Em 23 anos de democracia e duas comissões da verdade, Chile condenou repressores, mas deixou Pinochet impune
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I.) Augusto Pinochet— O personagem principal da ópera. Para alguns, um mero oportunista. Para outros, gênio da estratégia. Pinochet foi o protagonista de um enredo shakespeariano carregado de paixões, traições e contradições. Nomeado Comandante-Chefe das Forças Armadas pelo próprio Salvador Allende, três semanas antes do golpe, por ser considerado o general mais confiável — em junho daquele ano evitou um golpe organizado por um regimento de infantaria. Ascendeu nas fileiras do Exército Chileno graças ao general Carlos Prats, seu antecessor no comando das Forças Armadas, que seria assassinado em Buenos Aires, em 1974, por agentes da CIA ligados ao seu governo. No dia do golpe, levou sua mulher e filhos a um quartel comandado por um dos generais mais allendistas do Exército, que dias depois seria fuzilado.
Manteve seu poder dentro da Junta Militar intimidando e acusando os que questionavam sua liderança de serem ambiciosos. Pinochet pensava em si mesmo como “o libertador da pátria contra o inferno marxista”. Acreditava ser “o general dos pobres”, mesmo com seu exército mantendo as regiões carentes das grandes cidades sob estado de sítio permanente. Sobre seu governo, dizia que “não é uma ditadura, isso é uma ditabranda” e quando entregou o poder, vaticinou: “em questão de poucos anos, a cidadania estará implorando pela volta do governo militar”. Burlava-se dos familiares dos desaparecidos e dizia que a melhor forma de lidar com os casos de violações aos direitos humanos era esquecendo. Foi cruel e impiedoso com os inimigos, um exemplo de retidão e patriotismo para seus apoiadores. Em sua última entrevista, para um canal de televisão de Miami, disse: “me considero um anjo, sou bondoso quando estou refletindo e meditando, e não tenho ressentimento, tenho bondade. Não me considero um ditador, e sim um anjo patriótico, que não tem porque pedir perdão a ninguém”.
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2. Jaime Guzmán
O principal civil que apoiou a ditadura. Dono de uma grande capacidade oratória, o advogado Jaime Guzmán foi o mais importante político ligado ao regime de Pinochet, que abominava a política. Reza a lenda que escreveu praticamente sozinho a Constituição de 1980 — estabelecida pela ditadura e ainda vigente. Fundou o partido mais conservador da direita chilena (a UDI, União Democrata Independente) e tentou estabelecer no país um modelo bipartidista (entre UDI e RN, Renovação Nacional, partido de direita mais liberal), no mesmo molde dos Estados Unidos. É autor das mais polêmicas frases da ditadura, como: “o país sabe que vive uma ditadura e a celebra” (1978), “os que acusam o regime de ser opressivo têm que reconhecer que a cidadania está conhecendo agora um estilo de vida menos submetido aos rumos da política, o que lhes permite formar opiniões mais livres de consignas partidárias” (1976) e “uma coisa são os sentimentos humanos e outra é a evolução política que podemos ter a partir das situações que vivemos. (Sobre os torturados e assassinados pela ditadura), eu não deixo de me comover por qualquer pessoa que sofre, ainda quando esse sofrimento é causado por um incêndio que ela mesma causou”. Eleito senador após o fim da ditadura, Guzmán é baleado por militantes da FPMR (Frente Patriótica Manuel Rodríguez) em frente à sede da Universidade Católica, onde dava aulas, e morre no local — um dos que participaram da emboscada está preso no Brasil desde 2002, por envolvimento no sequestro do publicitário Washington Olivetto. O assassinato aconteceu em abril de 1991. Ainda hoje, o nome de Jaime Guzmán é evocado em cada reunião da UDI como o principal líder do partido, cujo ideário deve ser recordado sempre antes de se tomar qualquer decisão.
