Quando Al Am Bareksh Baidya ou sua esposa precisam lavar roupa ou utensílios de cozinha, caminham mais de um quilômetro até o lago mais próximo. O mesmo quando querem tomar banho ou limpar o táxi-bicicleta que Bidya conduz todos os dias para ganhar a vida.
Os Baidya vivem com seus dois filhos adolescentes em Guruyat, um pequeno assentamento em Pacim Para no Estado de Bengala Ocidental, no leste da Índia. Não têm água encanada nem banheiro. A 100 metros dali, vários edifícios se erguem no meio das pastagens: todos perfeitamente equipados para receber a nova classe média que a Índia parece formar por todo lado. Inclusive aqui, não muito distante do aeroporto internacional de Calcutá, no município de Rajarhat, um subúrbio no qual as grandes transnacionais da informação e a tecnologia têm imensos escritórios.
O governo local, diz Baidya a Opera Mundi, construiu uma instalação sanitária “que não funciona, são ladrilhos e paredes e nada mais. Mas há uma bomba manual.” Ali, assim como os 60% dos conterrâneos sem serviço de água potável em seu domicílio, este homem de 37 anos obtém o líquido para beber e cozinhar. Água de poços profundos que, como 80% da água superficial desse país, está contaminada com algum minério ou, pior, com dejetos humanos.
Agência Efe
Moradores recolhem água de um poço quase seco em Siddhewadi, nos arredores de Mumbai
E ainda que as corporações municipais da Índia tratem a água em usinas por todo o território, há 76 milhões de pessoas no país sem acesso algum a água potável, o maior número de pessoas do mundo nessa condição.
Não foi sempre assim. Rajarhat era conhecida por seus imensos corpos de água doce, que são parte do maior manto freático do planeta, que desemboca no golfo de Bengala. E Baidya diz que, antes dos edifícios, não faltava água, nem era necessário ir longe para consegui-la.
Em um país banhado por rios e com chuvas torrenciais legendárias, a mudança climática e seus derivados, como o El Niño, colocaram o segundo país mais povoado do planeta à beira de uma crise de água inesperada. Dois anos com uma monção escassa, secas e chuvas anormais diminuíram as reservas de água em 58% em toda a Índia, mais ainda em algumas regiões onde a industrialização e a urbanização não tiveram controle algum.
Nem poço, nem barragem, nem dinheiro
Na região de Marathwada, Estado de Maharashtra, no centro-oeste do país, o alerta é geral há algumas semanas. Sete das 11 represas que alimentam a região – entre elas a maior represa a nível do solo da Ásia, Jayakwadi – secaram no último ano. Seu nível de água viva (utilizável para irrigação ou consumo) é zero e as autoridades estão recorrendo à água morta (inapropriada para consumo) das represas para, tratada apropriadamente, reparti-la.
Em Mumbai, capital de Maharashtra, foi dada a ordem de enviar 2.378 caminhões-tanque aos oito distritos que compõem Marathwada para atender as quase 19 milhões de pessoas que sofrem com a seca. Esse sistema precário de distribuição é praticamente a única fonte de água para consumo humano da região. É assim que no distrito de Latur, ponto crítico em Marathwada, o ministro nacional de Ferrovias, Suresh Prabhu, deu a ordem de enviar o mais rápido possível trens diários com água potável para abastecer a população.
Agência Efe
População recolhe água de caminhão-pipa em Bhiwandi, a 60 km de Mumbai
A leste dali, a região de Vidarbha, em pleno coração geográfico do país, na região onde se produz a maior quantidade de algodão da Índia, não está muito melhor. Lá, milhares de camponeses se suicidam todos os anos por dívidas e por falta de recursos. Nos últimos meses, a tendência não mudou. De acordo com informações oficiais revisadas pela organização de investigação de dados India Spend, nove camponeses se suicidam a cada dia em Maharashtra. E hoje a tendência cresce pela falta de água, um motivo latente nesse Estado onde mais de 55% das pequenas comunidades vivem na seca.
