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Cicilsta em Nova York: cidade foi considerada a melhor nos EUA onde andar de bicicleta, devido aos centenas de quilômetros de ciclovias e ao compromisso a longo prazo com o transporte em duas rodas
Nos Estados Unidos, quem esperava ações do governo federal no enfrentamento de questões como pobreza, mudanças climáticas e imigração está tendo uma década decepcionante. O domínio dos grandes financiadores de campanhas nas eleições, as obstruções por parte do Tea Party e a negação das mudanças climáticas praticamente paralisaram Washington. Mas uma história animadora está se revelando: as cidades estão tomando a iniciativa.
As mudanças climáticas são um exemplo. As cidades já estão vivenciando os danos causados por um clima cada vez mais caótico. Muitas estão situadas em áreas costeiras, onde a elevação do nível do mar conjugada a grandes tempestades provoca inundações e erosão da costa. Outras enfrentam prolongada escassez de água em razão da diminuição das chuvas e redução da área nevada, além de também estarem sujeitas ao efeito das ilhas de calor urbanas que podem elevar temperaturas a níveis letais.
Enquanto o Congresso dos EUA debate se as mudanças climáticas são uma conspiração da esquerda, a cidade de Houston, no Texas, está gastando US$ 200 milhões para restaurar ecossistemas de áreas pantanosas, antecipando-se às cada vez mais frequentes inundações. O projeto Bayou Greenways vai absorver e limpar água de enchentes ao mesmo tempo em que criará espaço para trilhas e recreação ao ar livre.
“A melhor defesa de Houston contra eventos climáticos extremos e desastres naturais está no esforço local para tirar proveito de seus córregos, mangues e pântanos”, disse a prefeita de Houston, Annise Parker, em comunicado à imprensa.
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Em Filadélfia, no estado da Pensilvânia, se você olha para cima enquanto espera o ônibus, poderá descobrir que está parado sob um telhado vivo. A cidade está lidando com o excesso de água da chuva por meio do estímulo a jardins em telhados e terraços e ruas com boa absorção, que permitem que a água seja absorvida pelo solo.
Considerando a ameaça representada pelas mudanças climáticas, seriam de se esperar medidas ambiciosas em todo o mundo para reduzir a emissão de gases do efeito estufa. Mas, nos EUA, as cidades estão tomando a dianteira com ações para reduzir impactos climáticos locais com ou sem o apoio do governo federal. De Nova York a Seattle, as cidades estão adotando padrões eficientes de construção, cobrando impostos sobre a emissão de carbono, optando por iluminação pública com base em eficiência energética, promovendo alimentos locais e financiando a conversão para energia solar em edificações de grande dimensão.
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Houston, Texas: cidade tem buscado se antecipar a eventos climáticos extremos cuidando de ecossistemas de áreas pantanosas, as mais afetadas em caso de enchente
As cidades são responsáveis por uma nova explosão no uso de bicicletas, não só na ambientalista Costa Oeste, mas também em velhos centros industriais. Em setembro, a revista norte-americana Bycicling apontou Nova York como cidade número 1 nos EUA para se andar de bicicleta, destacando suas centenas de quilômetros de faixas exclusivas, ambiciosos programas de compartilhamento de bicicletas e o compromisso de longo prazo com o ciclismo. “Mais um milhão de pessoas se mudará para Nova York até 2030, e simplesmente não haverá mais espaço para carros”, disse Janette Sadik-Khan, do Departamento de Transporte da cidade, em declaração à Bicycling.
Chicago, em segundo lugar no ranking da revista, está determinada a atingir sua meta de criar 160 quilômetros de faixas protegidas para bicicletas até 2015, e em breve terá o maior programa do país de compartilhamento de bicicletas.
Estes desdobramentos se devem em parte à visão das autoridades municipais, incluindo as que buscam meios de baixo custo para atrair moradores jovens e empreendedores.
Mas as cidades estão ficando mais amigáveis para ciclistas em grande parte por causa da contínua pressão de ativistas. Nos últimos 20 anos as bicicletadas, passeios de bicicleta coletivos, têm tomado as ruas de mais de 300 cidades em todo o mundo, com grandes grupos pedalando juntos e reivindicando o direito de um percurso seguro.
As soluções urbanas não são apenas caseiras. Cada vez mais as cidades estão compartilhando suas melhores inovações para o clima. Em setembro, os prefeitos de Filadélfia, Los Angeles e Houston anunciaram a Agenda Nacional de Ação dos Prefeitos para as Mudanças Climáticas. A iniciativa será encaminhada em conjunto com outros colaboradores urbanos, incluindo o Congresso de Prefeitos dos EUA, a Rede C40 – Grupo de Grandes Cidades para Liderança Climática e a Rede Urbana de Diretores de Sustentabilidade.
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As cidades estão liderando também em outras áreas onde o governo federal demora a agir, como a imigração. Los Angeles, San Francisco, New Haven e Nova York estão emitindo carteiras de identidade para moradores sem documentos, permitindo que eles abram contas bancárias, assinem contratos de locação e tenham acesso a serviços da cidade.
