A “transformação do mercado” da WWF acaba privilegiando os grandes agricultores e deixando de lado os pequenos
Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #04: Comissão da Verdade
Leia as outras matérias da edição nº 4 da Revista Samuel
Imagine um supernegócio. A indústria mundial de alimentos orgânicos concorda em apoiar o agronegócio no desmatamento de florestas tropicais para o uso na agricultura. Em troca, o agronegócio se compromete a cultivar a terra agora desflorestada com métodos orgânicos, e a indústria orgânica encoraja seus apoiadores a comprarem a madeira e a comida do recém-concebido rótulo “Extra Tropical”.
Certamente haveria protestos internacionais. No entanto, praticamente despercebido, um dos maiores grupos de conservação de vida selvagem concordou com uma situação parecida, só que ao contrário. Liderados pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF, World Wide Fund for Nature, ainda conhecido como World Wildlife Fund, Fundo Mundial para Animais Selvagens), várias das grandes organizações de conservação sem fins lucrativos, incluindo a Conservation International e a The Nature Conservancy, já fi zeram barganhas com o agronegócio internacional. Em troca de vagas promessas de proteção ao habitat, sustentabilidade e justiça social, estes grupos de conservação estão oferecendo rotulagem verde às commodities.
Apoie a imprensa independente e alternativa. Assine a Revista Samuel.
As grandes entidades de conservação sem fi ns lucrativos não veem o assunto deste jeito, obviamente. De acordo com Jason Clay, vice-presidente de Transformação do Mercado da WWF, a nova estratégia de conservação surgiu de duas constatações A primeira era de que a agricultura e a produção de alimentos estão no centro de quase toda preocupação ambiental. De questões tão diversas como a destruição do habitat até o uso em excesso da água, a agricultura e produção de alimentos são apontados como os principais culpados.
Para citar um exemplo: de 80% a 90% de toda a água doce extraída mundialmente vai para a agricultura. Este aspecto foi enfatizado numa análise recente publicada na revista científica Nature. O autor principal do estudo foi o professor Jonathan Foley. Foley não é somente diretor do Instituto do Meio Ambiente sediado na Universidade de Minnesota, mas também um membro do conselho científico da Nature Conservancy. A segunda constatação crucial para a WWF era de que os destruidores de florestas normalmente não são camponeses com machados, mas agroindústrias nacionais e internacionais com escavadeiras, que desmatam dezenas de milhares de acres por vez. O desmatamento nesta escala é um desastre ecológico, mas, como assinala Claire Robinson, da Earth Open Source, é também “extremamente destrutivo socialmente”, pois os camponeses são expulsos de suas terras e suas comunidades são destruídas.
De acordo com o Fórum Permanente da ONU sobre Questões Indígenas, 60 milhões de pessoas em todo o mundo estão sob o risco de perderem suas terras e meios de subsistência por conta de plantações de palma. Por volta de 2004, a WWF reconhecia os verdadeiros impactos da agricultura industrial. Mas ao invés de informar seus membros e iniciar protestos e boicotes, eles embarcaram numa estratégia de parceria que chamaram de “transformação do mercado”.
Produtos certificados
Com a WWF abrindo caminho, as entidades de conservação sem fins lucrativos têm negociado esquemas de aprovação para o cultivo de commodities como formas “Responsáveis” e “Sustentáveis”. De acordo com Jason Clay, da WWF, o plano é fazer com que as agroindústrias se comprometam a reduzir em 70% a 80% os casos mais graves de impactos ambientais negativos no cultivo de commodities. Se um número suficiente de produtores e fornecedores se comprometerem, florestas tropicais da Indonésia ou o cerrado brasileiro serão salvos.
A ambição da estratégia de transformação do mercado é de grande escala. Há esquemas para o óleo de palma (com a participação de seus membros na RSPO, a associação internacional para óleo de palma sustentável), a soja (na RTRS, a associação internacional para soja responsável), os biocombustíveis (na Associação Internacional para Biocombustíveis Sustentáveis), o açúcar (na Better Sugarcane Initiative, a Bonsucro) e também para algodão, camarão, cacau e salmão.
