento. O governo está estudando o reavivamento do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (CEITEC), estatal que pode ser uma porta de entrada para a atuação do Brasil no setor.
Ricardo Stuckert/PR
Lula viaja à China entre os dias 13 e 14 de abril e deve encontrar Xi Jinping
O governo tem dado indicações que vai buscar parcerias, não só com a China (também se fala em aproveitar investimentos dos EUA), para inserir o Brasil.
Outro aspecto em que se deve investir é no funcionamento de mecanismos das relações bilaterais que ficaram de lado ao longo dos últimos anos. O Fundo Brasil-China de Cooperação para a Expansão da Capacidade Produtiva, criado em 2015 com a perspectiva de investir US $20 bi, nunca saiu do papel, mas poderia ser recuperado e operacionalizado de fato.
O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), que vai contar com a presidência da ex-presidente Dilma Rousseff, junto com a recuperação do papel do BNDES, pode atuar para a seleção de projetos e financiamento de iniciativas que envolvam os dois países e podem auxiliar para desenvolvimento da estrutura produtiva, bem como para gerar tecnologia.
Sobre esse último aspecto, o Brasil é um país central para transição energética, potencial que poderia ser explorado inclusive em termos de parcerias tecnológicas com empresas chinesas. No setor aeroespacial, a recuperação do projeto CBERS, que já está nos planos do governo, é essencial para o sensoriamento remoto do território, contribuindo com insumos que permitem melhor lidar – de forma soberana – com o desmatamento da Amazônia, desastres naturais e atividades agrícolas.
A cooperação no setor de inteligência artificial seria outro aspecto potencial tanto na área da saúde, aproveitando-se os insumos de informação gerados pelos Sistema Único de Saúde (SUS), como na área de segurança pública. No que diz respeito à infraestrutura da digitalização, há de se explorar o potencial de empresas como Huawei instalarem centros de pesquisa conjuntos visando a ampliação da tecnologia 5G e o desenvolvimento do 6G.
No caso do comércio, embora alterar o padrão seja muito difícil, é possível avançar em alguns aspectos. Seria importante – um voto de confiança ao Brasil – que se avançasse as negociações para a habilitação remota de novos frigoríficos para exportar à China. E, considerando que a soja brasileira é essencial para a segurança alimentar chinesa, mas uma atividade prejudicial ao meio ambiente no Brasil, faria sentido insistir com Pequim no desenvolvimento conjunto de projetos de conservação ambiental. Esse tipo de ação se casaria com objetivos de política internacional chinesa, que tem demonstrado preocupações maiores com o ambiente e o clima.
Ainda na esfera bilateral, o Brasil deveria buscar iniciativas de aproximação entre as sociedades. A profunda interação econômica precisa ser suportada por atividade social. Nos últimos anos, desenvolveu-se uma intensa atividade subnacional entre Brasil e China, que deveria ser mapeada e impulsionada nessa nova fase. Também a realização de intercâmbios culturais e educacionais, bem como a promoção da língua chinesa e Institutos Confúcio, poderiam contribuir para aumentar o conhecimento nas sociedades sobre o outro país.
É preciso investir no conhecimento mútuo, e, nesse sentido, o Brasil deve comprometer-se a ampliar sua capacidade de construir uma visão brasileira da China e de sua diversidade, visando ao fortalecimento dos laços de confiança mútua e cooperação. A multiplicação das oportunidades para intercâmbios de estudantes, pesquisadores e profissionais em geral, bem como as oportunidades de contato com a língua e a cultura chinesas nas universidades brasileiras, são elementos centrais nessa construção. Ao mesmo tempo, cabe ao Brasil estimular e fortalecer os centros de estudos brasileiros na China.
No lado multilateral, há linhas de atuação comuns a serem exploradas. O combate à fome, pobreza e miséria, a busca da segurança alimentar, a defesa do meio ambiente, a reforma de instituições internacionais, e o ensejo em evitar uma nova regra fria e assegurar que o emergente mundo multipolar seja saudável e contemple diversidade são aspectos que os países podem explorar em declarações conjuntas e ações específicas dentro das organizações internacionais. Em particular há uma potencial convergência de visão sobre a necessidade urgente de se buscar soluções pacíficas com relação à guerra da Ucrânia.
Buscar ativamente, e de forma ousada, o adensamento e aprofundamento da relação com a China é parte da vocação de país multi-alinhado do Brasil que não prejudica ou exclui o mesmo movimento com relação às outras potências econômicas.
(*) Ana Tereza Marra é professora da UFABC, doutora em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP/ UNICAMP/ PUC-SP), pesquisa temas relacionados às relações internacionais de China e Brasil e integra o Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB)
(*) Giorgio Romano Schutte é professor de Relações Internacionais e Economia da UFABC e membro do Observatório da Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).