Passados dez anos da morte de Augusto José Ramón Pinochet Ugarte, o valor real da fortuna que conseguiu acumular e ocultar no exterior continua um mistério. O caso Riggs, que investigou a origem dessa fortuna, foi encerrado em maio de 2015 com uma avaliação que deve ser corroborada pela Corte Suprema: o patrimônio acumulado pelo ditador corresponde a US$ 21,3 milhões, dos quais US$17,9 milhões foram obtidos irregularmente.
No entanto, essa é apenas a “verdade judicial”. Além dos indícios que apontam a participação de Pinochet em comissões de compra e venda de armas e que nunca foram devidamente investigados, há outro ponto nebuloso que contradiz o valor oficial da fortuna.
O Ciper investigou o vultoso patrimônio imobiliário adquirido ilicitamente por Pinochet e herdado por sua família. Descobriu que equivale atualmente a cerca de US$ 28 milhões, ou 18,9 bilhões de pesos chilenos. Por trás de um emaranhado de transações e empresas, aparecem novos personagens e valores que surpreendem.
A cifra corresponde à soma dos valores de 26 propriedades adquiridas com fundos cuja origem está em parte nos “gastos reservados” de que se apropriou Pinochet como chefe de Estado e comandante em chefe do Exército. Todas essas propriedades continuam registradas em nome do ditador, de empresas que criou em paraísos fiscais ou de alguns de seus familiares próximos.
E não para por aí: o cálculo da fortuna que Pinochet deixou a seus herdeiros deveria considerar o produto da venda de nove imóveis rastreados pelo Ciper. Estes, alienados por sua família, foram adquiridos com fundos fiscais desviados (“gastos reservados”) ou sob suspeita de provir de comissões por compra e venda de armas das quais participou o ditador.
Os registros analisados pelo Ciper em diferentes cartórios de registro de imóveis indicam que a venda dessas nove propriedades resulta num total nominal de 2,1 bilhões de pesos, cifra que equivale a cerca de US$ 3,1 milhões. Essa quantia atualizada atinge a casa dos US$ 4 milhões. Apenas contabilizando os valores imobiliários corrigidos, a fortuna se amplia.
O escândalo vai além, pois ainda é preciso agregar ao montante a parte que ficou com a viúva do general, Lucía Hiriart, dos bens que o Estado cedeu à Cema Chile – instituição de atenção à mulher chilena, dirigida por Hiriart durante o regime militar. A Cema vendeu parte desse patrimônio por pelo menos US$ 9,3 milhões.
Lucía Hiriart, de 93 anos, foi intimada a depor no processo que investiga os bens da Cema dos quais se apropriou como sua única presidente desde 1973. À venda de imóveis cujos valores foram parar em destinos desconhecidos, agregam-se agora outras quantias da Cema entregues a Hiriart para cobrir os gastos de Pinochet em Londres, onde o ditador foi preso em 1998.
A fortuna dos Pinochet Hiriart não é composta unicamente por imóveis. Também há mais de US$ 5 milhões em depósitos e promissórias do Banco do Chile, Banco do Estado e BankBoston, embargados pela Justiça chilena. Se a decisão do caso Riggs – que já entrou em sua reta final – for favorável à família do ditador, esse dinheiro poderá voltar às suas mãos.
A sentença do caso Riggs foi dada em maio de 2015 pelo ministro Manuel Antonio Valderrama, que condenou seis oficiais aposentados por desvio de fundos (desviar “gastos reservados” para o uso pessoal de Pinochet) e determinou a entrega ao Fisco de 24 propriedades, três veículos e dos já mencionados US$ 5 milhões. A decisão está sendo revisada pela Corte de Apelações, onde, segundo apurou o Ciper, já se encontra em fase de acordo.
Além disso, a investigação judicial concluiu que os rendimentos totais de Pinochet entre 1973 e 2003 somaram mais de US$ 21,3 milhões e que 84% dessa cifra – US$ 17,9 milhões – não eram declarados. Dessa maneira, seu patrimônio legal alcança os US$ 3,4 milhões, que corresponde à soma de todos os rendimentos do general (US$ 1,4 milhão em cifras nominais) e dos eventuais lucros que este último montante pode lhe ter gerado (calculado em cerca de US$ 2 milhões).