São mercados que, anualmente, valem bilhões de dólares, e a tendência é que sejam dominados por esses novos produtos certifi cados como “Responsáveis” e “Sustentáveis”. O papel da WWF e de outras organizações é oferecer o seu conhecimento para negociar critérios, dar credibilidade e facilitar a entrada de produtos certificados nos mercados internacionais.
A recompensa para produtores e supermercados é que o público passa a comprar os produtos com o certificado de “Sustentável” e “Responsável”. Para as entidades de conservação, estes esquemas implicam riscos, um dos quais é a culpa por simples associação de nomes. O esquema da Associação Internacional para a Soja Responsável (RTRS) é um exemplo típico destes esquemas de certificação. Seu quadro de membros inclui participantes da WWF, Conservation International, Fauna and Flora International, The Nature Conservancy e outras destacadas entidades sem fins lucrativos. Entre os membros corporativos estão algumas empresas internacionalmente difamadas da cadeia alimentar industrial. Desde janeiro de 2012, há 102 membros, entre eles, Monsanto, Cargill, ADM, Nestlé, a multinacional de combustíveis BP e o supermercado britânico ASDA.
Em público, as entidades de conservação sem fins lucrativos justificam a “transformação do mercado” como uma cooperação. Eles querem trabalhar com os outros, não contra eles. Contudo, escolheram trabalhar preferencialmente com corporações poderosas e ricas. Por que não cooperar, ao invés disto, com movimentos de pequenos fazendeiros, grupos indígenas e critérios já bem sucedidos, como os de comércio justo, de orgânicos e não-geneticamente modificados? Estas são causas que poderiam contar com a ajuda de grandes organizações internacionais.
Marcas éticas
Uma suposta explicação para este entusiasmo pela “transformação do mercado” pode ser as recompensas
financeiras disponíveis. De acordo com Nina Holland, do Observatório Corporativo Europeu (Corporate Europe Observatory), a certificação é, “agora, o negócio principal” para a WWF. De fato, a WWF e a holandesa Solidaridad estão atualmente recebendo milhões de euros do governo holandês (sob seu Plano de Ação Comercial Sustentável) para apoiar estes esquemas. De acordo com o plano, 67 milhões (R$ 168.846.700) já foram entregues e quantias similares estão prometidas.
Os esquemas de certificação de commodities como RTRS podem ser vistos como uma incapacidade de liderança da conservação mundial em trabalhar construtivamente com as pessoas comuns que vivem dentro e ao redor das áreas selvagens do mundo. Ou podem ser vistas como desprezo pelo comércio justo e selos orgânicos, ou como uma oportunidade perdida de informar e estimular membros e potenciais membros contra as verdadeiras causas da destruição dos habitats.
Ou até mesmo como um cínico esquema lucrativo. Estas são explicações plausíveis do entusiasmo pelos esquemas de certificações e provavelmente cada uma desempenha um papel diferente. Nenhuma, porém, explica por que as entidades de preservação não-governamentais assinariam esquemas cujos critérios e credibilidade são tão baixos.
O contexto destes esquemas está baseado em experiências recentes. Alternativas positivas para a agricultura industrial, como o comércio justo, agricultura orgânica, agroecologia e o Sistema de Arroz Intensificado (System of Rice Intensification) têm mostrado que podem alimentar o planeta sem destruí-lo, até mesmo para uma população maior. Consequentemente, existe agora um consenso internacional substancial da opinião informada de que a agricultura industrial é a principal causa da atual crise ambiental e o principal obstáculo para a erradicação da fome.
Este consenso é uma das várias raízes do movimento alimentar internacional. Com uma sinergia poderosa entre sustentabilidade, justiça social, qualidade alimentar e preocupações ambientais, o movimento alimentar é uma clara ameaça à existência a longo prazo do sistema alimentar industrial. Aliás, é por isso que grandes multinacionais estão comprando marcas éticas. Nestas circunstâncias, fugir da culpa pela devastação ambiental na Amazônia, Ásia e em outros lugares, prejudicar orgânicos e outros esquemas de certificação genuínos e dividir o movimento ambiental deve ser um sonho dos membros do sistema alimentar industrial. Um cínico poderia supor que a indústria alimentar não poderia ter desenvolvido um plano melhor se o tivesse planejado.
