Uma disputa territorial que começou no século 19 é a responsável por uma recente escalada de tensão entre a Venezuela e a Guiana, que nas últimas semanas já envolveu ameaças dos Estados Unidos, exercícios militares na fronteira e a convocação de um referendo popular para reivindicar a soberania sobre a região.
Com 160 mil km², o território do Essequibo está localizado nos limites fronteiriços dos estados venezuelanos Bolívar e Delta Amacuro com o Rio Essequibo, possui cerca de 120 mil habitantes e baixa densidade demográfica, já que em sua maioria é formado por florestas. Para a Guiana, a região representa dois terços de seu território, mas para a Venezuela a zona faz parte de suas fronteiras e teria sido roubada pelo domínio britânico quando o país vizinho ainda era uma colônia do Reino Unido.
Apesar de o início das disputas pelo controle da região remontarem aos anos 1840, o caso mudou de patamar e ficou ainda mais complexo a partir de 2015, após a descoberta de enormes reservas marítimas de petróleo na costa da Guiana, em grande parte no mar do Essequibo.
A Guiana, que até então possuía uma tímida legislação petroleira, outorgou concessões de exploração dos poços à empresa estadunidense Exxon Mobil, que vem descobrindo novas fontes de petróleo na região a cada ano. As reservas são estimadas em 11 bilhões de barris e fizeram o PIB guianês crescer de maneira abrupta e inédita.
As operações, no entanto, desagradaram a Venezuela, que acusa a Guiana de violar acordos prévios ao conceder licenças de exploração petroleira a uma empresa estrangeira em uma zona que está em disputa. Ao Brasil de Fato, o advogado venezuelano Jesús David Rojas, coordenador do programa de pós-graduação da Escola Nacional de Magistratura da Venezuela, explica que a exploração unilateral de recursos em territórios não delimitados não está permitida pelo direito internacional.
“A Guiana outorgou concessões petroleiras em um mar não delimitado. Essas concessões não poderiam existir porque a região é parte do mar territorial da zona que está em disputa. O princípio do Direito Internacional diz que o mar é delimitado a partir da definição total das fronteiras terrestres, portanto se as fronteiras terrestres não estão definidas totalmente, como é possível que alguém outorgue concessões em um mar que não está delimitado?”, questionou.
A presença da empresa petroleira na região atraiu as atenções dos EUA, que passaram a realizar exercícios militares conjuntos com o Exército da Guiana que envolveram até mesmo uma visita da comandante do Comando Sul, Laura Richardson. No início do mês, ao tomar posse, a nova embaixadora estadunidense no país, Nicole Theriot, disse que Washington deve fortalecer as relações em matéria de defesa e segurança com o governo guianês.
“Isso virou um problema geopolítico”, diz Atilio Romero. Cientista político e professor da Universidade Central da Venezuela (UCV), o pesquisador afirma ao Brasil de Fato que a partir das descobertas petroleiras na região, a disputa pelo Essequibo sofreu uma mudança de caráter e ficou ainda mais grave e perigosa.
“A reivindicação era simplesmente territorial, mas agora há o petróleo. Então a negociação já não é somente entre a Guiana e a Venezuela, mas é entre os Estados Unidos, as petroleiras, que podem envolver vários países. Será preciso buscar um acordo geopolítico e petroleiro, e é aí onde está a situação complexa”, afirma.
Histórico do caso
Venezuela e Guiana se agarram a documentos e versões diferentes da história para embasarem seus argumentos, levantando discussões sobre fatos que ocorreram até mesmo quando ambos os países ainda eram colônias. Durante as guerras de independência na América Espanhola, as autoridades britânicas que então controlavam a Guiana ocuparam os territórios a oeste do Rio Essequibo, fato que só foi contestado pela Venezuela após a independência.
Anos de disputas deram origem ao chamado Laudo de Paris, resolução emitida em 1899 por um grupo independente de cinco juristas que decidiu que os domínios sobre o Essequibo eram britânicos. 50 anos depois, em 1949, a Venezuela alega que o laudo deveria ser anulado pois haveriam provas de um suposto conluio entre advogados do Reino Unido e um dos juízes que participou do processo.
No entanto, uma denúncia formal pedindo a anulação do Laudo de paris só foi apresentada por Caracas em 1962, processo que iniciou a elaboração e posterior assinatura dos chamados Acordos de Genebra, em 1966. No documento, assinado meses antes da independência da Guiana pelas três partes – venezuelana, britânica e guianesa – o Reino Unido reconhece a reclamação da Venezuela sobre o território e se compromete a negociar diretamente com o país na busca por uma solução.
Flickr/Nicolás Maduro
Venezuela acusa Guiana de "colonialismo" após país tentar barrar referendo pelo Essequibo
O prazo limite para um acordo definitivo sobre o Essequibo era de quatro anos, período que foi esgotado em 1970 sem uma resolução final e que culminou na assinatura do chamado Protocolo de Porto Espanha, no qual a Venezuela concordou em uma espécie de “trégua” de 12 anos nas reivindicações sobre o território.