A tarefa de descobrir o volume total da fortuna que ficou à disposição dos herdeiros de Augusto Pinochet esbarra em um grande obstáculo: entre todos os recursos que circularam pelas contas e empresas do general, a investigação judicial ainda não encontrou nem sinal de US$ 5,4 milhões.
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Lucía Hiriart e Augusto Pinochet
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O mistério do fundo em Melipilla
Entre as operações imobiliárias obscuras e desconhecidas realizadas por Pinochet, está a compra e venda de um enorme terreno localizado em Las Arañas, em San Pedro de Melipilla, na região metropolitana da capital, Santiago. O terreno Lincoyán, de 150 hectares, foi adquirido em 1989 por seu filho, Augusto Pinochet Hiriart. As escrituras indicam que o herdeiro do ditador teria pago por ele 37 milhões de pesos à vista.
Embora Augusto Pinochet Hiriart tenha declarado que o dinheiro da compra era proveniente de uma de suas contas nos Estados Unidos, o ex-auditor do Exército Juan Romero assegurou, durante o processo do caso Riggs, que na verdade o terreno teria sido adquirido por seu pai. Em uma de suas confusas declarações, o próprio Pinochet Ugarte disse que ele mesmo o havia comprado e, com o valor da venda, adquirido o sítio Los Boldos, onde hoje estão as suas cinzas.
Como o imóvel tinha problemas com a hipoteca, Pinochet recorreu ao então diretor-geral do Banco del Estado e pediu a Juan Romero que criasse uma empresa de fachada. Em 1990, a Sociedad Agrícola Santa Gemita foi registrada pelo coronel de Inteligência do Exército Yosip Uros Domic Bezic, o advogado Gastón Navarrete Morales e o analista de sistemas Raúl Francisco Rivas Pinto. Estes eram apenas laranjas, pois seu verdadeiro dono era Pinochet.
Romero declarou que outras pessoas de confiança do ditador também participaram da criação da Santa Gemita: Hernán Novoa Carvajal, Osvaldo Hiriart e seu neto, Hernán García Pinochet, que era o destinatário real do terreno e assumiu o cargo de diretor-geral na empresa de fachada.
A Santa Gemita comprou o terreno em Melipilla em janeiro de 1991 por 30 milhões de pesos, segundo a escritura. Foi o mesmo Juan Romero quem esclareceu que o valor era apenas nominal, pois não houve pagamento real. Em dezembro de 1991, a empresa vendeu a fazenda Lincoyán para Inversiones Fernández Limitada por 71,5 milhões de pesos.
Os 26 imóveis obtidos com recursos sob investigação foram avaliados, a pedido do Ciper, por um dos mais famosos escritórios imobiliários do Chile, cujos profissionais pediram que suas identidades fossem preservadas. A avaliação se deu por meio de um software em que se inserem os valores fiscais das propriedades e que considera diversos fatores de mercado, especialmente as vendas em regiões vizinhas.
Dessas 26 propriedades, 23 encontram-se embargadas pelo caso Riggs porque ainda estão em nome do general e de duas empresas – Belview e Abanda – criadas por ele e cujas matrizes se constituíram em paraísos fiscais.
Hoje, dez anos depois da morte de Pinochet e doze da descoberta de suas contas ocultas, o valor dos 23 imóveis embargados atinge a casa dos US$ 7,3 milhões. Nessa soma, Ciper não incluiu um imóvel na comuna de Lago Ranco, na região de Los Ríos, embora também esteja na folha dos bens embargados, pois não há informações confiáveis sobre seu atual preço. Esse prédio foi comprado por Pinochet por 22 milhões de pesos em 1992 e atualmente tem um valor fiscal de 60,8 milhões de pesos.
