Em adaptação de 'Dois irmãos' para TV, Luiz Fernando Carvalho transforma prosa de Milton Hatoum em poesia
Na Manaus da minissérie, o elemento central parece se consolidar na presença quase perene da água, com a cidade como uma espécie de Macondo que faz chover eternamente, como se tentasse lavar as mágoas e as lembranças dos personagens
É fácil reconhecer um trabalho do diretor Luiz Fernando Carvalho: basta bater o olho nas tomadas e na fotografia para saber que se trata de uma obra dele. Isso é estilo próprio e a marca de um competente diretor de cinema e televisão que conseguiu ganhar seu espaço. O mérito de criar uma identidade de trabalho rendeu mais um belo fruto: seu mais recente projeto é a adaptação do romance “Dois irmãos”, de Milton Hatoum, para a televisão.
A trama pode ser resumida ao conflito intenso e praticamente intrínseco entre os gêmeos Yaqub e Omar, mas o que se vê na obra de Hatoum vai muito além e Luiz Fernando Carvalho e a competente roteirista Maria Camargo captaram isso de forma singular. A narrativa gira em torno de uma família de libaneses em Manaus convivendo com as disputas cada vez mais intensas entre os gêmeos em uma cidade perdida no coração da floresta amazônica. A história é contada por Nael, filho da índia Domingas e empregada da casa, e vai se alternando no tempo e no espaço.
Não é a primeira vez que Carvalho dialogou com o universo de uma família libanesa. “Lavoura arcaica”, seu primeiro longa-metragem, estreou em 2001, baseado no romance homônimo de Raduan Nassar. Ali já havia um exímio cuidado com os detalhes, com as sonoridades e com os jogos de luz e sombra. O filme foi na contramão das produções mais realistas e urbanas da época, como “Cidade de Deus” e “Carandiru”, por exemplo. Esta também não é a primeira vez que Carvalho leva o universo literário para a televisão. Em 2008, o diretor enfrentou a tarefa de criar a minissérie “Capitu”, uma das melhores adaptações de um dos melhores romances de Machado de Assis. O aspecto soturno da maquiagem borrada de Dom Casmurro e a vida parcamente vivida dentro de um teatro velho deram à série a melancolia necessária. Tudo isso misturado à trilha meiga (e hipster) de Beirute enquanto Capitolina e Bento seguiam a trilha de giz e sofrimento deixada por eles mesmos.
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Sob os olhos de Luiz Fernando Carvalho, o elemento central no Cosme Velho parecia ser a vida shakespereana no palco: um grande teatro de ilusões. Já na Manaus de “Dois irmãos”, o elemento central parece se consolidar na presença quase perene da água. Talvez porque essa Amazônia urbana e decadente é o berço de uma das maiores bacias hidrográficas do mundo. Ou ainda porque Manaus é uma espécie de Macondo que faz chover eternamente, como se tentasse lavar as mágoas e as lembranças dos personagens. Ou ainda porque o anúncio de tragédia que traz a trama faz com que os personagens vertam em lágrimas os sentimentos mais profundos.
No primeiro episódio da série foram inúmeras as referências a isso. Seja na chuva lavando o rosto de Yaqub quando ele volta do Líbano depois de cinco anos de um exílio forçado; ou quando o barco levando Halim e Nael corta o rio ao meio, criando uma terceira margem narrativa imaginária; ou ainda nas lágrimas de Zana pela morte do pai e pela saudade do filho. As ruas de Manaus, os bondes e os mascates são refletidos nas poças de água tremidas pelas falhas da memória. Em uma das cenas, a câmera se agita debaixo d’água com os dois irmãos no colo de Zana, como se a rivalidade entre eles existisse desde o ventre.
Reprodução / TV Globo
Cena da minissérie "Dois irmãos", baseada no romance de Milton Hatoum e dirigida por Luis Fernando Carvalho
De todo modo, diz-se que não se toma banho duas vezes no mesmo rio. Tudo flui, o tempo segue e esse é outro elemento importante no romance e ganhou destaque na minissérie. “Dois irmãos” é uma trajetória familiar longa, que começa em 1914 e segue até meados da década de 1970. Ao contrário das grandes sagas televisivas, a série não está dividida em fases. Isso por conta da própria estrutura do texto em flashbacks que foi respeitada no roteiro. Essa mescla de passado, presente e futuro dá complexidade à trama e rompe a noção cronológica habitual dos fatos. Basta ver que no primeiro episódio já é possível visualizar praticamente todas as temporalidades presentes na história. Além disso, trata-se de um romance de memória, ou seja, narrado depois que toda a história já se desenvolveu, conduzida na série por uma voz pausada e melancólica de Irandhir Santos. Na adaptação de “Dois irmãos” feita para quadrinhos em 2015 por Fabio Moon e Gabriel Bá, a alternativa foi o uso do preto e branco para reforçar o caráter memorialístico. Já Luiz Fernando Carvalho optou pelo uso do sépia para ressaltar a coloração amarelada da memória como se fosse um papel fotográfico.