3. Manuel “El Mamo” Contreras
A tortura no Chile teve muitos líderes, mas nenhum foi tão cruel quanto o general Manuel Contreras, “El Mamo” para íntimos e inimigos. Comandou os serviços de inteligência da ditadura chilena, com a experiência de quem recebeu treinamento na Escola das Américas, nos Estados Unidos, onde teria aprendido técnicas de tortura. Voltou ao Chile em 1972, quando já trabalharia como informante para a CIA. Depois do golpe, foi nomeado diretor da recém-criada DINA (Departamento Nacional de Informação), entre 1973 e 1977, e posteriormente colaborou com a CNI (Central Nacional de Informação, órgão que substituiu a DINA, em 1979). Durante seus anos na DINA, foi responsável por mais de 1.500 mortes de opositores da ditadura e milhares de casos de tortura. Documentos da CIA, do ano de 1975, citam El Mamo como “criador da Operação Condor”. Com o fim da ditadura, tornou-se o principal alvo dos julgamentos por violações aos direitos humanos. Passou anos dizendo que a Justiça Chilena não teria coragem de colocá-lo na cadeia, até que, em 2005, começam a chegar suas sentenças. Antes de ser levado ao presídio, Contreras diz, em entrevista para a Rádio Cooperativa, que “Pinochet nos traiu, nos deixou sozinhos” (em referência a ele e a outros militares condenados). Atualmente, acumula 370 anos de prisão.
4. José Piñera
A economia chilena, durante a ditadura, era manejada por um grupo de economistas locais, mas pós-graduados na Universidade de Chicago, onde tiveram aulas com Milton Friedman, o guru do neoliberalismo. Eram os chamados “Chicago Boys”. Muitos consideram que o mais destacado deles foi Hernán Büchi, o último ministro de economia de Pinochet e quem encabeçou a candidatura da direita em 1989, com o retorno da democracia. Mas a colaboração de Büchi não se compara a de um dos primeiros alunos chilenos do professor Friedman. José Piñera, irmão mais velho do atual presidente do país, Sebastián Piñera, foi o homem que consolidou o modelo econômico neoliberal no país. Primeiro como ministro do Trabalho e Previdência (entre 1978 e 1980), estabelece o Código Trabalhista vigente até hoje, considerado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho, ligada à ONU) um dos que mais aceita condutas antissindicais no mundo. No mesmo período, extingue a previdência estatal e cria as AFP (Administradoras de Fundos de Pensão), tornando o sistema previdenciário um mercado exclusivo das empresas privadas. Entre 1980 e 1983, José Piñera foi ministro de Mineração, e responsável por criar os subterfúgios legais que permitiram a privatização de jazidas de petróleo, cobre e lítio, apesar destes serem considerados recursos estratégicos e inegociáveis por decreto da Junta Militar — o que rendeu desavenças suas com alguns militares nacionalistas. Após o retorno da democracia, Piñera tenta ser presidente em 1993, quando obtém 6% dos votos. Com a derrota, resolve se exilar em Miami, e hoje vive de palestras nas quais defende o sistema previdenciário exclusivamente privado. Em 2003, o Instituo Goldwater deu a José Piñera o prêmio “Campeão da Liberdade”.
5. Patricia Maldonado
Muitos músicos cantaram para o ditador, desde os folclóricos Huasos Quincheros até o erudito maestro Horácio Saavedra, mas a cantora predileta de Pinochet era Patty Maldonado. Essa preferência também se explicava pela incondicional defesa do governo que ela fazia como estrela da televisão chilena. Efetivamente, Patty é até hoje uma das mais fervorosas defensoras do ditador, e símbolo das manifestações dos pinochetistas na frente da embaixada britânica quando o general foi detido em Londres, em 1998 — quando gritava para as câmeras chamando o governo britânico de “cúmplice do terrorismo” e brigava com grupos de esquerda. Atualmente, é uma das poucas pessoas que mantém firme o ideal pinochetista. Ainda é uma das figuras importantes da televisão chilena e fala de política sempre que pode, recriminando os que eram partidários do ditador e hoje tentam se desligar da sua imagem.
6. Hermógenes Pérez de Arce
A voz dominical do pinochetismo. Assim ficou conhecido o jornalista que, por 35 anos, foi o principal defensor do ditador, durante e depois do seu regime. A coluna de Hermógenes no jornal El Mercurio foi inaugurada em 1962, mas somente durante a ditadura se transformou na mais importante do diário, pela maneira como defendia incondicionalmente as medidas adotadas pela Junta Militar. Após a detenção de Pinochet em Londres, em 1998, tornou-se um dos poucos amigos que restaram ao ditador. Em 2008, abandona a coluna no jornal e se dedica à literatura. Em 2012, lança o livro O resgate de Pinochet, que pretende “defender o legado do governo militar, a forma como salvou o país e o modelo de desenvolvimento que hoje é exemplo de recuperação para a América Latina e para o mundo”.