As compras da Belview
Os US$17,9 milhões que Pinochet acumulou e ocultou no exterior, cuja origem não se conseguiu esclarecer durante a investigação do caso Riggs, constituem uma das principais descobertas do processo, que veio à luz quando a lupa de Sergio Muñoz, um dos juízes mais meticulosos do país, examinou o milionário poço dos “gastos reservados” que o ditador teve à sua disposição como chefe de Estado e comandante em chefe do Exército.
O exaustivo cruzamento feito durante o caso Riggs entre as contas dos oficiais responsáveis por esse fundo e as contas de Pinochet no exterior permitiu a descoberta da fórmula que o general utilizou para tirá-los do país e logo em seguida trazê-los de volta, incrementando assim seu patrimônio.
As transferências entre as contas dos oficiais que cuidavam dos recursos da Casa Militar – e também da Secretaria-Geral do Exército – e as contas internacionais de Pinochet foram sendo desvendadas uma por uma. Se houve muitas compras e operações cujo destino final não foi possível esclarecer, ao fim do processo as autoridades conseguiram chegar a uma cifra do dinheiro assim desviado: US$ 6,4 milhões.
Seis oficiais de alta patente do Exército foram condenados a quatro anos de liberdade vigiada por desvios de recursos públicos provenientes dos “gastos reservados”. Já Pinochet foi absolvido não por ser inocente, mas porque faleceu enquanto o julgamento ocorria.
Os oficiais condenados pelo ministro Valderrama (que apelaram da decisão) são: Jorge Ballerino, Ramón Castro Ivanovic, Gabriel Vergara Cifuentes, Sergio Moreno Saraiva, Juan Mac Leal e Eugenio Castillo Cádiz. Todos eram responsáveis por contas no Banco Riggs nas quais se depositaram fundos destinados aos “gastos reservados” do Comando em Chefe do Exército e da Casa Militar.
Uma peritagem de especialistas da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile, que analisou as contas bancárias de nove pessoas (todas chefes da Casa Militar e secretários privados de Pinochet), foi a chave para a decisão de Valderrama.
Esclarecer onde Pinochet empregou os recursos cuja origem não foi capaz de justificar durante o julgamento é outro ponto em que tocou a investigação do caso Riggs. Sergio Muñoz e Carlos Cerda, dois juízes que hoje integram a Corte Suprema, foram decisivos para isso.
Uma parte do dinheiro fraudado pelo ditador foi transferida para a Belview International Inc., empresa que Pinochet criou no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas e converteu em sua principal ferramenta para a compra irregular de imóveis. As operações imobiliárias da família Pinochet Hiriart aumentaram quando, em agosto de 1991, se constituiu no Chile uma subsidiária da companhia: a Belview Internacional.
Desde então, a Belview foi o epicentro de manobras ilícitas – seu capital inicial foi pago com US$ 100 mil provenientes de fundos públicos, depositados por Sergio Moreno Saravia, então secretário-geral do Exército, que, por sua vez, recebeu o dinheiro de José Miguel Latorre, à época secretário pessoal de Augusto Pinochet.
A carta de constituição da Belview Internacional foi revelada em 2004 pela revista Siete+7. Ali, apareceram os dois nomes que Pinochet utilizou como laranjas: Óscar Aitken Lavanchy, testamenteiro do ditador, proprietário de 99% das ações; e Axel Buchheister Rosas, dono do 1% restante. Aitken declarou que a Belview se constituiu no Chile com o objetivo de realizar negócios imobiliários e “facilitar a alocação hereditária” da família Pinochet. Um eufemismo para seu verdadeiro fim: driblar o imposto sobre herança.
Em 9 de agosto de 1991, três dias depois de sua criação no país, a Belview deu o pontapé inicial em suas atividades: comprou um apartamento em Reñaca, bairro da cidade litorânea de Viña del Mar, para o ex-diretor da Central Nacional de Informações (CNI), general Hugo Salas Wenzel, condenado em 2007 pelo assassinato de 14 membros da Frente Patriótica Manuel Rodríguez na Operação Albania. A Belview pagou 28,3 milhões de pesos pelo apartamento, localizado no edifício Los Maitenes. Em 1998, a empresa vendeu o imóvel por 42 milhões de pesos ao agora senador Francisco Chahuán.
