Julia de Boer
Usuários da internet têm se engajado na produção colaborativa de projetos científico-culturais
O britânico Hector MacDonald, autor de romances policiais e editor, teve uma ideia que pode ser definida como simples e genial: decidiu confiar aos leitores a edição final dos livros que publica na casa editorial Advance. Colocando nestes termos, o plano parece uma mal disfarçada maneira de economizar dinheiro deixando nas mãos dos próprios clientes uma tarefa central na vida de uma editora. Mas MacDonald se defende habilmente das hipotéticas acusações: o projeto, sustenta ele, inaugura um modelo de “edição compartilhada”.
Os livros da Advance seguem o percurso usual de um texto em uma casa editorial: são selecionados pelo editor e confiados a um redator que recebe por seu trabalho. Somente neste momento o texto é submetido ao crivo dos leitores que, após terem baixado metade da obra gratuitamente ou a terem comprado integralmente por um preço baixíssimo, podem se lançar na caça a erros, imprecisões e eventuais furos na trama. Quando as sugestões dos editores voluntários são acatadas, eles são recompensados com a citação de seus nomes no volume definitivo, publicado em papel e na versão digital.
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MacDonald demonstra acreditar bastante no projeto, tanto que é dele um dos primeiros livros-cobaia lançados em setembro pela Advance: com o título “Rogue Elements” [“Tipos trapaceiros”, em tradução livre], o livro aborda uma intriga que envolve drogas e espionagem, cujo leitor-editor ideal seria um especialista, entre outras coisas, em motocicletas e gírias utilizadas no Canadá, ou quem sabe alguém que viva em Brasília, cidade onde se passa parte da história.
Esta é uma tendência cada vez mais difusa no mundo todo (pelo menos no mundo de língua inglesa): o crowdsourcing, ou produção colaborativa, no ramo da cultura.
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Smithsonian
Exemplos de páginas a serem transcritas no centro de transcrição online do Instituto Smithsonian
Se o caso da Advance se limita a uma pequena casa editorial e serve na realidade para catalisar a atenção dos leitores sobre a produção da editora, são sempre mais numerosos os museus e entes culturais que, em tempos de penúria, se voltam à “crowd”, à multidão, para finalizar trabalhos que demandam enormes investimentos de tempo, energia e dinheiro. Em julho passado, por exemplo, o Instituto Smithsonian, entidade científico-cultural sediada em Washington, capital dos Estados Unidos, abriu um centro de transcrição online. Agora, qualquer pessoa pode ajudar a decifrar diários da Guerra Civil norte-americana, fichas botânicas, cartas e outros escritos refratários aos mecanismos de digitalização.
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Antes da Smithsonian, porém, a Universidade de Londres já em 2010 abriu ao público a possibilidade de participar da transcrição das obras do filósofo iluminista Jeremy Bentham. O Museu Britânico também conta com milhares de colaboradores gratuitos em todo o mundo para digitalizar velhas fichas manuscritas de seu catálogo, e para “limpar” fotografias de peças da Idade do Bronze, para que elas sejam reproduzidas em 3D.
O caso do museu londrino é particularmente interessante, porque a produção colaborativa acontece através de uma plataforma chamada Micropasts, concebida para “conduzir, projetar e financiar pesquisas sobre o passado da humanidade”. Até agora, na verdade, a Micropasts tem se ocupado principalmente de pré-histórica britânica, mas os voluntários que queiram dar uma ajudinha na realização de grandes obras coletivas nos campos histórico e científico têm outras opções: os projetos da plataforma Zooniverse incluem a “Operation War Diary”, uma transcrição em massa dos diários (sempre britânicos) da Primeira Guerra Mundial; ou a possibilidade de se transformar em “BatDetectives”, aprendendo a classificar os chamados acústicos dos morcegos. Enquanto isso, na plataforma “Crowdcrafting” membros do grupo de instrumentação astronômica da Universidad Coplutense de Madri, na Espanha, dentro de um projeto sobre poluição e consumo de energia, propõem aos colaboradores que reconheçam cidades vistas do espaço, no projeto “Lost at Night” [“Perdidos na Noite”, em tradução livre].
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O campo da ciência cidadã também está crescendo velozmente, também pelo forte valor provocatório diante de grandes indústrias farmacêuticas. Alguns exemplos são o United Genomes Project, lançado há poucas semanas pelo biólogo queniano Geoffrey Siwo, com o objetivo de criar um banco de dados genéticos aberto na África, e o Iliad Project, que, com o auxílio de um kit de 60 dólares, permite que qualquer pessoa participe de uma pesquisa sobre antibióticos naturais.
Em suma, eis uma gigantesca massa de energia, composta por indivíduos que escolhem dedicar algumas horas de seu tempo à conservação do patrimônio cultural ou a pesquisas científicas, sem levar nada em troca além da satisfação de ter participado de uma empreitada que será útil para muitas pessoas. Seria essa a famosa inteligência coletiva de que tanto se tem falado nos últimos vinte anos?
Tradução: Carolina de Assis
Matéria original publicada no site do Pagina99, jornal italiano que se dedica à cobertura de questões italianas e internacionais com foco em temas econômicos e culturais.