Conflitos de interesse
Para se proteger contra tais possibilidades, organizações sem fins lucrativos são obrigadas a ter conselhos diretores cuja principal função legal é defender a missão da entidade e proteger seu bom nome. Na prática, para os grupos de conservação isto significa fiscalizar potenciais conflitos financeiros e impedir a organização de emprestar seu nome para a rotulagem ambiental.
Então, quem são as pessoas que defendem a missão das organizações mundiais de conservação sem fins lucrativos? A WWF dos EUA ostenta (literalmente) que o seu novo vice-presidente foi o último CEO da Coca-Cola Inc. (participante da Bonsucro) e que um outro membro do conselho é Charles O. Holliday Jr., atual presidente do conselho do Bank of America, que era anteriormente o CEO da DuPont (proprietária da Pioneer Hi-Bred International, uma participante importante no setor dos geneticamente modificados).
O presidente do conselho executivo da Conservation International é Robert Walton, também presidente do conselho da WalMart (que agora vende alimentos de “origem sustentável”). Os conselhos da WWF e da Conservation International têm mais do que um punhado de membros com as carreiras relacionadas à conservação. Mas eles são fortemente superados em número pelos representantes empresariais. No conselho da Conservation International, por exemplo, há gente da GAP, Intel, Northrop Grumman, JP Morgan, Starbucks e UPS, entre outros.
Dos 22 membros do conselho da diretoria da The Nature Conservancy, apenas dois têm um passado ligado à organização de conservação: o professor Gretchen Daly e Cristian Samper, diretor do Museu de História Natural dos Estados Unidos. Um outro membro chega a mencionar em seu currículo, entre outras qualificações, um interesse no assunto. Os membros restantes são como Shona Brown, que é funcionária do Google e parte do conselho da Pepsico; Meg Whitman, a atual presidente e CEO da Hewlett-Packard; ou A. Muneer Satter, diretor executivo da Goldman Sachs. A estratégia da “transformação do mercado” foi desenvolvida com o apoio destes conselhos ou contra suas vontades? Esta última opção é pouco provável. A principal pergunta torna-se: estes conselhos de fato instigaram a “transformação do mercado”? Ela veio dos seus líderes?
Deixando de lado se conservação foi ou não em qualquer momento a intenção verdadeira, parece altamente improvável que o WWF e seus grupos companheiros de preservação irão alavancar uma transformação positiva do sistema alimentar ao conceder padrões de “Sustentável” e “Responsável” ao agronegócio. Em vez disso, parece muito mais provável que, ao minar os critérios existentes e oferecer seus próprios padrões inúteis, a destruição dos habitats e a miséria humana somente irão crescer.
A “transformação do mercado”, conforme prevista pela WWF, todavia, poderia ter dado certo. No entanto, a WWF deixou de considerar que os esquemas de certificação bem sucedidos começam de baixo para cima. Os orgânicos e o comércio justo começaram com uma grande base de produtores comprometidos e determinados a formar um sistema alimentar melhor. Os produtores se inscreveram voluntariamente para cumprir critérios elevados e requerimentos pontuais porque acreditavam neles.
A única boa notícia nessa história é que ela contradiz fundamentalmente os argumentos derrotistas da WWF. Estratégias ativistas antiquadas, como envergonhar a má prática, boicotar produtos e encorajar alternativas, funcionam, sim. A oportunidade de mercado atualmente explorada pela WWF e companhia resulta do sucesso destas estratégias, não de suas falhas. As corporações multinacionais realmente temem ver os ativistas, as entidades não governamentais, os consumidores informados e os pequenos produtores trabalhando juntos.
Tradução por Jessica Grant
* Texto publicado originalmente na revista impressa bimestral Dollars & Sense
NULL
NULL