A essa primeira compra de 1991, seguiram outras onze transações imobiliárias realizadas pela Belview em seu afã de “facilitar a alocação hereditária” da família de Pinochet:
– Em 1994, a Belview comprou um apartamento, de propriedade de Lucía Hiriart, localizado em Nuñoa, em Santiago, por 40 milhões de pesos e o vendeu três anos depois, em 1997, por 28 milhões de pesos.
– Também em 1994, a Belview adquiriu o sítio Los Boldos para vendê-lo dois anos depois, em 1996, ao mesmo Pinochet, mas dessa vez incluindo a sua esposa e seus cinco filhos.
– Em 1995, a Belview comprou dois apartamentos em Iquique, que mais tarde seriam transformados em um só e utilizados como residência de Pinochet. O de número 602 custou 75,2 milhões de pesos, e o de número 603, 47,4 milhões. No total, a operação custou 122,6 milhões de pesos. Quatro anos mais tarde, a Belview foi usada para uma nova transação nesse mesmo edifício: em 1999, comprou o apartamento 601, o mesmo que o general havia adquirido em 1995.
– Em 1997, a Belview comprou, por 55 milhões de pesos, um apartamento em Vitacura, bairro da capital Santiago, em nome de Lucía Hiriart. Seis anos depois, em 2003, vendeu o imóvel por 15 milhões a menos à sociedade Cornwall Overseas, também relacionada a negócios de Pinochet no exterior e administrada por Óscar Aitken.
– Em 1997, a Belview comprou outro apartamento em Vitacura por 34 milhões de pesos.
– E, finalmente, em 2003 adquiriu um terceiro apartamento em Vitacura por 54 milhões de pesos.
Abanda Finance e GLP Limited
A Belview não foi a única empresa em paraísos fiscais que Pinochet e sua família utilizaram para esconder recursos do Estado chileno (os “gastos reservados”) e fazer operações imobiliárias em seu benefício. A Abanda Finance foi constituída em 1997 nas Ilhas Virgens Britânicas por Óscar Aitken, a mando de Augusto Pinochet.
Dois anos depois de sua criação, em 1999, a Abanda comprou outro apartamento em Reñaca para Pinochet (com adega e três vagas de estacionamento) pelo valor de 214,8 milhões de pesos.
Um dia antes de adquirir o novo apartamento em Reñaca, a Abanda Finance recebeu uma transferência de US$ 400 mil de outra empresa que Pinochet havia aberto nas Ilhas Virgens: a Eastview Finance. Em 15 de novembro de 1999, chegou à Abanda remessa enviada ao Chile pela Monex Agência de Valores. Os US$ 400 mil serviram para cobrir os 214,8 milhões de pesos do apartamento de Reñaca.
Essa é a única movimentação registrada na conta da Abanda quando se iniciou a investigação do caso Riggs, em 2004. Em sua decisão, o ministro Valderrama afirma que a finalidade dessas transações foi “encobrir o verdadeiro proprietário dos imóveis”.
O então testamenteiro Aitken admitiu, diante do tribunal, que a Abanda foi criada “para resguardar os bens do senhor Pinochet, encomendados ao advogado Ambrosio Rodríguez”. Além disso, afirmou que o dono da Abanda era a Belview – em outras palavras, Augusto Pinochet Ugarte. Por isso, de acordo com ele, o apartamento de Reñaca deveria ser encarado como outra propriedade da Belview.
Durante os longos interrogatórios a que foi submetido, Óscar Aitken ajudou a revelar uma terceira empresa de Pinochet no exterior: a GLP Limited. “Com fundos da ordem de US$ 6 milhões, foi celebrado um contrato de investimento no banco Lehman Brothers em nome da empresa GLP”. Desse montante, declarou, enviava-se regularmente uma quantidade a Pinochet, sua esposa e cinco filhos. Aitken atribuiu à eficiente gestão do dinheiro – por meio da negociação de valores e interesses que ganhava a GLP – o crescimento dos valores que Pinochet ocultou nessa empresa.