Um elemento interessante utilizado na minissérie foi colocar Halim, já mais velho, falando para a câmera. Ele narra como se estivesse olhando nos olhos do espectador. Trata-se de algo fundamental, pois no fim do episódio percebe-se que ele está, na verdade, narrando para Nael que, assim como no romance, aparece muito pouco, apesar de ser o narrador da história.
A saga envolve diversos atores representando os personagens do romance: Halim é vivido por Bruno Anacleto, Antonio Calloni e Antonio Fagundes; Zana por Gabriela Mustafá, Juliana Paes e Elaine Giardini; Yaqub por Lorenzo Rocha, Matheus Abreu e Cauã Reymond; e, por fim, Omar representado por Enrico Rocha e pelos mesmos Matheus Abreu e Cauã Reymond. O que poderia se tornar confuso diante da profusão de atores diferentes foi resolvido com esmero e simplicidade. Optou-se por uma descrição imagética dos personagens nas cenas. A narrativa em off segue e os personagens referentes à fala vão aparecendo aos poucos, conectando o nome à imagem. Um recurso interessante para viabilizar o vai-e-vem da memória que possivelmente se seguirá nos próximos episódios.
A trilha sonora é minuciosa e passa por diversos ritmos, inclusive pelas músicas libanesas que permearam a vida do casal Halim e Zana. Parte do primeiro episódio, assim como nos capítulos iniciais do romance, contou como ele se esmerou para conquistar o coração daquela libanesa cristã, cujo casamento feliz e fogoso duraria apenas até o nascimento dos gêmeos. Os filhos vão desarmar nossa rede, diz ele em certo momento. Uma cena exemplifica bem no que se transforma a relação de Halim e Zana. Quando Yaqub volta do Líbano, Zana corre para encontrá-lo ainda no avião. Ela corre e grita o nome do filho. Halim corre atrás dela gritando o nome da esposa. A relação apaixonada dos dois foi sobrepujada por essa afeição desmedida de Zana pelos filhos, especialmente por Omar, que pouco aparece no primeiro episódio. Omar, o gêmeo que nasceu depois de Yaqub, teve complicações no parto. A iminência de sua morte fez com que Zana despendesse ao longo de toda a sua vida uma atenção excessiva e essa foi uma das causas do desentendimento entre os irmãos.
O auge do primeiro episódio é a cena em que Omar corta o rosto de Yaqub com uma garrafa. A sequência se dá na casa da vizinha Estelita (vivida por uma quase irreconhecível Maria Fernanda Candido) que era uma espécie antiquário macabro cheio de cacarecos e que se transformou no palco de uma lembrança marcada na pele. O cinema improvisado na sala, junto às risadas histéricas, se misturou a uma trilha sonora tensa com imagens de bonecas e brinquedos sinistros. Isso tudo criou um clima vertiginoso da disputa entre os irmãos: se Omar havia ganhado o amor desmedido da mãe, não se conformou em perder o amor da vizinha Lívia para o irmão Yaqub. Orson Welles disse certa vez que o cinema não tem fronteiras nem limites e é um fluxo constante de sonho. No clima amornado de Manaus, o sonho das telas se transformou no pesadelo da família e causou a separação dos filhos por anos.
“Dois irmãos” é uma história de decadência. Sempre se tem a sensação de que algo grave vai acontecer. Tudo muda, todos se vão. A única coisa que permanece é a casa. Não sabendo nada acerca de sua paternidade, Nael mergulha em suas memórias para reconstruir a sua própria história, que é também a história daquela família, da casa e de uma cidade decadente no coração da floresta amazônica. A obra de Hatoum é primorosa. E Luiz Fernando Carvalho conseguiu transformar a prosa de Hatoum em poesia.
*Vera Ceccarello é doutoranda em Sociologia pela Unicamp. Trabalha com as áreas de Sociologia da Cultura e Pensamento Social Brasileiro.