7. Eduardo Frei Montalva
Foi o presidente que antecedeu Salvador Allende. Líder do PDC (Partido Democrata Cristão, um dos mais influentes do Chile), era considerado um político de centro-esquerda. Em seu mandato, foram criadas importantes empresas estatais e foi iniciada a reforma agraria, a que depois seria aprofundada por Allende. Mas as ideias em comum não impediram Frei de ser um ferrenho opositor da Unidade Popular. Meses depois do golpe, foram artigos seus escritos à imprensa estrangeira os primeiros a defender aquela via como “a única possível, para salvar o país de uma guerra civil”. O historiador Cristián Gazmuri, biógrafo de Frei, diz que “amigos íntimos relatam que, com a queda de Allende, ele acreditava que era questão de tempo para os militares o reconduzirem ao poder”. Frei foi um exemplo de como o PDC apoiou o golpe em 1973, mas logo se arrependeu, por diferentes motivos. “Apesar de tudo, ele foi um dos militantes que mudou de postura quando descobriu as violações aos direitos humanos, outros só o fizeram porque não foram considerados em cargos pelo novo governo”, conta Gazmuri. Assim como todos os outros partidos, o PDC foi jogado na ilegalidade pela Junta Militar, e Frei se tornou um dos líderes de uma oposição invisível naqueles anos. Faleceu em janeiro de 1982, na Clínica Santa María, a mesma onde morreu Pablo Neruda nove anos antes. A autópsia detectou vestígios de gás mostarda, sendo uma evidência de que foi assassinado por agentes da repressão — e o fato de que alguns médicos que o trataram foram os mesmos que atenderam Neruda em 1973 é levantada também no caso que apura a morte do poeta. Após o fim da ditadura, seu filho, Eduardo Frei Ruiz-Tagle, foi presidente do Chile, entre 1994 e 2000.
8. Elías Figueroa
Um dos menos pinochetista da lista, Elías Figueroa foi o que melhor conseguiu descolar sua imagem da do ditador, depois que voltou a democracia. Também há que se dizer que o ex-zagueiro do Internacional de Porto Alegre, apolítico durante os anos 70, não buscou o pinochetismo, e sim foi buscado por ele quando o regime tentava usar o futebol como meio para conseguir maior popularidade. Em 1982, ano em que foi capitão da seleção chilena na Copa do Mundo, Don Elías foi jogar no Colo-Colo, clube onde encerrou sua carreira, dois anos depois. Sua passagem pelo clube mais popular do Chile coincide com os anos em que o Colo-Colo começa a ser instrumentalizado por Pinochet e pelos partidos criados por Jaime Guzmán, relação que rendeu ao clube a remodelação do estádio — que algumas torcidas organizadas colocolinas, também cooptadas pelo regime, queriam que se chamasse Estádio Augusto Pinochet. Apesar de ter recebido muitas ofertas, Figueroa nunca se filiou a nenhum partido, mas foi um dos protagonistas da campanha do “Sim a Pinochet” no Plebiscito de 1988. Ainda assim, a cada quatro anos, reaparecem os flertes com UDI e RN, os dois partidos da direita chilena, por uma candidatura ao Congresso. Segundo o jornalista esportivo Juan Cristóbal Guarello, “ele sempre termina se negando, não por falta de vontade política, mas por temor a que isso reative a memoria do país sobre seu apoio a Pinochet, nos anos 80”.