Na GLP Limited, Aitken exercia cargo de confiança cuja função era distribuir mensalmente os recursos entre Pinochet, sua esposa e seus cinco filhos. Por essa função e também por sua atuação como testamenteiro e assessor nas outras empresas de Pinochet no exterior – algumas delas relacionadas à venda e compra de armamento –, era um assíduo visitante da residência dos Pinochet Hiriart em Los Flamencos. Sobre como Pinochet exercia o controle sobre tais investimentos, Aitken afirmou perante o juiz: “O general exigia que as conversas fossem realizadas a sós para que sua esposa não tomasse conhecimento sobre seus investimentos. E, nas ocasiões em que a senhora Lucía permanecia no local, ele me fazia um gesto ou me dizia que discutiríamos o tema depois, encerrava a reunião e me chamava para conversarmos no imóvel onde ficava a sede do Agrupamento de Segurança”.
Em sua sentença, o ministro Valderrama concluiu que o “desvio de recursos públicos” operado pelos seis oficiais condenados no caso Riggs possibilitou “abrir contas no exterior que permitiram a realização de transferências de quantias do erário nacional, com as quais um terceiro, também funcionário público [Pinochet], comprou propriedades, criou empresas, cobriu gastos de sua família e abriu empresas fiduciárias, como a GLP Limited, cujos lucros eram distribuídos aos familiares de Augusto Pinochet”.
Daí se concluiu também que a casa no bairro de Lo Barnechea, em Santiago, adquirida por Jacqueline Pinochet em 2003 com recursos provenientes da GLP, deve ser considerada parte do patrimônio acumulado ilegalmente pela família. Apesar disso, não foi incluída no embargo.
Em suas movimentações financeiras, a GLP Limited utilizou uma conta do Banco do Chile em Nova York e outra de corretagem no Lehman Brothers, ambas abertas em novembro de 2002. Um ano depois, em julho de 2003, parte dos fundos ocultados ali por Pinochet foi empregada na compra da casa em Lo Barnechea por 195,8 milhões de pesos em valores atuais. O imóvel foi registrado em nome de Jacqueline Pinochet Hiriart e de seus dois filhos: María José y Constanza Martínez Pinochet e Sofía y Jaime Augusto Amunátegui Pinochet.
Fizeram um bom negócio: em 2012, a casa de Los Trapenses foi vendida por 406 milhões de pesos em valores atuais. A venda ocorreu pouco antes de a filha caçula de Pinochet se casar pela quarta vez, com Jorge Castaño Tasville.
A GLP repartiu fundos entre os Pinochet Hiriart de outubro de 2002 a julho de 2004. Augusto Pinochet recebeu US$ 265 mil, a mesma quantia que obteve Lucía Hiriart, enquanto cada um de seus herdeiros ganhou US$ 75 mil. Ao todo, foram repartidos US$ 905 mil, valor a que se soma a extraordinária aposentadoria de US$ 232 mil a que teve direito o general.
As joias da coroa
Já se passaram dez anos da morte do ditador e também da decisão que deixou Los Boldos fora do embargo sobre bens adquiridos pela família Pinochet com fundos não justificados. Essa é uma das joias imobiliárias que escaparam do braço da Justiça porque já não envolviam o nome de Pinochet quando o caso Riggs começou.
O campo de Los Boldos, de 51 hectares, está localizado perto da fazenda Bucalemu, que era propriedade do Exército até muito recentemente, e ao lado de Rocas de Santo Domingo. Ali foram construídas quatro casas, uma capela (onde se supõe que estejam as cinzas de Pinochet), jardins, parques e um bosque de eucaliptos maduros, de alto valor comercial, que cobre grande parte do terreno. Seu valor corrente de mercado atinge os 13,4 bilhões de pesos (cerca de US$ 19,8 milhões).
