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Mineração de ouro em Burkina Faso em 2013
Conflitos ao redor do mundo estão sendo travados por causa de recursos naturais ou estão sendo alimentados pelos lucros da exploração desses recursos. Estima-se que o Estado Islâmico, por exemplo, tenha faturado um milhão de dólares por dia [2,8 milhões de reais] com a venda de petróleo no fim do ano passado, o que o torna um dos mais ricos grupos extremistas da história. De maneira similar, o conflito na República Democrática do Congo (RDC) continuou por anos à medida que o Estado e outras forças políticas e militares lutavam pelo acesso à riqueza mineral do país.
Em ambos os casos, é claro, o primeiro impacto foi sobre a população civil. Contudo, a despeito das causas e consequências de longo prazo desta exploração de recursos naturais – isto é, a perpetuação da guerra e da violência –, os esforços jurídicos quase nunca se focam em identificar e processar os responsáveis por estes crimes.
Existe uma ferramenta jurídica para ser aplicada nestas circunstâncias: a tipificação do crime de guerra de pilhagem, comumente definido como roubo durante a guerra. No entanto, esta opção, embora tenha sido internacionalmente acordada há mais de um século, não é utilizada há décadas.
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“Parece muito fácil resolver esta questão, mas este crime de guerra especificamente tem sido muito pouco investigado”, diz Sasha Lezhnev, diretor associado de políticas do Enough Project, um grupo de militância de Washington focado na prevenção de atrocidades, ao MintPress News. “Apenas recentemente esta questão começou a aparecer nos radares das pessoas. Parece haver um interesse na ideia, mas falta conhecimento – várias pessoas envolvidas na criação de novas políticas nos disseram que não teriam a capacidade institucional de fazer isso”.
Especialistas defendem que abrir processos por pilhagem de recursos naturais em tempos de guerra poderia ajudar a mitigar o sentimento de impunidade com relação a esses crimes. Os processos também poderiam ajudar a remover pessoas que se encontram no centro de redes criminosas que usam civis para explorar recursos utilizados para financiar a violência.
Um relatório do Enough Project sugere que a impunidade não apenas leva a mais exploração de recursos, mas também a outros crimes que podem violar mais imediatamente os direitos humanos e civis. Segundo o relatório, “a pilhagem continua majoritariamente sem punição, e a impunidade para alguns crimes graves gera impunidade para outros crimes. É importante processar a pilhagem porque ela está relacionada a crimes violentos como assassinatos, estupros e trabalhos forçados. Também forneceria contexto e evidências para casos mais bem-sucedidos relacionados a outros crimes de guerra”.
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Tradicionalmente, crimes violentos constituíam o foco do principal mecanismo da comunidade internacional ao lidar com crimes de guerra, o Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda. O TPI pode, de fato, instaurar processos por pilhagem. No entanto, ele hoje sofre pela falta de conhecimento sobre a investigação da exploração de recursos naturais.
Embora o TPI tenha tido um departamento de crimes financeiros por vários anos, ele foi fechado. O Enough Project diz que isso se deve à “falta de eficácia” do departamento. O grupo pede hoje sua reabertura, enxergando-o como etapa crítica no fortalecimento dos processos por pilhagem. “Acreditamos que é importante que o promotor-chefe [do TPI] reative a unidade de crimes financeiros. Isto ajudaria muito a missão do tribunal, e contribuiria também em casos que já estão sendo julgados”, diz Lezhnev.
Ele aponta julgamentos em andamento no TPI contra Bosco Ntaganda, ex-líder de milícia congolês acusado pelo alistamento de crianças-soldado, assim como o ugandense Dominic Ongwen, comandante do LRA (Exército de Resistência do Senhor). Além dos demais crimes de guerra, ambos poderiam ser processados por pilhagem.
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Wikimedia Commons
Audiência no Tribunal Penal Internacional em 2009
“Está registrado que, durante muitos anos, Ntaganda geriu o tráfico de 'minerais de sangue' e obteve altos lucros do comércio de ouro e outros minérios”, diz Lezhnev. “Mas é necessário ter os especialistas certos para conduzir essas investigações”. O LRA também financia suas operações na República Centro-Africana em parte através da caça de elefantes e da venda de marfim no mercado ilegal.
Crimes financeiros são o tipo mais difícil de infração de se investigar e provar. Essa dificuldade cresceu ao longo da última década, à medida que o sistema financeiro se tornou mais globalizado e complexo. Embora a comunidade internacional esteja no processo de criação de novas políticas e mecanismos voltados para a interrupção das rotas de capital ilícito, o esforço ainda permanece incompleto.
As barreiras legais para a comprovação de pilhagem também são onerosas. Sob definições acordadas pela primeira vez no início do século 20, os promotores teriam de provar que um réu se apossou de terras específicas sem o consentimento do proprietário, e que o réu o fez especificamente tendo em vista um contexto maior de guerra, que facilitaria o roubo.
Em muitos países ricos em recursos naturais, a questão de titularidade e posse imobiliária é complexa. Tentativas de processos poderiam ser dificultadas pelo fato de que o governo frequentemente detém algum tipo de propriedade sobre recursos naturais em muitos países – e os acusados de pilhagem são frequentemente membros das forças armadas estatais.
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“Com base no trabalho que temos feito, sabemos que não é fácil conseguir as evidências necessárias para abrir um processo”, diz Zorka Milin, conselheira jurídica sênior da Global Witness, grupo que trabalha em questões relativas à governança de recursos naturais. “Ainda assim, isto não quer dizer que não seja importante ou que devemos desistir da ideia. Mas não se trata unicamente de um desafio jurídico – é também um desafio político, já que é preciso obter vontade política significativa para levar adiante estes processos”.
O crime de pilhagem em tempos de guerra tem sido usado em fóruns internacionais de maneira limitada. Talvez o caso mais famoso seja o julgamento de Nuremberg, após a Segunda Guerra Mundial. Neste caso e em exemplos semelhantes, como nos processos de Ruanda e da ex-Iugoslávia, as alegações se focaram mais no roubo de propriedade pessoal.
Mais recentemente, o único modelo parcial pode ser o julgamento do TPI do ex-presidente liberiano Charles Taylor, acusado de crimes contra a humanidade em Serra Leoa. Embora Taylor não tenha sido acusado de pilhagem, a mineração e a venda dos “diamantes de sangue” durante o conflito foi muito discutida no julgamento.
“Territórios ricos em diamantes foram frequentemente o campo de batalha onde a guerra civil ocorreu”, observa o relatório do Enough Project. “Civis residentes nestes territórios se tornaram escudos humanos, escravas sexuais, crianças-soldado e vítimas da violência”. O próprio Taylor disse que o conflito em Serra Leoa foi uma “guerra por diamantes”, afirma o relatório.
“Até o momento, o TPI se concentrou nos crimes violentos, o que é compreensível – eles precisam estabelecer de alguma maneira o foco em crimes internacionais”, disse Milin, da Global Witness. “No entanto, particularmente em casos de guerras relacionadas à posse de recursos, é necessário chegar à causa principal do conflito, e por isso é importante dar atenção ao tema”.
Tradução: Henrique Mendes
Matéria original publicada no site Mint Press News, que se dedica a questões de justiça social nos Estados Unidos.