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Acontecem fenômenos semelhantes (ainda que de menor intensidade) em outros Estados, como Telangana ou Madhya Pradesh. A cada semana há novas declarações de seca em diversas regiões e pedidos de ajuda econômica ao governo central. Em análises recentes do India Spend, as 91 principais reservas de água potável estão desde o mês de março operando com 29% de sua capacidade. Trata-se do nível mais baixo da última década.
Para onde vai a água
Em Lucknow, uma cidade fundada no século 13 no norte da Índia, a escassez também é notável. Capital do Estado de Uttar Pradesh, esta cidade famosa por seus lagos, canais, lagoas e água fresca (graças à sua proximidade ao Himalaia) conta apenas com 47% de suas reservas de água potável superficial: barragens, basicamente, como as que 85% da Índia usam para satisfazer suas necessidades.
Apesar de sua antiguidade, Lucknow é uma das dez cidades com crescimento mais rápido no país. Nessa cidade não foi a água que acabou, mas sim o espaço: uma onda de construções modernas foram destruindo ou secando poços, barragens e bicas de água naturais. O rio Gomti, que rodeia a cidade e era sua fonte principal de água limpa está com apenas 40% de sua capacidade. Apesar de tudo, não há ainda uma resposta oficial do governo de Uttar Pradesh para esse problema.
Agência Efe
Mulheres caminham em busca de água em Mhaismal, a 95 quilômetros de Nashik, no Estado de Maharashtra
Nos Estados de Haryana, Rajastão e Punjab, a noroeste, a situação também é delicada. Nessas regiões, semidesérticas ou com um manto aquífero menor que o de outras, o consumo de água superficial é de mais de 100% há dois anos: isto é, consome-se mais água do que as reservas recebem. O mesmo em Nova Déli, onde, além disso, a concentração populacional faz com que cada vez se busque água mais longe, nas represas de Estados como Gujarat, cujo limite fica a 800 quilômetros a sudoeste da capital indiana.
De volta ao centro do país, nos Estados de Chhattisgarh e Orissa, a cada dia são publicadas reportagens ou queixas de comunidades agrícolas onde falta água potável, poços, bombas ou que são ameaçadas pelas novas máfias da água, que controlam basicamente os caminhões que transportam água para as regiões mais necessitadas.
A água parece evaporar. Já não se encontra nas fábricas de bebidas comerciais, como acontecia há 15 anos com a da Coca-Cola. De fato, faz anos que a empresa não pode instalar uma unidade comercial engarrafadora na Índia porque as pessoas se opõem e pressionam os governos locais. Mas a água hoje é utilizada em empreendimentos como a nova usina nuclear de Kudankulam, no sul do país, onde a água doce está escassa, tragada pelo reator e por todas as necessidades da instalação.
Ou nas minas. Como nas colinas ao norte de Orissa, no distrito de Khandadhar. Ali vivem os pauri buiya, um dos povos originários da Índia. Suas deusas tutelares, uma dupla de cachoeiras, resguardavam um maciço verde e ocre. A deusa que sobrevive, Khandadhar, há alguns anos se transformou em um córrego sem força.
Chando Nayak, um pauri buiya de 57 anos, diz a Opera Mundi que a atividade mineradora da região aumentou consideravelmente desde 2013. “[A mina] Saraikuda começou a tirar água da fonte da cachoeira”, explica Nayak. O bosque ao redor está secando e “o tigre não vem”. E a deusa? Desaparecerá também? “Vai para outro lugar, não se preocupe. E nós também, acredito, porque não se pode viver como antes, como meus avós. E nos caminhões da mina estão pagando pouco”. Menos de 3 dólares por dia de trabalho escavando minérios para ir até o trem e carregá-lo.
O que vai acontecer quando não houver mais água? Nem Al Alam Bareksh Baidya nem Chando Nayak sabem responder. Mas também não o sabem o governo ou as ONGs que denunciam a escassez ou a crise. Apenas, talvez, seja possível entender a análise mais recente sobre a água na Ásia feita por um grupo de pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), nos Estados Unidos: até 2050 o crescimento será impossível em países como a China, a Índia ou a Malásia nesse ritmo de consumo. Talvez até antes disso, caso a industrialização em marcha no sudeste asiático se acelere.