Foi um grande investimento se considerarmos que o general a comprou em 1994 por 34 milhões de pesos e que a casa foi construída por suboficiais do Exército em horário de serviço. Assim o define em sua decisão o ministro Valderrama: “Em Los Boldos, Augusto Pinochet construiu uma casa de 472,19 metros quadrados, cujo custo na época chegou a 184 milhões de pesos, valendo-se do pessoal destinado ao Comando em Chefe do Exército do Chile, durante sua jornada de serviço público”. Originalmente, a propriedade foi registrada em nome de Lucía Hiriart, mas em regime de sociedade conjugal. Apenas alguns meses após a compra, o terreno foi vendido por 80 milhões de pesos para a subsidiária chilena de uma sociedade constituída por Pinochet nas Ilhas Virgens, a Belview International. Dois anos mais tarde, em 1996, a Belview a vendeu por 84 milhões de pesos para Pinochet, sua esposa e seus cinco filhos, em partes iguais. Assim, eles burlaram o pagamento de impostos sobre herança.
Em 1999, preso em Londres e perseguido pelo embargo que o juiz espanhol Baltasar Garzón tentava impor, Pinochet liquidou sua sociedade conjugal. A operação, realizada pelo advogado Ambrosio Rodríguez, atribuiu à Lucía Hiriart um sétimo do terreno de Los Boldos que pertencia ao marido. Então, ela ficou com dois sétimos do lote, e cada um de seus filhos, com um sétimo. E o mais importante: o nome do general foi apagado das escrituras da propriedade.
Aqueles que conhecem a história do caso Riggs afirmam que foi precisamente a liquidação da sociedade conjugal que fez o então promotor do caso, Sergio Muñoz, decidir deixar Los Boldos de fora do embargo. Já que Pinochet não figurava como proprietário, era muito plausível que a Corte derrubasse os embargos, semeando dúvidas sobre a consistência da investigação.
A liquidação da sociedade rendeu frutos. Em 2015, a viúva e seus filhos “venderam” Los Boldos a vários netos de Pinochet por 61 milhões de pesos, valor muito abaixo do preço de mercado. Uma operação que, por seu formato e montante, buscaria contornar o imposto sobre herança e também deixá-los a salvo de demandas tributárias em curso ou eventuais demandas civis sobre o enriquecimento do general à custa de recursos públicos.
Outra propriedade que a família Pinochet conseguiu salvar do embargo é um dos três terrenos que compõem El Melocotón, em Cajón del Maipo, onde Pinochet construiu uma casa de campo em 1983. Essa propriedade, no valor de 233,9 milhões de pesos, foi doada por Pinochet a um de seus netos, Hernán García Pinochet, em dezembro de 2002. Na escritura, a justificativa para a transferência é que Hernán García Pinochet teria atuado desde 1988 como “administrador e supervigilante” dos imóveis de El Melocotón sem receber remuneração adequada.
Outras duas áreas de El Melocotón, cujo valor de mercado hoje chega a 3,27 bilhões de pesos, não foram poupadas do embargo. Mas, apesar da medida judicial, a família obtém dali uma renda mensal, já que os imóveis estão arrendados para a Universidade San Sebastián. Na residência ocupada por anos por Pinochet, a instituição instalou seu Centro de Montanha.
A terceira joia imobiliária da família que a liquidação da união conjugal salvou do embargo é a casa construída pelo casal Pinochet-Hiriart em La Dehesa. Essa residência, a última ocupada pelo casal, foi atribuída a Lucía Hiriart na liquidação. As quatro plantas originais – que somam 3.300 m2 – foram compradas por Pinochet entre 1989 e 1990 por um total de 71 milhões de pesos.
O boom imobiliário de La Dehesa, em Santiago, fez com que o investimento se convertesse em uma pequena fortuna: em 2014, Lucía Hiriart vendeu a propriedade de Los Flamencos por 1,35 bilhão de pesos. A viúva se mudou para um apartamento na área do Valle del Monasterio, também em La Dehesa, pelo qual pagou 329 milhões de pesos.
No ano passado, a viúva de Pinochet “vendeu” o apartamento em que vivem cinco de seus netos por apenas 120 milhões de pesos. A transação é uma das últimas peças do resgate bem-sucedido do patrimônio do ditador.
Texto publicado originalmente no site Ciper Chile. Traduzido por Anna Beatriz Anjos e Patrícia Figueiredo para a Agência Pública