Já em 1982, Caracas voltou a exigir controle sobre o Essequibo, sempre se apegando aos Acordos de Genebra. O governo da Guiana, por sua vez, alega que o Laudo de Paris ainda é válido e que, portanto, suas fronteiras estão delimitadas e incluem o território do Essequibo.
Negociações entre Caracas e Georgetown medidas pelo secretário-geral da ONU ocorrem desde os anos 1990, mas foi após as descobertas petroleiras de 2015 que o tema passou a ser tratado com mais ênfase pelos países. Em 2018, alegando a ausência de concordância das partes, o secretário das Nações Unidas, António Guterres, recomenda que o caso seja levado à Corte Internacional de Justiça (CIJ), ato que foi referendado pela Guiana e é contestado pela Venezuela até hoje, por não reconhecer a legitimidade do Tribunal em Haia sobre a questão.
Petróleo e CIJ
Operando desde 2008 na Guiana, a estadunidense Exxon Mobil hoje é dominante nos campos offshore da região e possui diversas concessões sobre reservas estimadas em 11 bilhões de barris de petróleo. Segundo previsões da empresa, a produção no país deve ultrapassar 1 milhão de barris por dia em 2027.
As atividades energéticas fizeram com que o PIB da Guiana crescesse mais de 62% em 2022 e, segundo projeções do FMI, deve crescer 38% neste ano, a maior cifra mundial. Com pretensões de aumentar sua capacidade de exploração petroleira, o governo guianês segue insistindo em uma solicitação para ampliar sua plataforma continental, o que fecharia a saída atlântica para a Venezuela.
As perfurações marítimas no território em disputa e o envio do caso à Corte Internacional são os pontos sensíveis que desagradaram a Venezuela. Para o advogado Jesús David Rojas, Caracas teria direitos sobre a receita proveniente das explorações da empresa nesse território, “como cobrar impostos em conjunto ou, até mesmo, taxar os bens que a Exxon Mobil ainda possui na Venezuela”.
O jurista ainda afirma que as controvérsias surgidas do Laudo de Paris e dos Acordos de Genebra devem ser consideradas pela CIJ, já que ambas não podem ser consideradas válidas ao mesmo tempo para se definir uma solução à disputa. “O conluio do Laudo de Paris anula, por efeito, todo tipo de ato que derivar dele. Por outro lado, a Guiana não pode reivindicar o Laudo e, ao mesmo tempo, dizer que assinou o Acordo de Genebra, porque ali se reconhece que existe uma disputa”, diz.
Referendo e conflito bélico
Para reafirmar suas reivindicações não apenas sobre o Essequibo, mas sobre a competência da CIJ e o envolvimento dos EUA na questão, a Venezuela decidiu convocar um referendo que está previsto para o dia 3 de dezembro e deve perguntar à população se ela apoia ou não as reclamações de Caracas.
As perguntas, que podem ser respondidas com as opções “sim” ou “não”, incluem o apoio aos Acordos de Genebra, o rechaço ao Laudo de Paris e à competência da CIJ e a criação de um novo estado venezuelano chamado Guayana Esequiba, que abarcaria todo o território em disputa.
Após o início da campanha para a votação, Caracas e Georgetown subiram o tom dos discursos e algumas declarações de representantes estadunidenses levantaram temores sobre uma possível escalada bélica na região. Do lado venezuelano, o envolvimento do Exército na campanha do referendo aumentou a temperatura política. Já o governo guianês autorizou exercícios militares conjuntos com tropas estadunidenses na região e diz que “o tempo para negociações com a Venezuela terminou”.
Ao tomar posse no início do mês, a nova embaixadora dos EUA na Guiana, Nicole Theriot, disse que Washington deve fortalecer as relações em matéria de defesa e segurança com o país sul-americano para lidar com “ameaças transversais”. As declarações foram condenadas por Caracas, que acusou o país vizinho de fomentar um conflito para proteger o interesse de empresas estrangeiras.
Analistas, no entanto, discordam sobre as possibilidades reais de um conflito. Para Atilio Romero, uma escalada bélica “não interessa à Exxon Mobil”. “Para eles, o cenário ideal seria ter que lidar apenas com o governo da Guiana. Se não for possível, então que seja um cenário onde haja um acordo para que a empresa possa levar seu petróleo sem problemas, porque no final o problema não é territorial, o problema é petroleiro”, defende.
Já Jesús David Rojas vê com preocupação as declarações de autoridades da Guiana e afirma que o melhor cenário seria a reabertura de negociações diretas entre Caracas e Georgetown. “O primeiro-ministro da Guiana disse recentemente que não teria que negociar com a Venezuela, mas com 160 mil km² em disputa, eu acho que a via saudável e pacífica é negociar, porque a outra via é a guerra”, diz.