Em questões de pobreza e desigualdade, as cidades têm um histórico misto. Algumas negligenciam os bairros mais pobres e de minorias ou destinam projetos poluidores e rodovias barulhentas para estas áreas. Outras promovem políticas que deslocam os residentes mais vulneráveis, fazendo com que a terra mais visada fique disponível para os ricos e as pessoas com melhores conexões. Algumas cidades até chegam a criminalizar os sem-teto.
Mas em muitas cidades dos EUA movimentos populares fortes estão elegendo líderes com uma conexão maior com a população mais pobre e de classe média.
A cidade de Nova York, que tem um dos maiores índices de desigualdade no país, é um exemplo. O 1% de nova-iorquinos no topo em termos de receita ficou com 32,3% da renda pessoal total da cidade em 2009. Os 50% mais pobres ficaram com apenas 9,9% da renda no mesmo ano.
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Entidades como o Partido das Famílias Trabalhadoras passaram anos construindo uma base de poder popular, e seu trabalho foi recompensado com a eleição do prefeito Bill de Blasio em novembro de 2013. Hoje, de Blasio está trabalhando para aumentar o salário mínimo e exigindo que as construtoras ofereçam moradias a preços acessíveis. E a meta de acesso universal à pré-escola gratuita fez com que milhares de novas escolas de educação infantil fossem abertas este ano.
Seattle está liderando o país ao elevar o salário mínimo para US$ 15 por hora, depois de uma bem-sucedida iniciativa comunitária em Sea-Tac, uma cidade próxima, e um esforço de um conselho municipal que se concentrou em estabelecer um salário mínimo maior. Movimentos populares por todo o país estão pressionando por melhores salários e direitos humanos para os trabalhadores pobres.
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O que faz com que as cidades possam seguir adiante enquanto a nação como um todo está estagnada?
Benjamin Barber, cientista político e autor de “If Mayors Ruled the World” (“Se os Prefeitos Administrassem o Mundo”, em tradução livre), tem muito a dizer sobre o que faz com que líderes urbanos sejam eficazes na solução de problemas.
Dirigentes de cidades não se podem dar ao luxo de serem ideólogos, acredita Barber. “O trabalho é coletar o lixo, manter os hospitais funcionando, garantir serviços de segurança e combate a incêndios e também assegurar que a polícia e os professores trabalhem direito.”
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Filadélfia: cidade tem estimulado a criação de jardins em telhados e terraços para aproveitar o excesso de água da chuva
Este pragmatismo requer civilidade. “Prefeitos simplesmente não podem negociar de modo intolerante”, disse ele. “Um empresário como Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova York, tem de lidar com os sindicatos e um progressista como de Blasio tem de lidar com empresas e empreiteiras.”
Talvez o foco em fazer com que as coisas funcionem explique por que aproximadamente dois terços dos americanos sondados pelo Pew Research Center têm uma visão favorável de seu governo local, num momento em que apenas 28% aprovam o governo federal.
Além do pragmatismo, as cidades têm a vantagem do multiculturalismo e a centelha da inovação que este aspecto traz, diz Barber. “Cidades são pontos de interseção, comunicação e compartilhamento. E cidades sempre têm – parafraseando Whitman – multidões contidas.”
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A ideia de nação, por sua vez, é mais recente, mais competitiva e mais orientada para a independência do que para a interdependência. “Os últimos 400 anos de Estados-nação comandando o mundo foram muito ruins, com guerras, genocídios, rivalidades, e, como consequência, muito pouca justiça social”, disse Barber. Para o cientista político, as cidades estão solucionando problemas enquanto Estados-nação estão fracassando. Por isso, é hora de colocar as cidades no comando. Do mundo inteiro.
Em seu livro, Barber esboça um plano para um Parlamento global de prefeitos, e ele agora está trabalhando com autoridades municipais para tornar a ideia realidade.
As cidades poderiam entrar em acordo sobre um salário mínimo universal, por exemplo. Esta iniciativa poderia remover os estímulos que levam empresas a se mudarem para regiões de baixos salários. Regiões metropolitanas são onde acontece a maior parte da atividade econômica, sustenta Barber. Portanto, se um número suficiente de cidades concordar em um salário mínimo único, as empresas terão de pagá-lo, contribuindo assim para aliviar a pobreza e a desigualdade.
Um Parlamento global de cidades seria “um meio de regular a economia global, enfrentar as mudanças climáticas, lidar com a imigração e o comércio mundial”, acredita Barber.
A ideia tem cativado líderes urbanos de vários países. Em setembro, prefeitos e urbanistas se reuniram em Amsterdã. Se tudo sair como esperado, afirma Barber, 600 prefeitos devem se unir a ele em Londres em setembro de 2015 para lançar um Parlamento-piloto. “Mudar o foco dos Estados para as cidades é um novo fundamento para a democracia”, acredita. “E uma nova sensação de que talvez possamos, afinal, seguir na direção de um mundo mais justo e sustentável.”
Tradução: Jessica Grant
Matéria original publicada na revista norte-americana YES! Magazine.