9. Paul Schäefer
Chegou ao Chile em 1961, escondendo um passado obscuro na sua Alemanha natal. Paul Schäefer foi militante das Juventudes Hitlerianas nos anos 30, participou da Segunda Guerra Mundial como médico de campanha do Exército Nazista e fugiu da Alemanha nos anos 50 por acusações de abusos sexuais a crianças em uma casa de atenção fundada por ele mesmo. Encontra refúgio no sul do Chile, onde já viviam refugiados outros ex-oficiais nazistas. Cria a Colônia Dignidade, que aparentava ser um centro de cultura da colônia alemã, mas que escondia rituais de doutrinação nazista. Em 1974, após visita de Pinochet e Contreras, os porões das chácaras da Colônia Dignidade se transformaram em esconderijos da DINA, onde se torturava e assassinava opositores da ditadura, reproduzindo técnicas usadas nos campos de concentrações alemães contra os judeus. Também há relatos sobre como Jaime Guzmán dava aulas aos futuros líderes políticos da UDI, entre eles Joaquín Lavín, nas dependências de Schäefer, também simultâneas às sessões de tortura. Após a ditadura, Colônia Dignidade continuou sendo um local de férias de alguns políticos importantes da direita chilena, até que, em 1997, surge outro escândalo sexual envolvendo Schäefer e crianças que viviam na localidade. O médico alemão foge novamente, dessa vez para a Argentina, onde é capturado em 2005, e rapidamente extraditado. Schäefer morreu na prisão, em abril de 2010. A fazenda onde funcionava a Colônia Dignidade continua sendo um centro de cultura alemã, hoje conhecido como Villa Baviera.
10. Mariana Callejas
Não é fácil entender como uma jovem estudante de letras que foi hippie e participou dos protestos contra a Guerra do Vietnã, em 1967, se transforma, seis anos depois, numa das mais implacáveis agentes da CIA, envolvida em atentados que terminaram com a vida de importantes colaboradores de Salvador Allende. Apesar de idealista durante seus anos de universitária nos Estados Unidos, a chilena Mariana Callejas sempre foi anticomunista e antiallendista. Durante a Unidade Popular, regressou a seu país natal casada com um agente da CIA, Michael Townley, e participou junto com ele de diversos atentados contra defensores do governo socialista, entre os quais o do general Carlos Prats (principal aliado militar de Allende), em Buenos Aires, e o de Orlando Letelier (ministro de Defesa de Allende), em Washington — ambos assassinados em explosões de carros, uma especialidade de Townley. Em 1975, o casal se muda para uma mansão no monte Lo Curro, cujos porões escondiam um pequeno centro de tortura e também um pequeno laboratório, onde o químico uruguaio Eugenio Berríos fabricava produtos para serem usados no envenenamento de opositores. Durante as sessões de tortura de Townley, no hall principal da casa, Callejas organizava saraus de literatura com importantes intelectuais da época. A estranha mescla, entre divagações literárias com os ruídos da tortura que os presentes fingiam não ouvir, inspirou a obra literária de alguns dos que participaram dos saraus, exemplo dos contos As Orquídeas Negras de Mariana Callejas, de Pedro Lemebel, e Relato Noturno do Chile de Roberto Bolaño. Após a ditadura, quando suas atividades foram conhecidas publicamente, o casal Callejas-Townley tornou-se ícone da colaboração da CIA com o regime de Pinochet. Mariana Callejas foi presa, em 2003, por ter colaborado em assassinatos políticos, mas conseguiu uma liminar que lhe garantiu prisão domiciliar.
11. Joaquín Lavín
A data foi escolhida a dedo: 7/7/77. Naquele dia, Em 1977, a ditadura promove um ato no Morro Chacarillas, na zona Norte de Santiago, para abençoar os “77 Heróis do Futuro do Chile”, em um ritual noturno, com tochas e juramentos de lealdade eterna ao governo militar. Entre os jovens escolhidos por seu espírito nacionalista, estavam muitos que colaboraram com a ditadura em sua segunda década de governo, e também atuais ministros do governo de Sebastián Piñera. Nesse caso, Joaquín Lavín se destaca por estar em ambos os grupos. Era considerado o futuro do pinochetismo e foi preparado para ser o líder de um movimento dentro do partido UDI (o mais conservador do país) que buscava impulsar um projeto de direita popular, capaz de conseguir aderentes nos setores mais carentes do país. Economista, foi assessor de Hernán Büchi no ministério da Fazenda, antes de buscar voos solos na política: foi prefeito de Las Condes (comuna que reúne os bairros nobres da capital Santiago) e de Santiago Centro, e candidato presidencial duas vezes. No governo de Piñera, foi escolhido inicialmente para o ministério mais difícil, o de Educação, com a missão de salvar o questionado modelo educacional da ditadura. Acabou sendo fritado durante a crise, que foi evidenciada pelas grandes marchas do Movimento Estudantil, em 2011, mas foi remanejado para o Ministério do Desenvolvimento Social.
* Texto publicado originalmente no site Opera Mundi
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